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Encontro na URCA discute os 20 anos da Lei que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira

 

Túlio Pereira, Nicolau Neto e Maria Telvira. (FOTO | Montagem | Blog Negro Nicolau).

 

Projetos da Universidade Regional do Cariri (URCA) promovem encontro nesta segunda-feira, 27, com o tema "Consciência negra o ano inteiro". A ação vai falar sobre a Lei 10.639/03 que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. O evento começa às 14h, na URCA, Campus Crajubar, e propõe incentivar ações que efetivem o cumprimento da lei nas escolas do Cariri.

A cor da devoção: o legado do povo negro no Cariri cearense

 

Maria Telvira é Pós-Doutora em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Professora do Departamento de História da Universidade Regional do Cariri (URCA).

Qual é a cor dos devotos de Padre Cícero? A constituição das romarias em Juazeiro do Norte (CE) informa sobre um processo histórico que remonta o final do século XIX. Tradicionais na região Nordeste, essas práticas são reconhecidas como um dos maiores fenômenos religiosos do Brasil. Anualmente, estima-se que mais de dois milhões de romeiros/as ocupem os espaços sagrados, valendo-se de um longo ciclo de peregrinações. Diante da expressividade numérica e simbólica dessas manifestações religiosas, interrogo sobre a participação do povo negro nas romarias de devoção ao Pe. Cícero Romão. Essa  indagação remete à poesia-monumento de Aimé Césaire: “Minha negritude não é uma pedra, surdez arremessada contra o clamor do dia. Minha negritude não é uma mancha de água morta sobre o olho morto da terra. Minha negritude não é uma torre ou uma catedral […]”.


Berço do Pe. Cícero – Momento de visita de romeiros no Museu Casa do Pe Cícero. Juazeiro do Norte (CE), s./d. Fonte: Acervo do Centro de Psicologia da Religião.

Este texto é fruto da pesquisa A cor da devoção: africanidade e religiosidade no Cariri contemporâneo, realizada com recursos da bolsa produtividade da Fundação Cearense de  Amparo à Pesquisa (FUNCAP-CE), desenvolvida entre 2017 e 2018, com desdobramentos em 2019 e 2020 durante o pós-doutoramento no Programa Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará. As análises focalizaram as cidades de Juazeiro do Norte e Crato (CE). As fontes utilizadas incluem documentos de arquivos físicos e virtuais, 34 entrevistas orais, bem como dados resultantes da aplicação de um questionário para 2.009  romeiros/as. Além disso, foi possível coletar informações com os/as romeiros/as durante a realização de conversas, rezas, benditos, celebrações, as narrativas de curas e de fé. A  interlocução com os/as devotos/as no tempo presente favoreceu a articulação de temporalidades e de contextos históricos diversos.

Ao longo da investigação a questão central observada diz respeito sobre o silenciamento da identidade racial dos/as devotos/as. Situação que denomino de as fronteiras do silêncio. Contudo, no percurso desta  pesquisa, 74% dos romeiros/as entrevistadosas se autorreconheceram  negros/as (pardos e pretos). Vale ressaltar que essa porcentagem ultrapassa o quantitativo do  Brasil e do Ceará.  No que tange às práticas devocionais, no caminho aberto por Carlos Moore, podemos dizer que “ a cor não se presta a dúvida”. Contudo, apesar das evidências, há reiteradas tentativas de apagamento das faces negras nas romarias da região.

A fim de desnaturalizar essa visão, eu dialogo com a  perspectiva contra-colonial, de   Antonio Bispo,  que  enfatiza a necessidade de reconhecer as soberanias intelectuais, alimentares, cartográficas e religiosas dos povos originários africanos, chamados pelo autor de  afropindorâmicos. Essa abordagem favorece a emergência de novas interpretações sobre o passado e o presente.


Negro zelador do Cemitério do Perpétuo Socorro. Fotografia: Roque Miranda. Juazeiro do Norte (CE), 1951. Fonte: Arquivo pessoal de Renato Cassimiro e Daniel Walker.

Em termos históricos desde os primórdios da tradição, beatos/as majoritariamente negros/as participaram de forma ativa. Os registros mostram que eles/as desenvolviam atividades de assistência religiosa na comunidade local. O que incluía, por exemplo, acompanhar pessoas que estavam no leito de morte, bem como a realizar cantos fúnebres conhecidos como as incelências. De igual modo, podiam exercer a função de zeladores de cemitério. Também estavam envolvidos/as com ações que visavam angariar recursos financeiros, como o pedido de esmolas para sua própria sobrevivência. Essas práticas integravam parte significativa do trabalho de caridade. O que  incluiu a participação negra nas missões humanitárias do Pe. Ibiapina no Nordeste da década de 1870.

A partir do século XIX, ocorreram migrações negras de todo o Nordeste para Juazeiro. Situação que favoreceu a constituição de agenciamentos individuais e coletivos em torno das romarias. Dentre eles destaco:  a trajetória da Beata Maria de Araújo, afilhada do Pe Cícero, que desde a adolescência dedicou-se à vida religiosa, bem como a existência da comunidade revolucionária do Caldeirão, liderada por José Lourenço.


Fotografias de beatos da História de Juazeiro do Norte. Juazeiro do Norte (CE). Fonte: Ciclo Operário Complexo da Matriz de Nossa Senhora das Dores – Exposição Temporária.

Ademais, ainda no século XVIII, o Cariri conheceu a formação de irmandades negras, sendo a Irmandade do Rosário de Barbalha considerada a mais antiga. Essas organizações eram formas de vivenciar religiosidades, de estreitar relações e, sobretudo, de enfrentar as consequências da apartação racial, elemento fundante da sociedade brasileira. Suas práticas coletivas atravessaram o século XIX e chegaram até o século XX, conforme ocorreu com a Irmandade  Penitentes Aves de Jesus e a Irmandade  Penitentes da Santa Cruz do Deserto. 

Pela força do racismo, indivíduos e coletividades negras, além de apagados da história, foram insultados pela elite, pela imprensa da época e pela própria igreja como “rudes, atrasados, delirantes, vagabundos e fanáticos”. Importante destacar que, mesmo tendo suas ações desqualificadas como curandeirismo ou macumbaria, esses/as sujeitos/as continuaram expressando suas devoções e participando da dinâmica sociocultural do Cariri.  Narrar suas experiências é uma forma de promover reparação histórica, pois, conforme lembra o historiador Michel-Rolph Trouillot, a história tem sido um discurso de poder que se caracteriza pela produção da invisibilidade.

Nesse sentido, é preciso combater aquilo que o autor chamou de o “poder da distribuição do registro”. A história que tem sido considerada legítima sobre o Cariri subtrai as realizações, os fatos e as labutas do povo negro.  

Com efeito, mesmo diante do silêncio historiográfico, do controle da Igreja e dos preconceitos da sociedade, essas experiências negras atravessaram a cronologia do silêncio, instituindo modos singulares de exercer a religiosidade. Para isso, articularam sofisticados sistemas de memória e de vivências coletivas. São histórias de reelaborações da existência cuja singularidade pode ser expressas pela poética de Conceição Evaristo: “Meu rosário é feito de contas negras e mágicas. Nas contas de meu rosário eu canto Mamãe Oxum e falo padres-nossos, ave-marias”.

Assista ao vídeo da historiadora Maria Telvira da Conceição no Acervo Cultne sobre este artigo:


          

Projeto Diálogos sobre a História e a Cultura do Cariri, do IPESC, abordará a Abolição da Escravatura e o Racismo Estrutural no Cariri

 

Por Valéria Rodrigues, Colunista

Idealizado e promovido pelo Instituto José Marrocos de Pesquisa e Estudos Socioculturais do Cariri (IPESC), órgão da Universidade Regional do Cariri (URCA) e vinculado à Pró-reitoria de Extensão, o Projeto Diálogos sobre a História e a Cultura do Cariri chegara na noite desta terça-feira, 18, a sua 13ª edição.