Julho das Pretas: “a força ancestral nos mostra que é possível sim romper com o que está posto”, diz Livia Nascimento

 

Lívia Nascimento. (FOTO | Acervo Pessoal).

Por Nicolau Neto, editor

O mês de julho é dedicado a celebrar a mulher preta. O dia 25, por exemplo, é celebrado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, data que teve origem em 1992 no 1º Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas, realizado em Santo Domingo, na República Dominicana, sendo instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Naquele encontro, mais de 300 representações de vários países além de compartilharem suas experiências, debateram estratégias de luta e soluções contra o racismo e o machismo. 22 anos depois, o Brasil escolheria a mesma data para instituir Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, fruto da Lei 12.987/2014 que homenageia Tereza de Benguela, uma mulher negra que viveu no século XVIII no Vale do Guaporé, no Mato Grosso, e liderou o Quilombo de Quariterê, ou quilombo do Piolho.

As homenagens não pararam por ai. O Estado do Ceará também utilizou a data como referência para consagrar Preta Tia Simoa, mulher negra que participou da luta pelo fim da escravização no estado e teve seu papel invisibilizado na história "oficial" e suas ações só se tornaram conhecida do público através dos trabalhos da historiadora caririense Karla Alves. O Dia da Preta Tia Simoa e da mulher negra foi instituída em 2021 por meio da Lei 335, de autoria do Deputado Renato Roseno (PSOL).

No entanto, estamos muito longe de falar em comemoração. Ela visa sim falar sobre a luta e a resistência de muitas mulheres negras para superar as algemas impostas pela escravização e posteriormente pelo racismo dela gerada. Mas é também para falar de algumas conquistas importantes.

O blog Negro Nicolau traz uma conversa sobre o Julho das Pretas com a Lívia Nascimento, advogada, especialista em Direito Constitucional (URCA), mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas (UFPB) e presidente do Grupo de Valorização Negra do Cariri (GRUNEC).

Ao falar sobre ocupação representatividade negra na política, por exemplo, ela acredita “que esses espaços são locais de disputa epistemológica, e para que nossas pautas tenham visibilidade e sejam realmente encaminhadas, precisamos estar lá postulando pessoalmente.

Lívia destacou que um dos grandes focos do julho das pretas esse ano é a preparação para a marcha nacional das mulheres negras em Brasília que ocorrerá em 2025. “Queremos no mínimo um ônibus só de mulheres negras do Cariri, estudantes e trabalhadoras das mais diversas áreas, mulheres negras do campo e da cidade, de todas as faixas etárias, todas juntas rumo a grande marcha”, disse.

A presidenta do GRUNEC mencionou ainda os maiores desafios enfrentados hoje. Segundo ela, “falta apoio externo, falta orçamento, falta justiça em determinados casos, mas enquanto tivermos ‘nós’ coletivos, seguiremos.” E complementa afirmando que "a força ancestral dos passos que vieram de muito longe e provocaram fissuras para que pudéssemos resistir durante todo esse tempo e chegar até aqui, nos mostra que é possível sim romper com o que está posto."

Confira abaixo a íntegra da conversa:

Blog Negro Nicolau – Como a Lívia Nascimento se apresenta?

Lívia Nascimento - Mulher negra jovem, mãe, do Cariri cearense, advogada, mestre em Direitos Humanos, ativista e atual presidente do GRUNEC.

BNN - O que representa o julho das pretas?

Lívia - Um movimento nacional de mobilização das mulheres negras em prol dos direitos da população negra.

BNN – A partir de qual momento aqui no cariri, você percebeu que era necessário incorporar a campanha do julho das pretas a nível nacional?

Lívia - As mulheres negras sempre estiveram em marcha na busca por reparação, justiça e equidade. No Cariri, igualmente, as mulheres negras sempre foram protagonistas nas principais pautas e ações de busca por transformação social. Só o GRUNEC tem mais de 24 anos, e durante toda sua trajetória, embora seja um movimento misto, foram as mulheres negras que o geraram e o tornaram tão potente, já que sempre foram da linha de frente de todas as lutas.

Nesse contexto, apesar de desde 1992, Santo Domingo, na República Dominicana, tenha definido a data 25 de julho como Dia da Mulher Afro-latino-americana e Caribenha durante a realização do 1º Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas, além da criação da Rede de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas, acredito que foi com a publicação da Lei nº 12.987/2014, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, que definiu o dia 25 de julho como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, que a repercussão do julho das pretas ganhou grande repercussão nacional no Brasil, e desde então o GRUNEC tem fomentado eventos formativos em prol deste dia, ampliando a reflexão sobre a cosmopercepção das mulheres negras para todo o mês de julho.

Não podemos esquecer que foi a partir desse momento também que começou a ser pensada a mobilização da primeira marcha nacional das mulheres negras, que aconteceu em Brasília em 2015, desde então o Cariri também realiza marcha regional bienalmente.

BNN – O Brasil, e em particular o Ceará, ainda são fortemente marcados por uma cultura machista, elitista e com perfil marcadamente branco nos cargos de poder, sobretudo na política partidária. Essa bandeira certamente é uma das principais do julho das Pretas. Fale um pouco sobre.

A ocupação dos espaços de poder e tomadas de decisões certamente é uma das principais pautas do movimento de mulheres negras, já que são lá onde nossas vidas, em determinada medida, são discutidas.

Nos últimos anos se intensificaram os debates sobre esse ponto, reivindicamos ações afirmativas em seleções e concursos públicos e passamos a monitorar para denunciar as fraudes na política de cotas; passamos o último ano clamando pela nomeação de uma mulher negra no Supremo Tribunal Federal, no Superior Tribunal de Justiça e no sistema de justiça como um todo; também somamos ao movimento “voto em negra” para ocupação dos cargos eletivos, e seguimos denunciando as fraudes às cotas de gênero nas campanhas eleitorais; entre outras estratégias.

O GRUNEC, inclusive, tem como uma de suas principais estratégias a incidência política, estamos nos conselhos estaduais e municipais para discutir políticas públicas para o nosso povo, isso também é importante.

Acreditamos que esses espaços são locais de disputa epistemológica, e para que nossas pautas tenham visibilidade e sejam realmente encaminhadas, precisamos estar lá postulando pessoalmente.

BNN Como foi pensada a organização desse mês nos coletivos negros e femininos no cariri?

No ano de 2024, as mulheres negras em movimentos estão se mobilizando para segunda marcha nacional em Brasília, que ocorrerá em 2025. Há anos conseguimos garantir um ônibus saindo do Cariri e Fortaleza com 42 mulheres para primeira marcha em Brasília, além de ajusta de custo para as diárias, confecções de blusas e cartazes. Dessa vez queremos no mínimo um ônibus só de mulheres negras do Cariri, estudantes e trabalhadoras das mais diversas áreas, mulheres negras do campo e da cidade, de todas as faixas etárias, todas juntas rumo a grande marcha.

Tudo isso requer muita preparação, formação, arrecadação de recursos, divulgação e articulação, e por isso esse ano já anunciamos que o julho das pretas 2024 já seria para iniciar nossa mobilização nesse sentido.

BNN – Para a população negra e povos originários todas as demandas e lutas já travadas e ainda por ser são urgentes. Mas se você tivesse que elencar duas para cada um dos grupos, quais seriam e por quê?

Lívia - Reparação (por todo o passado colonial, escravagista e criminoso que até hoje assolam as vidas de todos/as/es com as consequências desse mal atual) e Bem Viver (para romper com o status quo e visibilizar outras cosmopercepções de mundo para firmar um novo pacto civilizatório, trata-se de uma ideia para adiar o fim do mundo, já anunciado).

BNN – Você foi eleita para presidir o Grupo de Valorização Negra do Cariri (GRUNEC), um dos pioneiros na luta contra todas as formas de desigualdades e também na defesa da história da população negra no cariri, quais suas expectativas enquanto líder e quais os maiores desafios que o grupo enfrenta hoje?

Lívia - O GRUNEC, enquanto coletivo, é quem me confere expectativas, eu sozinha não lidero nada, confesso. É na nossa irmandade, de grupo plural com um objetivo em comum, que aprendo e passo a difundir o que é importante para nosso povo, especialmente na parte cultural, educacional e de ressignificação da concepção de justiça tradicional.

São mais de 24 anos de muita luta, portas fechadas, reinvindicações e obstáculos, mas a força ancestral dos passos que vieram de muito longe e provocaram fissuras para que pudéssemos resistir durante todo esse tempo e chegar até aqui, nos mostra que é possível sim romper com o que está posto. Nesse percurso já vimos a implementação da lei 10.639/2003, da lei de cotas, do estatuto da igualdade racial, titulação dos territórios das comunidades quilombolas, inclusive de algumas que mapeamos na nossa região quando disseram que sequer existíamos no Ceará/Cariri, entre outras conquistas, e isso tudo é muito importante, é por isso que resistimos e seguimos na luta por efetivação e expansão de direitos e políticas públicas.

Nossa principal dificuldade é o racismo estrutural e institucional mesmo que o tempo todo nos mostra o quanto é eficaz em ser perverso. Falta apoio externo, falta orçamento, falta justiça em determinados casos, mas enquanto tivermos “nós” coletivos, seguiremos.

BNN Na luta antirracista, quais pessoas te inspiraram e te inspiram?

Lívia - Povoada! Começa dentro de casa, minhas avós, Antônia e Francisca, minha mãe Ivanilde, minhas tias e primas; além das mulheres da família estendida, Valéria, Verônica, Janayna, Lorena, Raiane, Cristiane, Ana Paula, Yohana, entre outras companheiras de luta do GRUNEC; Verônica Isidório, Maria Elcelane, Támara e outras ativistas; Cicera Nunes e Zuleide Queiroz, que me “criaram” na academia; Chiara Ramos, Lívia Vaz, Dora Lúcia Bertúlio, Eunice Prudente, e outras juristas negras que sigo os passos no campo profissional do Direito; no referencial teórico e literário, destaco Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Benedita da Silva, Sueli Carneiro, Joselina da Silva... são muitas que me abriram caminhos e impulsionam a seguir adiante na luta.

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