25 de julho de 2023

Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha tem marchas em todo o país

 

"Afirmamos que nada, sobretudo a democracia brasileira, será feita sem nós, mulheres negras", diz manifesto do ato em São Paulo - Arquivo pessoal. 

Marchas, palestras, atividades culturais, rodas de conversa: o “julho das pretas”, mês que tem o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha nesta terça-feira (25), como data central, tem cerca de 450 atividades organizadas em 20 estados brasileiros neste ano de 2023.

Mulheres negras em marcha por reparação e bem viver” é o tema norteador das atividades e será também o eixo da Segunda Marcha Nacional das Mulheres Negras, prevista para 2025. A primeira aconteceu em 2015 e reuniu cerca de 50 mil mulheres em Brasília.  

Na capital paulista, a oitava Marcha das Mulheres Negras de SP tem concentração marcada para 17h desta terça, na praça da República. A caminhada em direção ao Teatro Municipal (onde foi fundado o Movimento Negro Unificado em 1978) começa às 19h30.

Nós, mulheres negras, indígenas e imigrantes em diáspora denunciamos o genocídio racista desde sempre. Mas o dia 25 de julho é um dia de celebração e também o momento de reafirmar que estamos em marcha por direitos e contra o genocídio do povo preto, dos povos indígenas, das LGBTQIA+, das vítimas do feminicídio, contra todas as formas de opressão e pelo Bem Viver”, ressalta o manifesto da Marcha das Mulheres Negras de SP.

Somos descendentes e herdeiras da luta e da resistência negra contra o criminoso sistema de escravidão que ainda não acabou, já que até hoje não recebemos a devida reparação necessária para o desenvolvimento da nossa cidadania plena”, reivindica o texto.

Em Vitória (ES), a praça Costa Pereira será ocupada nesta terça (25) das 10h às 18h pelo evento “Por todas nós”. Estão previstas exposição de fotos e gravuras, oficinas de escrita, de trança nagô, palestras e apresentações musicais com o grupo de rap Nação Mulher ES e a artista Sthelô com o instrumentista Igor Morais. 

Em Salvador (BA), a manifestação se concentra às 14h na praça da Piedade, com uma ocupação poética e intervenções artísticas. Em seguida, o ato segue para a Praça Terreiro de Jesus. 

O Latinidades, considerado o maior festival de mulheres negras da América Latina, começou em 6 de julho em Brasília e, de forma itinerante, passou pelo Rio de Janeiro, São Paulo e segue agora em Salvador até o próximo domingo (30). 

Com o tema “Bem viver”, o Latinidades apresentará, no sábado (29), o II Concerto Internacional Contra o Racismo. A atividade começa às 17h na praça Quincas Berro D’água, na capital baiana. 

Em Fortaleza (CE), nesta terça (25), um ato com debate está sendo organizado pelo Grupo de Valorização Negra do Cariri e a Rede de Mulheres Negras do Ceará, na praça da Gentilândia, às 18h. 

Em Belém (PA) a marcha, convocada pelo Coletivo de Juventude do Centro de Estudo e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), tem concentração marcada para 16h no Portal da Amazônia, também neste 25 de julho. 

Já em João Pessoa (PB), um cortejo deve começar às 18h na praça da Paz. Em Aracaju (SE), o ato está marcado para 14h na praça Olímpio Campos. 

Na região sul do país, na capital paranaense, uma marcha sob o título “Mulheres sagradas” acontece a partir das 19h na ladeira do Largo da Ordem, na centro de Curitiba (PR). 

No Rio de Janeiro, o ato vai ser no próximo domingo (30), na praia de Copacabana. Entre os temas pautados pelas organizadoras estão o combate à fome e às violências contra a juventude negra, o acesso à moradia e ao trabalho. 

A data

O 25 de julho começou a ser comemorado em Santo Domingo, na República Dominicana, onde aconteceu o primeiro encontro de mulheres negras latino-americanas e caribenhas em 1992. A partir daí, a data foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU). 

No Brasil, em 2014 a Lei 12.987 estabeleceu o 25 de julho também como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. A homenageada foi líder do Quilombo Quariterê no século 18, comunidade localizada na fronteira entre o Mato Grosso e a Bolívia.

Referida como “rainha”, Tereza esteve no comando do quilombo, que reunia cerca de 100 pessoas e se organizava politicamente por meio de um conselho, ao longo de duas décadas. 

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Com informações do Brasil de Fato.

24 de julho de 2023

Julho das pretas: conheça a trajetória da caririense Neusa Lourenço

 

Dona Neusa na calçada. (FOTO | Nicolau Neto).

Por Nicolau Neto, editor

O dia 25 de julho é uma data para ser celebrada. Isso porque internacionalmente desde 1992 em Santo Domingo, na República Dominicana, quando um encontro foi organizado por mulheres negras, latino-americanas e caribenhas objetivando debater temas que os uniam - como a luta contra o racismo -, que a ONU reconhece a data como Dia Internacional da Mulher Negra, Latina e Caribenha.

Já no Brasil, em 2014, durante o mandato da presidenta Dilma Rousseff, foi instituída a Lei 12.987, definindo na mesma data o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, em referência à memória da Rainha Tereza, mulher que ao conseguir a libertação, liderou o Quilombo do Quariterê, no Mato Grosso.

No ensejo em que várias homenagens irão ser feitas as mulheres negras espalhadas pelo país, como em Crato e em Juazeiro do Norte, por exemplo, onde a professora Drª Cícera Nunes (URCA) e a educadora popular Valéria Carvalho (GRUNEC) receberão a comenda Maria do Espírito Santo, aproveito para apresentar de forma sucinta a trajetória de Neusa Lourenço, minha mãe.

Neusa Lourenço, símbolo de resistência

Neusa Lourenço da Silva, ou simplesmente Dona Neusa, nasceu no distrito de Cajazeiras, em Assaré, no ano de 1948. Filha de Joana Tibúrcio do Amarante, mulher branca, e Antônio Lourenço da Silva, homem negro, compartilhou com seus oito irmãos - Armando, Aldino, Raimundo, José, Edilsa, Lieta, Zélia e Maronilde -, as dificuldades que a vida lhes impunham. Trabalharam desde cedo na roça e como era comum na época tiveram pouquíssimas oportunidades de estudarem.

Nos fins de tarde ela sempre gostava de sentar na calçada e logo ganhava a companhia dos filhos e filhas. Era nesse ínterim que as rodas de conversas de davam e as suas memórias ganhavam força nas palavras. De histórias de conflitos que ela se envolvia para livrar seu pai de enrascadas quando bebia a aventuras para matar a fome dos 10 filhos , estão entre aquelas mais contadas. “Teve um dia que pai bebeu muito e demorou a chegar. Fui a sua procura e me deparei com ele sendo maltratado. Nessa hora não contei conversa. Peguei nas partes baixas dele” (se referindo ao homem que estava maltratando o pai), diz ela entusiasmada toda vez que lembra do episódio “e só larguei quando ele pediu desculpas a papai”.

Dona Neusa. (FOTO | Nicolau Neto).

Ao se casar com João Nicolau da Silva, de quem é prima distante, não tinha onde morar e tiveram que viver de aluguel. Essa situação durou boa parte da vida. A mudança de casa e de cidade foi uma constante na vida do casal que acabou chegando em Altaneira no ano de 1990. Alguns anos depois o casal sofre o pior momento da vida, a morte do filho caçula Edson.

Em Altaneira, ela junto ao esposo enfrentam as maiores dificuldades para alimentar os filhos e filhas. Decide trabalhar como empregada doméstica no município de Crato. Enfrentou por mais de duas décadas a distância de 56 km entre as duas cidades andando no ônibus de seu Zé Lopes. Lá trabalhava lavando e passando roupa. A maior parte desse tempo foi na casa do casal Ednaldo Farias Solto (Mago), ex-prefeito de Altaneira, e Roberci Vânia Oliveira, hoje com assento de vereadora na Câmara de Altaneira.

Ela conta que só aguentava o trajeto porque sabia que era a única forma de ajudar na alimentação da família. Ela passava a semana no Crato e quando era no sábado meu irmão Neto e eu íamos espera-la na saída da cidade. A ansiedade era tamanha a espera dela. Toda vez que ouvíamos o barulho de um motor a esperança de um prato na mesa se renovava. As vezes passava de duas semanas no Crato e voltávamos para casa com um tristeza sem fim.

Com o dinheiro que ela trazia dava para comprar também bilas e piões. Junto com o futebol, essas eram as brincadeiras que mais gostávamos. Mas a alegria maior mesmo era revê-la.

Dona Neusa é uma mulher forte, persistente e que não desiste do que quer. Sempre fez de tudo para se defender e defender os filhos e filhas. “Nessa negra aqui ninguém pisa não”, dizia ela toda vez que era confrontada pelo racismo estrutural e institucional. “Aqui é uma negra que tem vergonha. Não se curva a ninguém”, contava ela cheia de orgulho quando tinha enfrentado situações que toda mulher negra enfrenta. Dizia olhando bem nos nossos olhos de forma a verbalizar: façam o mesmo.

A vida toda trabalhou também como agricultora. Tanto em Cajazeiras e Arassás, em Assaré, quanto em Altaneira. Com a idade já avançada e a proximidade da aposentadoria como agricultora, deixa o trabalho como empregada doméstica e se dedica exclusivamente aos afazeres de sua própria casa.

Dona Neusa Fazendo Crochê ao lado de sua mãe, Joana. (FOTO | Nicolau Neto).

Para uma mulher que viveu do trabalho e para o trabalho era difícil passar a maior parte do tempo sem fazer nada. Não contente com isso passou a usar o restante do tempo para costurar, cortar cabelo (os nossos) e fazer crochê.

A vitalidade dela era tamanha que durante anos, inclusive depois da casa do 60 (hoje ela tem 75), a levava de moto até o município de Potengi, também na região do cariri, para visitar a mãe (que já faleceu) e as irmãs e irmãos. Eram 116 km de ida e volta. Aliado a tudo isso gostava de cantar e dançar, principalmente forró e frequentou por vários anos as reuniões Centro de Apoio ao Idoso em Altaneira.

Hoje o cansaço de anos e anos de trabalho bateu forte e ela já não tem a mesma força que tinha antes. Enfrentou recentemente a cirurgia na visão e não tem mais o hábito de sentar na calçada para as rodas de conversas. Aliás, ela fala pouco agora.

Dona Neusa é, portanto, símbolo de resistência e de enfrentamento ao racismo. Ao tempo que foi e contiua sendo uma mãe amorosa e que sempre fez questão dos seus estudarem, mesmo tendo feito apenas a antiga quarta série. 

Ary Borges marcou três gols e o Brasil venceu Panamá na Copa do Mundo Feminina

 

Ary Broges marca três vezes na estreia do Brasil na Copa do Mundo Feminina. (FOTO | Getty Images | Elsa | FIFA).

Por Nicolau Neto, editor

Na manhã desta segunda-feira, 24, o Brasil entrou em campo para sua primeira partida na Copa do Mundo Feminina. O jogo de estreia não poderia ter sido melhor. O Brasil passeou em campo e não deixou as adversárias gostarem do jogo e goleou por 4 a 0.

Uma das estreantes, a atacante maranhense Ary Borges, fez uma partida de gala e marcou três vezes. Como grande nome deste jogo, ela que atua pelo Racing Louisville, dos Estados Unidos, ainda deu passe para o gol de Bia Zaneratto.

Marta, a principal referência do time e que joga sua última copa, só entrou no segundo tempo.

Com o empate entre França e Jamaica, o time brasileiro termina na liderança do grupo F nesta primeira rodada e vai defender o primeiro lugar no jogo contra as francesas no próximo sábado, 29, a partir das 7h00 da manhã (horário de Brasília).

23 de julho de 2023

Conheça Beatriz Nascimento, intelectual negra que inspira cientistas

 

Beatriz Nascimento. (FOTO | Arquivo Nacional).


Negra, migrante, nordestina e mulher, a historiadora Beatriz Nascimento (1942-1995) foi uma das principais intelectuais do país, com contribuições fundamentais para entender a identidade negra como instrumento de autoafirmação racial, intelectual e existencial. Ela desenvolveu pesquisas sobre o que denominou de “sistemas sociais alternativos organizados por pessoas negras”, investigando dos quilombos às favelas. A partir desta quinta-feira (20), Beatriz dá nome ao "Atlânticas - Programa Beatriz Nascimento de Mulheres na Ciência", primeiro programa do governo federal direcionado exclusivamente a mulheres cientistas negras, indígenas, quilombolas e ciganas.

Segundo a Enciclopédia de Antropologia da Universidade de São Paulo, Maria Beatriz Nascimento nasceu em Aracaju. É a oitava filha de Rubina Pereira do Nascimento e Francisco Xavier do Nascimento, que migraram para a cidade do Rio de Janeiro no final de 1949.

Beatriz ingressou no curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no ano de 1968, concluindo a graduação em 1971, aos 29 anos de idade. Sob orientação do historiador José Honório Rodrigues, ela realizou estágio de pesquisa no Arquivo Nacional e trabalhou como professora de história da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro.

A historiadora se especializou em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense (UFF) quando, em 1974, participou da criação do Grupo de Trabalho André Rebouças e, em 1975, do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN). Com o sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira (1923-1980), a filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez (1935-1994) e o jornalista Hamilton Cardoso (1953-1999), ela partilhou pesquisas e militâncias.

Durante a Quinzena do Negro, evento ocorrido na Universidade de São Paulo (USP) em 1977, Beatriz apresentou a conferência Historiografia do quilombo, delineando os contornos do que ela desenvolveria, posteriormente, como espaços de resistência cultural negra: dos bailes blacks aos territórios de favelas, esses espaços constituiriam uma identidade negra como instrumento de autoafirmação racial, intelectual e existencial, além de território simbólico ancorado no próprio corpo negro.

Em 1979, em viagem ao continente africano, a autora conheceu territórios de antigos quilombos angolanos e reafirmou a vinculação entre as culturas negras brasileira e africana. No documentário Ôrí, lançado em 1989, dirigido pela cineasta e socióloga Raquel Gerber, Beatriz narra parte da trajetória dos movimentos negros no Brasil entre 1977 e 1988, ancorando-se no conceito do quilombo como ideia fundamental, que atravessa sua própria narrativa biográfica, para retraçar continuidades históricas entre o quilombo e suas redefinições nos dias atuais.

Beatriz escreveu uma série de textos, poemas, roteiros, ensaios e estudos teóricos, entre os quais se destacam Por uma história do homem negro (1974); Kilombo e memória comunitária: um estudo de caso (1982) e O conceito de quilombo e a resistência cultural negra (1985).

Em 1995, a historiadora é vítima de feminicídio, aos 52 anos de idade. Pelas suas importantes contribuições à pesquisa acadêmica, em outubro de 2021 é outorgado a ela o título póstumo de Doutora Honoris Causa in Memoriam pela UFRJ. Ao lado de Lélia Gonzalez (1935-1994), Sueli Carneiro (1950-) e Luiza Bairros (1953-2016), Beatriz figura como umas das mais importantes intelectuais negras brasileiras.

Beatriz Nascimento é uma das intelectuais mais brilhantes que esse país já teve e que, infelizmente, teve a vida interrompida de maneira muito precoce em razão do feminicídio”, ressalta a professora de História e mestra em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto Luana Tolentino.

Segundo Luana Tolentino, a historiadora é uma grande inspiração para as pesquisadoras negras. “Beatriz Nascimento abriu portas para que a minha geração pudesse entrar. Sou da década de 1980, então sou dessa geração que tem tido a oportunidade de exercer o direito de estar na universidade também em função da política de cotas. A luta contra o racismo da Beatriz Nascimento foi fundamental para construção dessas políticas públicas de promoção da igualdade racial e também como um incentivo, como farol para nós pesquisadoras negras, mulheres negras”.

As pesquisadoras negras precisam enfrentar diversos desafios, afirma Luana. “O primeiro desafio é justamente o racismo que orienta a sociedade brasileira, que dificulta de todas as maneiras o acesso das mulheres negras à universidade. Temos a política de cotas, que é um marco na história do país e que sem sombra de dúvidas tem sido fundamental para dar novos contornos, novas cores à universidade, mas ao mesmo tempo, há uma série de barreiras que dificultam o acesso das mulheres negras ao ensino básico. Entre os grupos sociais que não tiveram oportunidade de frequentar a escola, as mulheres negras são maioria”, explica Luana Tolentino.

O outro ponto destacado pela professora, é que ao chegar na universidade as pesquisadoras precisam enfrentar o olhar de desconfiança com o qual as são vistas, também motivado pelo racismo.

Vivemos em um país em que ainda há uma expectativa de que, nós mulheres negras, estamos nesse mundo apenas para servir e limpar a sujeira dos outros. Estamos em um país que ainda tem dificuldade de pensar nas mulheres negras como pesquisadoras, como intelectuais, como produtoras de conhecimento. Mas, a despeito de tudo isso, nós estamos em um número muito significativo na universidade, acho que como Beatriz Nascimento sonhou. Nós que já estamos [na universidade] precisamos assumir o compromisso de abrir tantas outras portas para que outras mulheres negras possam entrar e garantir o direito humano à educação e ao ensino superior”.

Luana Tolentino é autora dos livros Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula (Mazza Edições) e Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil (Papirus 7 Mares).

Programa

O Atlânticas - Programa Beatriz Nascimento de Mulheres na Ciência quer fortalecer as trajetórias acadêmicas dessas mulheres oferecendo bolsas de doutorado e pós-doutorado sanduíche no exterior. O governo federal vai investir aproximadamente R$ 7 milhões, resultado da parceria entre o Ministério da Igualdade Racial com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e o Ministério das Mulheres (Mmulheres).

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Texto de Ludmilla Souza, na Agência Brasil.

22 de julho de 2023

“Barbie para mim nunca foi inspiração, apenas frustração mesmo”, diz bonequeira do Cariri

 

Atriz e professora, essa jovem bonequeira diz que a “Barbie para mim nunca foi inspiração, apenas frustração mesmo”. (FOTO | Arquivo pessoal).


Durante a travessia dessa onda rosa que inunda o país com o lançamento do filme Barbie, trago aos leitores um socorro capaz de evitar o afogamento em tanto colonialismo.

É possível entender o fenômeno com a ajuda das bonequeiras do Cariri. São artesãs que tecem bonecas de pano sob a sombra de nossos telhados sem forro, alpendres e mangueiras.

Elas têm algumas palavras a dizer sobre a boneca criada nos EUA pelo casal Ruth e Elliot Handler no final da década de 1950 como forma de materializar a mulher que deixava os afazeres domésticos para ser dona do seu tempo e conquistar o seu espaço.

Se naquele país a Barbie pode ter representado um avanço sobre o patriarcado, a chegada dela ao Brasil — com o seu corpo longilíneo e cabelos loiros — teve outros significados para milhões de brasileiras que não se viam naquele ideal de beleza.

“Barbie para mim nunca foi inspiração, apenas frustração mesmo”, afirma Simony Vieira.

Atriz e professora, essa jovem bonequeira precisa ser ouvida mais atentamente, porque o seu trabalho despertou o sonho infantil de milhões de brasileiras e o dela própria.

Simony Vieira cria bonecas negras como ela. São pretas e pardas, nos detalhes: cabelo crespo, nariz e lábios grossos. Mulheres não brancas, não loiras, como são a maioria das brasileiras.

Respondendo a demandas do mercado, a Barbie foi ganhando versões com diversidade, inclusive com deficiência, mas a loira permaneceu como o estereótipo.

Sabemos que existe a Barbie negra, mas precisamos analisar. Essa boneca é como se eles tivessem pego boneca branca e apenas pintado de preto. O nariz, os olhos são os mesmos. Não tem as características dos nossos ancestrais, nosso nariz, nosso cabelo, o formato da curva do corpo, diz Simony.

Realmente, o formato do corpo da Barbie é tão idealizado que, se fosse realmente humana, talvez nem parasse em pé. Mas num país como o Brasil, cuja população padece de sintomas graves de colonialismo, a Barbie dobrou a aposta na exclusão.

Já houve um tempo em que assistir à TV neste país era como estar na Suécia. Hoje, com um pouco de inclusão, já estamos ficando parecidos com, ironicamente, os EUA, onde a principal apresentadora é uma preta, Oprah Winfrey. Mas estamos longe de sermos nós mesmos, pardos, negros, miscigenados em maioria, loiros em minoria.

Porém, quando se vê uma correria ao cinema de forma tão acrítica, com uma explosão de conteúdo de marketing na cor rosa, parece que os passos dados à frente no processo civilizatório carecem de firmeza.

Como negra e como mãe de uma menina negra, que está para nascer, eu me preocupo com esse ideal de beleza”, disse Simony.

Felizmente, a brasileira que está por nascer terá para brincar bonecas feitas pela própria mãe nas quais vai poder inspirar-se de forma real, confortável e inclusiva.

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Texto de Paulo Henrique Rodrigues, no Diário do Nordeste.

Governo federal propõe que ataques a escolas se tornem crimes hediondos

 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa de cerimônia de lançamento do Programa de Ação na Segurança (PAS), no Palácio do Planalto. (FOTO |Marcelo Camargo |Agência Brasil).


Como parte do Programa de Ação na Segurança (PAS), o governo federal vai encaminhar um projeto de lei (PL) ao Congresso Nacional. O anúncio da proposta foi feita em cerimônia no Palácio do Planalto nesta sexta-feira (21).

Segundo o governo, a proposta acata um pedido das famílias das quatro vítimas do ataque a uma creche em Blumenau (SC), ocorrido em abril deste ano. Em 2023, ao menos sete pessoas foram mortas em ações deste tipo.

No texto - cujo encaminhamento ao Congresso ainda deve ser formalizado - homicídios e lesões com resultado morte ocorridos em unidades escolares entram no rol de crimes hediondos, estabelecido na Lei 8.072 de 1990. A principal diferença entre crimes hediondos outros crimes é a inexistência de possibilidade de fiança e a vedação de concessão de graça, indulto ou anistia. Além disso, os prazo para progressão de regime são maiores.

Além de ingresso no rol de crimes hediondos, o texto prevê também que esse tipo de ação seja tipificada como crime qualificado - o que implica em pena maior. Com isso, a pena deverá aumentar em um terço para mortes em escolas. Caso a vítima seja pessoa com deficiência ou com doença que implique maior vulnerabilidade, a sanção pode aumentar em até 50%. No caso do autor ser ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima, a pena pode crescer em dois terços.

No caso de agressões, a ideia é que um novo tipo penal seja criado, chamado Violência em Instituições de Ensino. A proposta é que nas modalidades grave, gravíssima, lesão corporal seguida de morte ou cometido contra pessoa com deficiência, a pena deste novo crime seja aumentada em um terço.

De acordo com o Lula, o pacote da segurança pública é mais um dos esforços do governo federal para "trazer o país de volta à normalidade", uma das tônicas da campanha eleitoral em 2022.

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Com informações do Brasil de Fato.

Potengi - CE: população reclama de más condições de transportes

 

(FOTO | Reprodução | encaminhado à redação do blog).

Circula nas redes sociais um vídeo que mostra o prefeito de Potengi, Edson Veriato (PT) denunciando o descaso do transporte escolar, em um movimento na cidade, em 2020.

No vídeo, Edson começa dizendo que não podia “ficar calado” diante do descaso com o transporte escolar no Potengi.

É extremamente importante essa manifestação, pra tentar garantir pelo menos respeito, já que muito tempo essa situação vem se arrastando. Além de estar na rua, é preciso também garantir documentos que venha efetivar esse direito que é ter transporte escolar de qualidade”, afirma.

Em um segundo trecho, Edson comenta sobre o estado dos ônibus escolares. “Deparamos hoje com uma situação terrível por conta da má condição dos transportes escolares, na sua maioria com pneus carecas, portas são trancadas com cadeados por fora, tetos são segurados com cabos de vassouras.”

Segundo alguns moradores do município, o desrespeito com Potengi vem de muito tempo. “Esse prefeito aí [Edson Veriato] denunciou a falta de transporte escolar de qualidade pela gestão passada. Só que ele tá fazendo do mesmo jeito. Não somos bestas!”, afirmou uma moradora.

As crianças sendo prejudicadas por falta de transporte p levar elas para escola. Quando chega algum ônibus, é sucateados, sem o mínimo de segurança. Eu fico com o coração na mão quando minha neta entra em um ônibus escolar de Potengi pra escola. O povo não aguenta mais tanta mentira prefeito. O senhor tá fazendo do mesmo jeito da gestão passada. O senhor tá mentindo para o povo”, disse uma moradora que preferiu não se identificar.

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Texto encaminhado a redação do blog por Gabrielly, do blog do Boa.

Em tempo: a redação do blog informa que o espaço está aberto caso a administração de Potengi queira se manifestar.

21 de julho de 2023

Nzinga Mbandi, a saga e o trono da rainha resistente

 

Figura 01. Retrato de Nzinga Mbandi em um pergaminho conservado no mosteiro de Coimbra, ilustração presente na obra: BRÁSIO, Antônio. Monumenta Missionária Africana. Lisboa: A.G.U. 1952, 11vol. 

Por César Pereira, Colunista

Em 1571 o rei de Portugal Dom Sebastião determinou a organização de uma política colonizadora para as terras portuguesas nos territórios africanos conhecidos hoje como Angola. O objetivo do monarca europeu era criar uma estrutura colonial semelhante àquela que já estava em desenvolvimento no Brasil desde 1530.

As atividades coloniais dos portugueses na África Austral (região do continente africano onde se localiza hoje Angola, Namíbia, África do Sul, Zimbábue, Moçambique, Zâmbia), já vinham sendo desenvolvidas desde os fins do século XV. Durante a primeira metade do século XVI tinham se restringido a contatos comerciais de ordem diversa: trocas de produtos africanos (noz-de-cola, metais, metais preciosos, peles, marfim), mas também escravos.

Após a consolidação do projeto de colonização efetiva das terras da América Portuguesa (Brasil) e a organização da produção da lavoura de cana-de-açúcar e açúcar nos engenhos a necessidade de mão-de-obra escravizada aumentou a demanda pelo tráfico de seres humanos escravizados na América. Assim, a partir da década de 1550 à medida que o tráfico de escravizados se intensifica e vai gerando maiores lucros, cresce a necessidade do governo português organizar este comércio de seres humanos e isto só poderia ser feito controlando as feiras no continente africano que era onde se comercializava os trabalhadores escravizados.

Após a morte de Dom Sebastião na batalha de Alcácer Quibir em 1578, o Reino de Portugal passou a enfrentar uma séria crise política, pois o rei morto não deixou sucessores diretos ao trono, seu parente mais próximo era o tio Dom Henrique, um cardeal da Igreja Católica que assumiu o trono com sessenta e oito anos e morreria no começo de 1580 deixando os portugueses sob o comando da dinastia dos Habsburgos que governavam a Espanha onde reinava Filipe II.

A ascensão de Filipe II ao trono português sob o título de Filipe I não alteraria significativamente a administração das colônias portuguesas nem na América nem tampouco na África. A burguesia lusitana firmara acordo com o rei espanhol e seus representantes para que mantivesse os territórios ultramarinos como possessões de Portugal se comprometendo a não os reverter em províncias espanholas.

Portugal ficaria sob domínio espanhol de 1580 até 1640, foi neste período que se intensificaram os esforços dos colonizadores portugueses para conquistar e avassalar todo o território do Reino de Ndongo, área da África Austral ocupada por vários povos desde os séculos V e VI da era cristã e que hoje abriga principalmente o território da República de Angola.

O processo de formação do Reino de Ndongo ocorre ao longo de boa pare do século XVI, a centralização política do reino se dar em torno de lideranças religiosas e ancestrais conhecidas como ngola. Inicialmente ngola são pedaços de ferro esculpidos, insígnias de poder que permite quem as recebe estabelecer a comunicação entre o mundo dos vivos e dos mortos.

Aos poucos uma das linhagens portadoras do ngola vai estabelecer alianças com outras linhagens e assim formarão uma vasta família com poderes religiosos e políticos. Estas linhagens escolherão um líder para comandá-las e assumir o governo sobre elas e sobre as terras nas quais viviam com seus servos, escravos e parentes cultivando o solo e criando animais.

O Ngola, título que recebia o rei sacerdote logo passou a atuar militarmente sobre outros povos do território banto. Formando um poderoso exército esse Ngola vai expandir suas conquistas para os lados dos rios Bengo, Kwango e Kuvo, áreas de solos férteis e ricas em minerais, assim o poder do Ngola cresce à medida que ele vai submetendo outros chefes de tribos, e outros reinos ao seu comando.

Com o estabelecimento de uma intrincada rede de linhagens que lhe garante a sustentação no trono o Ngola passa a se constituir como a mais importante autoridade na região e logo se tornará um problema para o projeto de colonização portuguesa. Mas à medida que este Ngola se impunha como autoridade política e militar aos diversos reinos e povos do território banto, também atraía sobre si uma série de inimigos, será com a ajuda desses inimigos que as autoridades coloniais irá mover a guerra contra o Ngola-Kiluanje a fim de impor a este uma vassalagem ao império colonial português.

O Ngola era considerado sagrada pelos seus súditos que acreditavam nos poderes deste para controlar a chuva, a cheia dos rios, a fertilidade do solo e as boas colheitas. Concentrando assim poder religioso, político e militar o Ngola se torna uma força para se impor tanto ao poderio colonial quanto ao domínio do Reino Congo.

O Reino Congo tinha sido um poderoso império Centro-africano entre os séculos XIV e XV, mas no século XVI entrou em colapso à medida que os povos que estavam sob controle do manicongo (o imperador) se rebelaram e foram se proclamando soberanos. Ainda na primeira metade do século XVI os ambundos, povo da região que hoje compreende o território da Angola e da República Centro-africana estavam politicamente submetidos ao Reino Congo, mas em 1556 sob a liderança do Ngola-Kiluanje (Rei dos Ambundos), venceram o manicongo na batalha de Ndande e alcançaram a soberania.

Ao longo da segunda metade do século XVI os ambundos governados pelo Ngola-Kiluanje vão expandir seus domínios sobre outras regiões da África central e Austral, várias províncias do Reino Congo serão submetidas e os chefes locais reduzidos a condição de vassalos do Ngola-Kiluanje irão aliar-se aos portugueses na esperança de se ver livres dessa vassalagem.

Foi desse modo que se formou o poderoso Reino de Ndongo no território que hoje conhecemos como sendo a República de Angola. Será este reino que procurará se impor contra o avanço português ao longo do século XVII, seus reis resistirão através de uma longa luta armada contra o assédio do dominador europeu que procurava controlar todo a região e assim explorar livremente o comércio de escravizados, como também dos produtos da terra: ouro, prata, ferro, marfim, madeira, peles, alimentos.

A economia do Reino de Ndongo era agrária, mas o comércio era igualmente muito importante para os povos que o compunham. Através de rotas de comércio terrestres e fluviais os ambundos mantinham uma intensa relação de trocas comerciais e culturais com outros povos do centro e do sul da África. A organização política e a segurança que as forças militares do Ngola proporcionavam garantiram um rápido crescimento populacional do Ndongo como também seu enriquecimento.

Além dos lucros auferidos pelo comércio e agricultura havia também os basculamentos (tributos) pagos ao Ngola pelos sobas (chefes locais) avassalados ao Reino de Ndongo. Assim quando os portugueses passaram a investir fortemente no projeto colonizador de Angola, as forças políticas e militares do Ndongo foram uma barreira de resistência a qual precisaram vencer para impor seu domínio sobre a região.

O primeiro donatário do território do Reino de Ndongo e Angola foi Paulo Dias de Novais que recebeu carta de doação da terra das mãos do rei Dom Sebastião. Deveria tomar posse das terras, vencer os resistentes, converter os sobas em vassalos e manter o Ngola-Kiluanje sob seu controle. A ação dos colonizadores para controlar a região deveria partir do litoral para o interior seguindo o curso do Rio Kwanza.

Seguindo o plano traçado pelo governo lusitano os colonizadores construíram uma fortaleza-prisão na área da baía de Loanda a qual deram o nome de Presídio de São Paulo de Loanda, esta construção serviria durante séculos como ponto estratégico de onde eram planejadas as ações de colonização do território angolano.

Nas décadas de 1580 a 1610 a ação colonizadora foi se impondo lentamente, pois a resistência do Ngola-Kiluanje impedia grandes avanços do projeto de colonização. Para facilitar a penetração do poderio lusitano os sucessivos governadores de Angola concentravam suas ações de dominação sobre os sobas vassalos de Ndongo.

Aproveitando-se do descontentamento destes sobas com relação ao seu soberano, as autoridades portuguesas acabavam submetendo estes sobas prometendo-lhes proteção militar contra o exército do senhor de Ndongo, em troca dessa proteção os sobas remetiam aos portugueses cerca de cem escravizados por ano.

Na prática o que acontecia aos sobas sublevados contra o Ngola-Kiluanje era passa da condição de vassalos de Ndongo para a situação de vassalos do Reino de Portugal. Ao perder sua autoridade para o colonizador os sobas se submetiam também a obrigação de remeter escravizados para os acampamentos portugueses, logo as feiras que se instalavam por boa parte do território angolano se tornariam frementes mercados de escravizados e o comércio de seres humanos cresceria a tal ponto que já na década de 1630 a moeda mais valiosa nestas feiras eram homens e mulheres jovens escravizados.

Durante a década de 1610 intensificou-se a “Guerra Preta”, conflito entre os vários grupos em disputa pela hegemonia política sobre as terras dos vales do Rio Kwanza e Kuvo. Os sobas submetidos ao controle dos portugueses se viram obrigados a ofertar ao colonizador soldados para lutares contra o Ngola-Kiluanje, também se tornou obrigação desses sobas dar proteção aos presídios e fortalezas erguidos pelos portugueses.

O engajamento de soldados negros no exército colonizador era tão grande que aos lusitanos cabia tão somente o trabalho de comandar os exércitos de negros combatentes. Essas “Guerras Pretas” foram fundamentais para os portugueses efetivarem seu projeto de dominação territorial, pois a a medida que iam submetendo os sobas conseguiam arregimentar mais soldados negros que conheciam muito bem o território onde se deslocavam para combater o Ngola-Kiluanje.

Na década de 1620 os embates dos colonizadores contra o Reino de Ndongo se intensificará com a incorporação dos jagas (povo guerreiro e de mercenários da África central) primeiro aos exércitos coloniais e posteriormente ao exército de Ndongo.

Os jagas eram uma força militar importante na região, pois formava uma sociedade guerreira, homens e mulheres adestrados nas armas. Sua organização política era matrilinear, isto é baseada na autoridade de uma rainha-mãe e guerreira que encarnava as potências ancestrais e sobrenaturais. Inicialmente os jagas foram aliciados pelos sobas avassalados dos portugueses e passaram a combater ao lado do colonizador, mas algum tempo depois viram na liderança de Nzinga Mbandi a representação de sua grande rainha guerreira e se aliaram aos Ambundos contra o colonizador.

A ação política de Nzinga Mbandi começa de fato em 1622, quando seu irmão Ngola Mbandi a envia com uma embaixada para negociar a paz com os portugueses em Luanda. Neste momento Nzinga Mbandi era uma princesa do Reino de Ndongo governado pelo seu irmão Ngola Mbandi que assumira o trono em 1617.

Mesmo antes do reinado de Ngola Mbandi o Reino de Ndongo já se via fortemente ameaçado pelo poderio militar dos lusitanos fortalecidos com a aliança dos jagas. Em 1619 o exército jaga liderado pelo chefe Jaga Cassange entrou na capital do Reino de Ndongo obrigou Ngola Mbandi a fugir para a Ilha de Kindonga e assim assumiu na prática o controle sobre o reino.

No entanto Jaga Cassange recusou-se a entregar o controle do Reino de Ndongo a Luiz Mendes de Vasconcelos governador português de Angola e declarou-se inimigo dos lusitanos. Aproveitando-se desta cisão na aliança de seus inimigos Ngola Mbandi decidiu aceitar a proposta de paz com os portugueses que o haviam procurado para formar uma coalizão contra Jaga Cassange.

Para conseguir firmar aliança com o Reino de Portugal a embaixada presidida por Nzinga Mbandi deveria convencer o novo governador de Angola de que Ngola Mbandi garantiria a restituição aos portugueses das fortalezas tomadas pelos jagas, além disso o Ngola teria que garantir a segurança das feiras e o livre trânsito dos colonizadores pelo território de Ndongo.

O que os portugueses desejavam era um completo avassalamento de Ngola Mbandi a autoridade portuguesa. Mas a princesa Nzinga Mbandi não se disporá a aceitar as condições de paz humilhantes oferecidas pelo governador e é neste momento que a sua personalidade guerreira e sua inteligência política começa a se sobressair.

Nzinga Mbandi nasceu em 1582, era fila do Ngola-Kiluanje e uma de suas muitas concubinas. Foi criada na corte como uma princesa apta a fazer aumentar a linhagem do Ngola, isto é, de acordo com as leis dos ambundos, Nzinga deveria assumir posição de fundamental importância junto a seu pai na manutenção e expansão das linhagens reais.

Como princesa escolhida para expandir a linhagem do Ngola ela foi adestrada nas artes da guerra, recebeu também excelente instrução política e teve o privilégio de receber os conhecimentos do seu pai. Quando este veio a falecer em 1616 assistiu a sangrenta ascensão de seu irmão Ngola Mbandi ao trono do Ndongo.

Na sua luta pelo poder Ngola Mbandi matou o próprio sobrinho herdeiro natural do trono, exilou as irmãs e mandou executar todos aqueles que se opunham ao seu poder. Nzinga Mbandi e suas irmãs só puderam retornar do exílio quando o rei Ngola Mbandi percebeu que não ofereciam nenhum perigo a sua autoridade e principalmente quando compreendeu que precisava delas para negociar a paz com os portugueses e assim ser restituído ao trono de Ndongo.

Nzinga Mbandi chegou em Luanda para encontrar-se com o governador português acompanhada de grande séquito e foi recebida com cordialidade pelos lusitanos. Para mostrar disposição em negociar aceitou o batismo e recebeu na pia batismal o nome de Ana de Sousa. Mas logo ela percebeu que o governador João Correia de Souza que assumira o governo em 1621 não tinha intensão alguma de tratá-la como uma princesa e como sua igual.

Logo também compreendeu que os portugueses estavam ali para exercer completo controle sobre o povo e o território, assumir também o controle sobre as feiras e rotas de comércio. Desse modo, estabeleceu apenas acordos frouxos e sem nenhum compromisso militar ou político consistente com o governador e voltou a Kindonga. Sem nenhuma perspectiva de recuperar seu trono ou derrotar os jagas e sem apoio formal dos portugueses Ngola Mbandi suicidou-se em 1624, deixando o trono para seu filho ainda criança.

É neste momento que Nzinga Mbandi se faz a rainha de Ndongo. Imediatamente a morte do irmão ordena a execução dos seus aliados e principalmente do herdeiro do trono. Tendo eliminado a linhagem do antigo Ngola ela propõe então sua própria linhagem como autoridade política sobre os ambundos.

Nzinga Mbandi toma para si todas as insígnias de poder e é reconhecida como a legítima sucessora de Ngola-Kiluanje seu pai. Vai se tronar assim a rainha de Ndongo, um reino dominado pelos jagas e um território em colapso devido a dissolução do poder do Ngola sobre os sobas que estão em grande maioria sublevados. Além dos problemas de ordem interna Nzinga Mbandi precisará vencer a ameaça dos portugueses que a veem não como uma aliada, mas uma poderosa inimiga.

Logo após a ascensão de Nzinga Mbandi ao trono do Reino de Ndongo as autoridades portuguesas e os traficantes de seres humanos escravizados começam a preocupar-se com o rápido aumento das deserções dos soldados que formavam o grosso do exército colonial lusitano em Angola, com as fugas de escravizados, todos buscando proteção no território controlado por Nzinga ou se incorporando ao seu exército antilusitano.

Além das fugas dos escravizados que se refugiavam sob a proteção da rainha Nzinga Mbandi e dos soldados que se convertiam em guerreiras da rainha de Ndongo, os sobas antes avassalados ao governo português se rebelavam e se bandeavam para os lados de Nzinga. Rapidamente as autoridades coloniais perceberam a deterioração do seu domínio sobre Angola e o fortalecimento do poder da rainha que se impunha como a maior força política e militar dos ambundos.

Procurando enfraquecer a autoridade de Nzinga Mbandi o governador Fernão de Souza determinou a destituição da rainha do trono de Ndongo. Impossibilitado de vencer Nzinga pelas armas, pois estava com suas forças militares reduzidas o governador optou por desfechar um golpe político contra a rainha. Em 1626 anunciou publicamente que o governo português já não considerava Nzinga sua aliada e decretou-a destituída do trono de Ndongo e substituída pelo rei Are-Kiluanje.

O aparecimento de um novo pretendente ao trono de Ndongo representava para Nzinga Mbandi a necessidade de continuação das “Guerras Pretas”, pois para ela ficava evidente que o governo português pretendia continuar lançando as lideranças políticas de Dongo umas contra as outras para enfraquecê-las e desse modo alcançar o avassalamento completo do povo ambundo.

Ainda procurando evitar a continuidade das “Guerras Pretas” Nzinga enviou emissários aos representantes do governo português em Luanda para selar um acordo de paz e evitar a chegada de Are-Kiluanje ao trono, pois de acordo com as leis do parentesco que regiam a política sucessória de Ndongo este não passava de um soba vassalo seu. A via diplomática para a solução do impasse proposta por Nzinga fracassou, pois o governador-geral já havia declarado a rainha de Ndongo como inimiga de Portugal.

Temendo ver sua autoridade se esvaziar Nzinga Mbandi decide partir para o confronto direto com os inimigos. Determina então a prisão de Are-Kiluanje e seu avassalamento forçado, desse modo a comitiva de Are-Kiluanje que viajava desde a fortaleza de Ambaca foi atacada e apesar do rei-vassalo dos lusitanos ter escapado os aliados de Nzinga conseguiram matar três portugueses e conduzir outros seis a prisão.

Imediatamente o governador-geral Fernão de Souza deu ordens ao Bento Banha Cardoso para recrudescer a guerra contra Nzinga Mbandi e impor a autoridade portuguesa em todo território angolano. Tem início uma sangrenta guerra de perseguição lusitana contra a rainha Nzinga, esta é atacada em seu território nas ilhas do Rio Kwanza, mas consegue escapar e se refugia em Libolo, território dos Jagas.

A chegada de Nzinga Mbandi o kilombo dos jagas foi importante tanto para a rainha quanto para este povo, pois ela com sua grande capacidade de mobilização militar e sua inteligência política conseguiu rapidamente reunir os guerreiros jagas sob sua liderança e foi escolhida pelo Jaga Caza como Tembanza, rainha jaga, isto é, uma autoridade política, religiosa e guerreira dos jagas.

A partir desse momento, Nzinga Mbandi conseguirá unificar os jagas em torno de um inimigo comum, os portugueses, e este povo que até então havia agido como mercenários de guerra aliando-se a quem lhe oferecesse maiores ganhos passará a lutar ao lado de Nzinga contra a colonização de Angola.

O poder bélico de Nzinga Mbandi tornou-se o mais temido pelos portugueses na África, pois os guerreiros jagas agora sob sua liderança eram os melhores combatentes do território banto e foi com esta nova força militar que a rainha e seu general Jaga Caza avançaram por todo o território de Ndongo conquistando novos aliados e submetendo os resistentes.

Com o fortalecimento da liderança de Nzinga Mbandi e o esvaziamento da autoridade do rei-fantoche Ari-Kiluanje as rotas de comércio portuguesas em terra e nos rios foram interrompidas, as feiras foram dissolvidas, o tráfico de escravizados do interior de Angola e de outras áreas da África central para o porto de Luanda foi drasticamente interrompido. A fuga de escravizados buscando a proteção de Nzinga tornou-se um transtorno para os portugueses que viram seu lucrativo comércio de seres humanos prejudicados pela ação guerreira de Nzinga Mbandi e seus aliados.

Em 1629 o governo de Portugal determinou a destruição imediata do kilombo de Nzinga Mbandi e a consolidação do poder Ngola Kiluanje o sucessor de Are-Kiluanje como o novo rei de Ndongo. O ataque ao kilombo onde Nzinga se encontrava não surtiu o efeito que os portugueses esperavam, pois, a rainha conseguiu escapar e abrigar-se junto ao Jaga Cassanje na região do Songo.

Jaga Cassanje era um velho inimigo dos portugueses, vinha dificultando seu domínio sobre a férteis áreas dos vales dos rios Kwanza e Kuvo desde os fins da década de 1610, agora sua aliança com Nzinga Mbandi poria definitivamente em cheque as pretensões colonialistas lusitanas sobre Angola.

Nzinga Mbandi soube manipular com destreza política a inimizade do Jaga Cassanje contra os portugueses e trouxe-o para seu lado, impondo assim duro golpe as ambições políticas e econômicas lusitanas no território de Ndongo. A década de 1630 representou então a consolidação do poder político de Nzinga sobre todo o Ndongo. Fortalecida com a aliança com jagas e sob a liderança de muitos sobas seu poder aumentou e assim se impôs como uma força política e militar contra os colonizadores.

Foi assim que em 1630, Nzinga Mbandi conseguiu conquistar o Reino de Matamba e assumiu os títulos da linhagem desta sociedade, fazendo-se imediatamente a rainha que concentrava em suas mãos poderes sobre todos os sobas e sobre todas as terras da África central.

Para consolidar sua autoridade ainda mais, Nzinga Mbandi ordenou a formação de uma grande confederação sob seu comando político. Esta confederação tinha como principal objetivo minar toda e qualquer presença lusa em Angola.

As autoridades portuguesas viram ao longo da década de 1630 e 1640 seus domínios coloniais passarem rapidamente para as mãos de Nzinga Mbandi. As rotas do comércio de seres humanos e das drogas do sertão foram interrompidas, as feiras onde o comércio dos escravizados e outros produtos foram dissolvidas e seu controle sobre o território angolano se restringiu aos arredores de Luanda.

Imediatamente os colonizadores iniciaram toda uma campanha difamatória contra Nzinga Mbandi. O catecismo ensinado nas igrejas passou a veicular a imagem da rainha como praticante do canibalismo, cria-se a imagem de Nzinga como uma prostituta que em mantém em sua corte um harém masculino com centenas de homens para satisfazê-la sexualmente.

As imagens de Nzinga Mbandi passam então a representar uma mulher que assume o papel masculino, atributos guerreiros interditos às mulheres e agindo como tal, ela se equipara não aos homens, mas subverte a ordem de Deus, as leis divinas, de tal modo que os portugueses passam a associá-la as imagens demoníacas.

Rapidamente o nome Nzinga Mbandi passa a representar os atributos de alguém que se associa as potências malignas da natureza. A rainha vai ser classificada como bruxa associada ao demônio, comedora de gente, distribuidora da guerra e da peste, causadora de fome e sofrimento. Os portugueses procurarão por meio desta propaganda negativa da rainha Nzinga combater a visão de guerreira e líder política que age em defesa do Reino de Ndongo e da ancestralidade de seu povo.

Nas páginas dos relatos dos padres e escritores que viveram em Angola no período do reinado da rainha Nzinga sua representação aparece sempre como uma propaganda destacando aspectos negativos de sua personalidade e comportamento.

O objetivo destas gravuras é difundir para a época e para toda a posteridade uma visão amplamente negativa da rainha Nzinga Mbandi. OS pretos deveriam ver nela não uma liderança contra a dominação lusitana e contra o tráfico de seres humanos escravizados, mas uma mulher aliada ao demônio, sem a aura de heroísmo a rainha Nzinga não poderia ser elevada a símbolo de resistência e lutas pretas.


A imagem acima criada no século XVII e publicada em 1965 pela ditadura salazarista em Portugal procurava ainda no século XX, divulgar uma representação de Nzinga Mbandi como uma mulher que ao assumir a posição de liderança política em Angola age de forma autoritária, discricionária e de modo desumano.

Na imagem observamos o governador branco e o capitão-mor, ambos portugueses agindo como homens civilizados em posições mais elevadas, observe que Nzinga é representada na parte baixa da imagem sentada sobre o dorso de uma escrava, enquanto o governador ocupa uma cadeira alta que o equipava as montanhas que aparecem ao fundo.

Nesta outra imagem abaixo, Nzinga é representada fumando tabaco cercada de suas escravas e servida pelos homens do seu harém. Ao associar a imagem de Nzinga a um comportamento na época essencialmente masculino, o gravurista procura difundir entre o público a ideia de uma mulher que se nega a assumir atitudes condizentes com os papéis civilizados criados para as mulheres.

Fica bem evidente a tentativa de associar Nzinga Mbandi ao mundo demoníaco, aos valores negativos. Objetiva-se aqui subtrair dela seu estatuto de heroína nacional angolana, imagem esta que os grupos nacionalistas que lutavam contra dominação colonial portuguesa estavam criando para nela se inspirarem.

Figura 03. Nzinga fumando tabaco: In: CAVAZZI, João Giovanni Antônio. Descrição Histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1965.

Nas décadas de 1950 e 1970 tanto o MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola) quanto o FLNA (Frente de Libertação Nacional de Angola) irão invocar a luta e o exemplo de Nzinga Mbandi contra a dominação lusitana no século XVII para justificar suas lutas anticolonialistas. Após a independência de Angola em 1975, a história, a memórias, as lutas e a imagem de Nzinga Mbandi serão reabilitadas pelo governo da República de Angola e ela será alçada a posição de heroína nacional do povo angolano livre.

Figura 04. Estátua da rainha Nzinga, erguida em 2002. (FOTO | Reprodução | Internet).

 

REFERÊNCIAS

CARDONEGA, Antônio de Oliveira. História geral das guerras angolanas. (1681). 3 v. Lisboa, 1972;

CAVAZZI, Giovanni. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Tradução, notas e índices pelo Pe. Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965;

FONSECA, Mariana Bracks: Nzinga Mbandi contra a colonização portuguesa de Angola, Temporalidades, Revista de História, disponível em: www.fafich.ufmg.br/temporalidades/revista.