Texto: Rômulo de Andrade Moreira[1],
originalmente no Jornal GGN
 |
Caó durante uma homenagem em 2013 (Foto: Eduardo Naddar/Agência O Globo/Arquivo). |
Hoje,
dia 5, faz 33 anos que foi promulgada pelo ex-presidente da República José
Sarney, a Lei nº. 7.716, de 05 de janeiro de 1989, que, inicialmente (na sua
redação original), definia apenas os crimes resultantes de preconceito de raça
ou de cor. A lei foi publicada no Diário Oficial da União do dia seguinte ao da
promulgação, tendo sido posteriormente alterada pela Lei nº. 9.459, de 15 de
maio de 1997, estabelecendo-se, doravante, que seriam punidos também, na forma
da lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional.
Entre
os crimes previstos na lei, consta o fato de impedir ou obstar o acesso de
alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou
Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos; negar ou obstar
emprego em empresa privada; recusar ou impedir acesso a estabelecimento
comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador;
recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento
de ensino público ou privado de qualquer grau; impedir o acesso ou recusar
hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar; em
restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público;
estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público,
salões de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou
estabelecimento com as mesmas finalidades; entradas sociais em edifícios
públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos;
transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô
ou qualquer outro meio de transporte concedido.
Também
constitui crime imprescritível e inafiançável impedir ou obstar o acesso de
alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas; o casamento ou
convivência familiar e social; induzir ou incitar a discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional; fabricar,
comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos,
distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de
divulgação do nazismo.
Caso
o autor do delito seja servidor público, a condenação criminal poderá acarretar
também a perda do cargo ou função pública, desde que motivadamente declarada na
sentença.
Antes
da promulgação dessa lei, as práticas resultantes do preconceito racial eram
tidas como simples contravenções penais, nos termos da Lei nº. 7.437, de 20 de
dezembro de 1985, que havia dado nova redação à Lei Afonso Arinos (de 1951),
que também tratava como contravenção penal a discriminação racial.
A
lei – conhecida como Lei Caó – resultou da aprovação pelo Congresso Nacional do
Projeto de Lei nº. 52, apresentado em 1988, pelo jornalista e ex-deputado
federal Carlos Alberto Oliveira dos Santos, o Caó.
Caó
foi, sobretudo, um importante militante do movimento negro brasileiro, tendo
participado, inclusive, da Assembleia Nacional Constituinte; é dele a redação
do inciso XLII do artigo 5º. da Constituição Federal, que torna a prática de
racismo crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão.[2]
Nascido
em Salvador, em 1941, filho de uma costureira e de um marceneiro, Caó foi “uma
importante liderança parlamentar, e ainda bem jovem participava em Salvador de
associações de moradores e da campanha nacionalista, na segunda metade dos anos
1950, chamada ´O Petróleo é Nosso`.”[3]
Formado
em Direito pela Universidade Federal da Bahia (e também pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro), atuou como jornalista em diversos periódicos e
fundou, em 1974, a Associação dos Jornalistas Especializados em Economia e
Finanças (AJEF), tendo sido também dirigente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais
do Rio de Janeiro.
Participante
da militância estudantil, integrando a UNE, foi filiado ao Partido Comunista (o
seu nome de guerra era Betinho), quando “caiu nas garras do regime militar, que
o condenou à prisão em 1970.”[4] Na
vida político-partidária, Caó foi deputado federal em 1982 pelo Partido
Democrático Trabalhista (PDT), licenciando-se do mandato para assumir o cargo
de secretário do Trabalho e da Habitação, no governo de Leonel Brizola; nessa
função pública, destacou-se “na regularização fundiária das periferias e
favelas.”[5]
Em
1986 foi eleito deputado constituinte e reeleito deputado federal em 1989,
tendo falecido em 2018, “sem que a imprensa fizesse muito alarde, nada obstante
ser um dos poucos cidadãos brasileiros que têm no seu currículo a proeza de
serem autores de uma lei dessa importância e que leva o nome próprio.”[6]
Caó,
como um jurista negro, “estava preocupado em utilizar o direito para promover a
integração de grupos marginalizados, afastando-se do legalismo jurídico que
leva à desconsideração do contexto social e histórico no qual as pessoas estão
inseridas. Recusava a ideia que o direito contém todos os elementos necessários
para a interpretação das normas jurídicas e as interpretava de maneira distinta
daqueles que utilizavam essa perspectiva. A vasta maioria dos membros do
judiciário são homens brancos heterossexuais de classe alta, que nunca sofreram
qualquer tipo de discriminação na vida, e partem do pressuposto que todas as
pessoas possuem a mesma experiência social, razão pela qual podem interpretar o
direito apenas a partir de sua lógica interna.”[7]
A
data de hoje, portanto, deve ser comemorada e deve ser também lembrado, como
uma homenagem, o autor do projeto de lei, um ícone na luta contra o racismo, a
causa determinante de uma infindável série de iniquidades que, ao longo da
história do Brasil, atinge esta gente riquíssima, dentre outras coisas, por sua
capacidade incrível de resistência e sua extraordinária inteligência e
abundância cultural, nada obstante se saber “que desde o início da colonização,
as culturas africanas, chegadas nos navios negreiros, foram mantidas num
verdadeiro estado de sítio.”[8]
O
Brasil, longe de se tratar de uma suposta e falsa (e mesmo hipócrita!)
“democracia racial” (como costumam dizer alguns acadêmicos, ora mesmo racistas,
ora ignorantes de nossa realidade e de nossa história), é um lugar onde o
racismo está entranhado social, estrutural e institucionalmente, fato que
(talvez) explique uma conivente apatia integrante de um lado sombrio que
permeia a nossa elite econômica, social, acadêmica, política e jurídica, que
aceita a normalização de uma violência específica e reiterada, como se fosse
algo necessário para uma efetiva política pública de segurança pública, ou uma
decorrência inevitável da pobreza que também assola principalmente a população
negra no Brasil, desde sempre alijada da riqueza aqui produzida.
É preciso estar atento e saber que “as lutas
mais longas e mais cruentas que se travaram no Brasil foram a resistência
indígena secular e a luta dos negros contra a escravidão, que duraram os
séculos do escravismo. Tendo início quando começou o tráfico, só se encerrou
com a abolição.”[9]
É
urgente também entender que “face ao racismo, não há compromisso possível. Não
há tolerância possível. Só há uma resposta: a tolerância zero. Esta resposta
pode parecer radical, mas é a única resposta concebível se quisermos adotar, em
relação a este problema, uma atitude coerente e eficaz.”[10]
Por
isso, é necessário, apesar dos “deslumbramentos ocidentais”, saber-se negro, e
sendo um negro, “cada vez mais negro, não ficar mudo diante desse
deslumbramento.”[11]
No
Brasil – antes e depois da escravização a que foram sujeitados homens, mulheres
e crianças (a maioria sequestrada do continente africano) – o massacre do povo
negro sempre foi uma realidade com a qual se convive, e se habitua ainda hoje,
numa odiosa e farisaica complacência dos brancos em geral, que se alvoroçam
todos em uníssono quando um dos seus é morto, e se compraz covardemente quando
um dos outros é a vítima.[12]
[1] Rômulo de Andrade
Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e
Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.
Pós-graduado pela Universidade de Salamanca.
[2] Lembra-se que na
sessão do dia 28 de outubro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal concluiu
o julgamento do Habeas Corpus 154248, no qual se discutia a prescrição no crime
de injúria racial (previsto no Código Penal), prevalecendo o voto do relator,
Ministro Edson Fachin, segundo o qual “a injúria racial traz em seu bojo o
emprego de elementos associados ao que se define como raça, cor, etnia,
religião ou origem para se ofender ou insultar alguém, havendo ataque à honra
ou à imagem alheia, com violação de direitos, como os da personalidade, que
estão ligados à dignidade da pessoa humana.” Assim, ainda nos termos do voto do
relator, “a injúria é uma forma de realizar o racismo, e agir dessa forma
significa exteriorizar uma concepção odiosa e antagônica, revelando que é
possível subjugar, diminuir, menosprezar alguém em razão de seu fenótipo, de
sua descendência, de sua etnia, sendo possível enquadrar a conduta tanto no
conceito de discriminação racial previsto em diplomas internacionais quanto na
definição de racismo já empregada pelo Supremo (HC 82424).” Para ele, “a
atribuição de valor negativo ao indivíduo em razão de sua raça cria as
condições ideológicas e culturais para a instituição e a manutenção da
subordinação, tão necessária para o bloqueio de acessos que edificam o racismo
estrutural, ampliando também o fardo desse manifesto atraso civilizatório e
torna ainda mais difícil a já hercúlea tarefa de cicatrizar as feridas abertas
pela escravidão para que se construa um país de fato à altura do projeto
constitucional nesse aspecto.” Apesar de tardia, foi acertada a decisão da
Suprema Corte, pois, induvidosamente, quem ofende a honra de alguém
utilizando-se de elementos referentes à raça, à cor ou à etnia pratica, sem
dúvidas!, racismo, tratando-se de uma conduta extremamente reprovável sob todo
e qualquer aspecto.
[3] GOMES, Flávio dos
Santos, LAURIANO, Jaime e SCHWARCZ, Lilia Moritz. Enciclopédia Negra. São Paulo:
Companhia das Letras, 2021, pp. 104 – 105.
[4] Idem, p. 104.
[5] Idem, p. 105.
[6] Idem, p. 105.
[7] MOREIRA, Adilson
José. “Pensar como um negro significa defender uma forma específica de
interpretar a Constituição”. Disponível em: https://www.geledes.org.br/pensar-como-um-negro-significa-defender-uma-forma-especifica-de-interpretar-a-constituicao/.
Acesso em 08 de novembro de 2021. Para conhecer melhor o pensamento desse
grande jurista brasileiro, veja-se a obra “Pensando como um negro – Ensaio de
hermenêutica jurídica”, publicado em 2019, pela Editora Contracorrente (São
Paulo).
[8] NASCIMENTO, Abdias.
O Genocídio do Negro Brasileiro – Processo de um Racismo Mascarado. São Paulo:
Perspectivas, 2016, p. 123.
[9] RIBEIRO, Darcy. O
Povo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras: 2006, p. 202.
[10] DELACAMPAGNE,
Christian. História da Escravatura – Da Antiguidade aos nossos dias. Lisboa:
Edições Texto & Grafia, 2013, p. 222.
[11] CAMARGO, Oswaldo de.
O Negro Escrito – Apontamentos sobre a presença do negro na Literatura
Brasileira. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1987, p. 9.
[12] Quando se visita,
por exemplo, o Museu Imperial de Petrópolis, e se admira a coroa de D. Pedro
II, não se pensa que aqueles 639 minúsculos diamantes que a adornam foram
garimpados por pessoas escravizadas em Minas Gerais e outras regiões do Brasil
(GOMES, Laurentino. Escravidão – Volume I – Do primeiro leilão de cativos em
Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: 2019, p. 62).