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A cultura do capital e a cidade negada

 

Alexandre Lucas. (FOTO |Reprodução).

Por Alexandre Lucas, Colunista

Democratizar o acesso à cidade na sua complexidade e transversalidade é o termômetro para indicar o grau de apropriação da diversidade e pluralidade cultural pelo conjunto da população. Acessar a cidade, transita para além da urbanização e mobilidade urbana, o que requer a ruptura com a exclusão e a desigualdade social e ao mesmo tempo com os mecanismos de gestão participativa e decisória 

A produção de uma cidade economicamente desigual gera uma apropriação desigual da produção cultural, o que necessariamente evidencia as contradições irreconciliáveis do modo de produção capitalista e aponta a luta pela democratização da sociedade como parte do processo de transformação social, econômica e das relações de poder.

Evidentemente que a cultura e o direito à cidade compõem estruturas que se entrelaçam.  Porém são traçados caminhos desconexos entre as políticas de acessibilidade a cidade, criando quadrados sociais e desintegrados.

Claro que existe uma cidade invisível, excluída, silenciada, vulnerável e sistematicamente oprimida e explorada, em que a elite econômica insiste em colocar como adereço do seu poder.

Os equipamentos públicos, como escolas, teatros, museus, galerias, praças, auditórios, universidades, centros de assistência social, quadras esportivas, etc, são instrumentos desse  processo de democratização da produção simbólica  historicamente erguida pela humanidade.

Ao mesmo tempo, temos que nos questionar: Esses equipamentos existem? quais as condições? Como são os seus processos de circulação e continuidade das suas ocupações? Quais as suas perspectivas políticas e pedagógicas de sociedade? Como inclui a diversidade e a pluralidade estética, literária, artística, filosófica, científica e cultural? Existe uma cultura de pertencimento coletiva desses equipamentos?  

A história das sociedades divididas em classes sociais distintas e antagônicas têm demonstrado que predomina hegemonicamente e ideologicamente uma cultura orientada aos interesses da classe dominante para a sua manutenção no poder e ao mesmo destina para a cidade negada uma embriaguez cultural capaz de produzir subnutridos da cultura.

As forças do capital quando evidenciam a cultura enquanto produção artística é para poucos e quando pensam na sua dimensão de reprodução da vida a criam de forma esquartejada espacialmente e socialmente.

O termômetro para medir o usufruto da cultura na sua extensão ampla e que possibilite tornar o erudito uma apropriação popular  é marcado pelo direito de acessar e gestar a cidade de forma coletiva.

Quando se pede a lua ao prefeito

 

Alexandre Lucas. (FOTO/ Reprodução/ Facebook).

Por Alexandre Lucas, colunista

A democracia sofre fraturas diárias na luta pelo direito à cidade. Pensar em gestões democráticas e participativas é um desafio em construção, inclusive de compreensão. Equivocadamente e de forma recorrente, esse conceito, é posto como uma engenharia harmônica e consensual, desconsiderando neste caso a realidade concreta, marcada por disputas de narrativas, desigualdades sociais e antagonismo de classe.

Gestão democrática e participativa não é conceito dogmático, em que é constituída por pares e é erguida a partir de uma única verdade, mas é a partir do encontro das ideias conflituosas e de interesses distintos que a democracia se tempera, necessariamente, isso não acontece pelo diálogo. A história tem demonstrado que o conflito é algo presente quando existem interesses antagônicos.

Apesar do conceito de gestão democrática e participativa ser algo novo relativamente, a luta pelo direito de participar e decidir sobre a cidade é algo bem mais antigo. Entretanto, o recorte das lutas de classes continua sendo válido para compreensão da democracia e evitarmos cairmos na concepção de idealista e romantizada que desconsidera as contradições e as forças em disputa, na tentativa de erguer um falso discurso de equilíbrio social e de dialogicidade.

Conselhos setoriais, conferências, audiências e consultas públicas são espaços criados para aprofundar a democracia, essencialmente são esferas políticas que cabem a diversidade e pluralidade de ideias e de concepções políticas, inclusive, não distingue a participação das pessoas dos mais diferentes partidos políticos, até porque isso é uma prerrogativa constitucional. Enfatizar essa questão é desmascarar a suposta neutralidade das instâncias de participação social.       

A gestão democrática e participativa não deve ser compreendida como o quintal da nossa casa, mas como a casa de gregos e troianos, de muitas brigas, ocupações, construções e desconstruções e é a partir dessa síntese de confusões que a democracia vai se constituindo ou se destruindo.   

Cabe continuar insistindo no aprofundamento da democracia e na organização popular para construir uma nova realidade de participação e acessibilidade  social.

Democracia não é desfile militar, onde todos vestem a mesma roupa e dão as mesmas passadas.  É preciso se preparar para democracia recheada de assimetrias e desconfortos.

As gestões públicas devem romper com as velhas práticas abortivas sobre a decisão da cidade.  Optar por gestões democráticas e participativas vai além de eleger instâncias de participação e é um desafio que se coloca na ordem do dia, aliada aos princípios que regem a gestão pública e os direitos constitucionais da população.

As demandas da população são imensas e complexas, objetivas e subjetivas, viáveis e inviáveis e estão postas. Os gabinetes de gestão têm a tarefa de dar respostas, de orientar, de fazer com que os preceitos da carta magna sejam cumpridos, por  engavetar as demandas da população, é uma atrocidade as conquistas de 88, uma ataque à democracia.  Obviamente, quando for solicitado  ao prefeito a lua, ele ficará impedido de atender, mas isso não exclui a necessidade de justificar os motivos do não atendimento. Construir uma gestão democrática e participativa é aprender a dar respostas até para o pedido da lua.

Uma bala para um novo mundo

 

(FOTO/ Reprodução/ Reuters).

Por Alexandre Lucas, Colunista

Deixei o poema escorregar entre nossos beijos. Era tarde, o sol esquentava as paredes, enquanto nossas mãos desvendavam a música do corpo. Os jornais mutilavam as notícias. As crianças desfilavam num horizonte esburacado, tingidas de tinta carne.

Nas ruas, tanques e carnaval. A criança corre, menos que as balas, A criança cai, aqui, ali, acolá. 

Otan, otan, otan disparam no mundo inteiro!

O beijo estuprou o grito. Plantaram flores de plástico em telões gigantes para disfarçar a morte da realidade.  

O próximo estrondo será nosso, as crianças se levantarão com as flores, dançaremos com as borboletas, o poema será escrito com o pão. Andaremos nus e sem esconderijos. As balas serão doces e circularão livremente com os versos.  

Avesso do milho

 

Alexandre Lucas. (FOTO/ Reprodução).

Por Alexandre Lucas, Colunista

A casa estava vazia, algo corriqueiro para quem mora só. A rede balançava no quarto, luzes apagadas, ainda era dia, o quarto tinha que ter o aconchego do escuro e uma bandeja imensa de pipoca. Quando inventaram a pipoca, a televisão era improvável de existir. Tantas coisas são improváveis, até que existam.

Pipoca por exemplo, só existe, porque inventaram uma forma de pipocar o milho. É com a quentura que o milho se avessa e o amarelo se torna branco.  Isso parece óbvio, quem disse o óbvio era desnecessário? Só temos o óbvio, a partir da descoberta, obviamente. 

Na tela do computador procurava descobrir algo novo, quase tudo era desconhecido. Era como o milho, antes da descoberta da sua junção com a quentura.

Filme escolhido, depois uma série de dúvidas. Entre risos, lágrimas e duas bandejas com pipocas, aquele filme não parecia ser real, era do tipo mentiroso. Tem mentiras que só vivem por desconhecer a verdade.

Era muito estranho, cada cena e sem intervalos, do início ao fim, apareciam multidões desmascaradas, abraços apertados, distribuição de beijos e conversas ao pé do ouvido. Sem nenhuma máscara, não era o sinal dos novos tempos. Já não se sabia de que tempo era aquele filme, muito menos qual era o filme do futuro.

O filme acaba. A única coisa que sobrou foi a descoberta da pipoca.  

Desafios da cultura no Crato: Uma tarefa coletiva

 

Desafios da cultura do Crato. Na imagem, Raimundo José da Silva, mais conhecido como Raimundo Aniceto. (FOTO/ Samuel Macedo).

Por Alexandre Lucas, Colunista

O Crato tem grandes desafios a serem superados no âmbito das políticas públicas para a cultura. Não cabe aqui receitas pré-determinadas, até mesmo para não correr o risco desconsiderar os esforços e avanços, muito menos podemos desprezar os retrocessos, nem cair no simplismo que desconsidera as estruturas econômicas, políticas e burocráticas em que se contextualiza a gestão pública.

 A situação não é confortável. Não podemos analisar a situação do Crato, de forma localizada ou a partir do calor do momento. A conjuntura política nacional interfere diretamente no âmbito local. A extinção do Ministério da Cultura e a descontinuidade das políticas para cultura, em especial com o desmonte do Sistema Nacional de Cultura e do Cultura Viva apontam cenários de instabilidades, junto a essa gravidade vivenciamos uma crise sanitária que afeta diretamente o setor da economia da cultura. Mesmo diante deste caos, o setor teve  redução dos impactos econômicos, a partir de  ampla articulação política nacional que reuniu trabalhadores e trabalhadoras da cultura, gestores e parlamentares, o que   que resultou na aprovação da Lei Aldir Blanc, representando   descentralização de recursos com repasse  da união para estados e municípios, premissa prevista no  Sistema Nacional de Cultura, concomitantemente a isso impôs que os entes federados estruturarem minimamente, os seus mecanismos de gestão, tendo como norte, os Sistemas Municipais de Cultura. Se a Lei Aldir Blanc serviu como política emergencial, a Lei Aldir Blanc 2, se apresenta como política permanente e tramita em urgência na Câmara dos Deputados, juntamente com a Lei Paulo Gustavo que tem caráter mais momentâneo. Ambas são importantes para o enfrentamento da crise e têm efeitos diretos nos municípios.

A política estadual de cultura também teve reflexos no Crato, diversas foram as organizações que movimentaram a economia do Município neste período pandêmico, o que abrange uma cadeia que compreende profissionais, serviços e empresas dos mais diversos setores. A manutenção das atividades e dos espaços culturais são essenciais para o processo de resistência, acalento afetivo e comunitário.

No mesmo rumo, a gestão da cultura no Crato, apesar das críticas, a maioria relacionadas a burocratização, conseguiu desenvolver editais que abrem brechas para inclusão de novos atores no circuito estético, artístico e cultural do município. Isso possibilita também o aperfeiçoamento na política de editais, inclusive, no sentido de compreensão das demandas e particulares do setor cultural.        

Quando observamos por outro lado os equipamentos culturais do Município: Museus, bibliotecas, teatros, auditórios, escola de música, praças e outros espaços, podemos perceber precarização, necessidade de adequação e de mecanismos republicanos de ocupação. O que impõe restabelecer o seu uso em condições adequadas e vinculadas às práticas de ocupação contemporâneas dos equipamentos culturais que prevê editais de programações. Mas como fazer isso?  Essa resposta talvez não esteja diante de um olhar externo, mas que passa também por ele. As engrenagens do setor público são bem mais complexas, às vezes, a chamada “vontade política”, não é o único elemento realizador. As condições objetivas são sempre os elementos para serem considerados, como recursos disponíveis, equipe, compreensão política, capacidade de articulação, aspectos jurídicos e correlação de forças políticas.           

Por outro lado, o Crato tem dois grandes marcos legais, a Lei do Sistema Municipal de Cultura ( Lei 3.070, de 18 de dezembro de 2014) e a Lei Municipal do Cultura Viva ( Lei 3.799, de 30 de junho de 2021), importantes instrumentos jurídicos para pensar uma política estruturante para o município.  Não basta apenas ter os marcos legais, é preciso consolidar (“culturalizar”) enquanto política pública.

O Sistema Municipal de Cultura apresenta um conjunto de mecanismos que apontam para a necessidade de planejamento participativo a partir aspecto da diversidade e pluralidade cultural, estética e artística e a transversalidade da cultura, controle e participação social e garantia de recursos, a Lei do Cultura Viva, voltada para os Pontos de Cultura envereda na mesma perspectiva, resguardadas as suas peculiaridades.

Consolidar esses dois marcos legais, talvez seja o grande e o principal desafio, tendo em vista, que eles são responsáveis por atender a totalidade das demandas da gestão da política pública do Município.  Mas isso não acontece num toque de mágica! 

Neste sentido, é preciso colocar que os dois marcos legais colocam para a gestão pública dispositivos democráticos para execução da política pública, o que é um avanço, mas ao mesmo tempo, requer mais trabalho e inevitavelmente mais conflito.  Marcos legais que propõem participação e controle social, não estão isentos da contradição, do conflito, da disputa de narrativas e dos diálogos (quase impossível existe apenas diálogos). Romantizar a democracia como espaço apenas de diálogos é fugir da realidade, acolher  um lado da história e desconsiderar a dinâmica social (ou dialética).    

Neste sentido, o Sistema Municipal de Cultura e Cultura Viva é um avanço e ao mesmo tempo um pesadelo para os que têm descompromisso com a democracia, ou para aqueles, que desconhecem o seu significado político e acabam romantizando o seu conceito, principalmente numa sociedade antagônica, onde os conflitos são mais evidentes.    

No Crato, especificamente, os dois marcos legais, servem para desconstruir uma compreensão mofada, equivocada e elitizada que  é  eleger o município como “cidade da cultura” ou “capital da cultura”, historicamente essa compreensão só serviu para excluir as camadas populares do acesso à produção cultural, estética e artística e refletir um pensamento da elite econômica, tendo incidência ao longo dos anos nas políticas públicas para cultura. O Crato com os dois mais legais passar a ser reconhecido como “cidade das culturas”, a evidenciar a escavação de lugares, territórios e sujeitos soterrados pelos discursos estreitos de cultura e ao mesmo tempo evidencia a necessidade de construir uma engenharia complexa, delicada e estruturante de cidade, onde a cultura está na transversalidade e na centralidade da política pública.   

Quem disse que era fácil?  Existe uma intenção de construir essa engrenagem, estão sendo criados os espaços de escuta, ainda temos um longo caminho, talvez de poucos beijos e abraços, é bem possível que tenhamos fartura de dores de cabeças e lágrimas. É preciso insistir na consolidação do Sistema Municipal de Cultura e no Cultura Viva e ao mesmo tempo continuar defendendo a criação de um percentual mínimo de investimentos, no mínimo 2%  do orçamento do Município.             

Essa tarefa só pode ser coletiva, deve unir os mais diferentes sujeitos, as vozes mais discordantes, os desejos utópicos, as compreensões estruturantes e emancipatórias de sociedade. Esse é o desafio, construir no conflito.

A costureira

 

Imagem puramente ilustrativa. (FOTO/ Gettyimages).

Por Alexandre Lucas, Colunista

A camisa ainda tem cheiro de roupa que desconhece a primeira lavada. As suas linhas seguem embriagadas, cambaleando no caminho, suas casas têm distâncias descompassadas, uma aqui e outra com endereço incerto.  Os botões foram trocados à revelia dos escolhidos.

A costureira fez tudo descombinado. Podia ser só uma camisa e pronto, mas as costuras que nos vestem não são pontos finais. A gente não veste tudo, escolhemos a cor, o tamanho, o modelo, o tempo e o lugar de vestir. 

As roupas são como versos, sempre diferentes, até podem ser parecidas e confundíveis. Tem roupas simples e aconchegantes, umas tão leves que nos fazem dançar, outras que se ajustam aos desejos e desenhos. Lógico, terão aquelas de função robotizada. No final e quase sempre escolhemos, o que não é uma regra, ainda existem os descosturados que se despregam da composição de vestir a barriga e o horizonte. 

A costureira e a camisa são partes da mesma costura. Foi preciso acreditar na costureira para perceber os seus caminhos tortos, as suas medidas assimétricas e os seus descombinados. As costureiras são desiguais, igualzinho aos amores.

Desaparecida

 

Alexandre Lucas. (FOTO/ Reprodução).

 Por Alexandre Lucas, Colunista

A carta estava amarelada, escrita com pressa e força, era possível perceber a pressão da palavra sobre o papel, escrita grossa e azul. Dobrada várias vezes em tamanho pequeno, cabia na palma da mão. Papel amassado, cheio de rugas, sobras de um embrulho para presente, vermelho cintilante. 

Fincada na parede, a carta parecia Cristo crucificado. Acelerado os desaparecimentos, o aborto das despedidas era um código de sobrevivência. As cartas, às vezes, compostas de três palavras e o embaraço do aligeiramento, nem chegavam aos seus destinatários.

Ninguém sabe o que tinha, o tempo esfarelou cada palavra fincada naquele papel crucificado na parede.

Cidade preparada para as eleições

 

Praça da Sé, em Crato. (FOTO/ Reprodução/ Fooba).

Por Alexandre Lucas, Colunista

Urbanização sem planejamento e participação popular é negar o direito à cidade.  Planejar a ocupação espacial e a sua urbanidade exige ciência e a observância dos devidos   elementos que interligam a cidade.  As intervenções urbanas afetam as relações humanas e suas transversalidades como o meio ambiente, economia, segurança e as práticas sociais, ou seja, é impossível separar o inseparável, dito de outra forma, a ação humana de alteração do espaço urbano modifica as formas de acessibilidade e interação com o espaço, isso pode ser positivo, mas também pode provocar danos irreparáveis, como por exemplo o aumento de acidentes no trânsito  ou ainda implicações  no escoamento das águas.

Planejar a cidade não pode ser um tiro no escuro, não pode desprezar a ciência e eleger uma vontade ideogicamente construída, a exemplo das práticas populistas e equivocadas de apontar o censo comum como parâmetro para definir   políticas que exigem uma tomada de decisão política alinhada à ciência, a racionalidade e a redução dos impactos ambientais.

Concomitantemente o planejamento deve alinhar ciência com participação popular, o que muda completamente uma roteirização urbanística orientada pelo senso comum.  É preciso escutar e deliberar em conjunto com os movimentos sociais e a população, para compreender de forma mais apurada, as demandas locais e não aniquilar a memória dos lugares e as práticas saudáveis da população. Esconder e negar o protagonismo dos movimentos sociais e comunitários nos rumos e discussões sobre a cidade é uma forma evidente de negligenciar o direito à cidade, de excluir a participação popular e de criar uma urbanização de gabinete e eleitoral.

A cidade que tem a sua espacialidade esquartejada aprofunda os problemas estruturais e age no calor do imediatismo e do improviso, perdendo a sua dimensão macro e suas interligações.

O imediatismo e o improviso tem sido historicamente uma prática da urbanização que tem como viés de alcance ser moeda de troca eleitoral.  O desenfreado processo de asfaltamento das áreas excluídas do direito à cidade é uma prova incontestável que se constrói uma cidade para eleições representada pelo irrestrito descompromisso com os impactos ambientais e a engenharia urbanística.

Esse é o retrato da maquiagem urbana que gera a cidade veloz, barulhenta, insegura  e  adoecedora e que ideologicamente   é  vendida como desenvolvida e moderna para esconder as fraturas sociais,  fruto do processo de produção e acumulação do capital que ergue espacialidades esquartejadas. 

Faz-se necessário debater o direito à cidade para compreender que a aparência esconde uma essência severamente perversa, complexa e alinhada aos interesses da classe economicamente dominante. Essa discussão está intimamente ligada à democratização da sociedade, se compreendemos a cidade como um sustentáculo das interações humanas.  Enquanto isso,  precisamos aglutinar forças para construir uma outra cidade, em que a defesa da vida esteja no primeiro plano.

Escola sem (com) partido: Receituário da classe dominante

 

Manifestantes protestaram na Câmara, em novembro, contra o projeto conhecido como Escola sem Partido. (FOTO/ Cleia Viana/Câmara dos Deputados).

Por Alexandre Lucas, Colunista

A escola pública é espaço de disputa e contradições pedagógicas, a luta de classes sociais se apresenta a partir das veias ideológicas, prevalecendo a hegemonia dos valores da classe dominante.  O que torna inviável falar de educação imparcial ou de educação de qualidade sem definir para quem se destina e qual sua finalidade enquanto projeto de sociedade, no sentido de manutenção ou superação das estruturas de poder.  

Avaliações, premiações, competições, acolhimentos desiguais e excludentes fazem parte do cotidiano da escola e vão circulando como artérias de pulverização ideológica, a partir de uma engrenagem institucional, articulada em rede, o que fortalece a reprodução de concepções legitimadas desta sociedade individualista e competitiva que se apresentam como fatores espontâneos e inevitáveis.

Se o processo educativo não é espontâneo, mas construído a partir das relações sócio-históricas, logo, as internalizações e a reprodução dos valores ideológicos hegemônicos não ocorrem de forma natural ou espontaneísta pelo contrário existe uma intencionalidade sistematizada e contínua, que ora aparece de forma camuflada e em outros momentos sem pudores. 

A escola tem partido! A escola sem partido faz parte do arroto ideológico da elite econômica e dos setores conservadores e reacionários para manter a dominação cultural no âmbito educacional e combater as perspectivas pedagógicas progressistas e de emancipação humana, alinhadas a classe trabalhadora e que coloca desnuda as relações de opressão e exploração do modo de produção capitalista.

Se a escola é um desses aparelhos ideológicos do Estado, deve ser percebida também como espaço da luta de classes sociais e por conseguinte   de disputa de concepções pedagógicas antagônicas.   A escola tem papel essencial enquanto instrumento de luta da classe trabalhadora, ela é parte do processo de transformação social, apesar de que a educação não revoluciona a realidade social se a estrutura de poder político e econômico não for alterada.       

A escola já tem partido enquanto ideologia estrutural. Se “As ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da classe dominante”, como aponta o Manifesto Comunista, a educação institucionalizada em nenhuma hipótese pode ser patenteada como imparcial, independente, neutra ou sem partido! A escola é parcial, tem lado, posição, partido, isso independente dos nossos desejos.    

A escola pública precisa ser defendida enquanto espaço de democratização do conhecimento produzido historicamente pela humanidade, interligada à prática social, formação integral e contextualizada.  A escola pública precisa temperar os filhos e as filhas da classe trabalhadora para dirigir as engrenagens políticas e econômicas da sociedade. Os defensores da escola sem partido defendem a manutenção de uma educação para formar dirigidos e subalternos, essa é a escola com partido que não interessa a classe trabalhadora.

Se cada pessoa fizer sua parte?

 

Alexandre Lucas. (FOTO/ Reprodução).

Por Alexandre Lucas, Colunista

Uma onda festiva, harmoniosa, individualista, cheia de boas intenções e carregada de muita convicção acredita em uma tal revolução da consciência. Revolução cultural gestada de forma espontânea e a partir da autoconsciência. Baseada nas ideias “eu faço a minha parte” e de que a revolução se dará a partir do momento em que cada pessoa “tome consciência” do seu papel no processo civilizatório. Essas ideias preencheram o pensamento dos socialistas utópicos, mas não é coisa do passado, se faz presente no discurso contemporâneo, tanto do senso comum como de concepções mais elaboradas.

Essa tal revolução da consciência tem aconchego tanto na direita como na esquerda e nos ditos e enganosos movimentos livres e independentes. O que caracteriza a grosso modo esse pensamento é uma concepção que não leva em consideração a perspectiva histórica-social e as condições objetivas da sociedade. De feição idealista, ou seja, se acredita que apenas e unicamente as ideias podem fazer a transformação social. É como definir a vitória de um time de futebol sem considerar o time adversário ou escrever um romance épico sem conhecer a história.  

Essa concepção coloca em disputa para a classe trabalhadora caminhos de emancipação humana, onde o seu percurso e chegada se diferem e se antagonizam.  A esquerda enfrenta no seu seio um processo de alastramento e confusão com essas ideias, que tem ganhado capilaridade nos movimentos sociais e enfraquecido a luta da classe trabalhadora pela sua emancipação, a partir de uma compreensão histórica e social, que considera as condições objetivas da sociedade e a relação capital e trabalho, como fatores estruturantes das relações de exploração, opressão e desigualdade social.

Uma esquerda mística e carregada de idealismo pode atrasar a acumulação de forças da classe trabalhadora, como também uma esquerda sectária que não consegue enxergar para além da dimensão de uma Kombi ou que ainda faz análises conjunturais fora do tempo presente.      

A tal “revolução cultural” se encaixa como uma compressão micro de sociedade, como narrativa de grupos e ações isoladas, como um esquartejamento espacial para acomodação de grupos, pois não consegue dar conta de um projeto macro de sociedade com arquitetura e engenharia social de nação que se processa na vida real permeada de condições objetivas e de suas contradições.

Se cada um fizer sua parte não é suficiente, é paliativo, é ilusório insistir nesta tese. A revolução cultural se faz concomitantemente com a inversão das estruturas de poder. O que nos leva a crer que não se faz uma coisa independente da outra. A mudança de consciência faz parte da mudança das relações econômicas de poder, uma interfere na outra de forma dialética.

Organizar-se com a classe trabalhadora para desestruturar o poder, tomá-lo de assalto e ao mesmo tempo perceber a revolução cultural no curso deste processo é abrir alas para a construção de uma sociedade de novo tipo, onde a felicidade não esteja à venda no shopping center e a esperança de construir mudanças na estrutura social  e econômica estejam sempre vinculadas a realidade concreta.

No meio do caminho tem tanta coisa, inclusive poesia

 

Alexandre Lucas. (FOTO/ Reprodução).

Por Alexandre Lucas, Colunista

Existe uma poesia no meio do caminho, mas nem tudo que está no caminho conseguimos enxergar. A poesia pode ser um abridor de novos horizontes, mas é preciso descobrir, evidenciar e deixar a epiderme social livre dos dedos moralizantes e preconceituosos para não aniquilar a imaginação, a criatividade, o processo lapidoso da palavra e o protagonismo literário.

A decodificação da escrita é parte da decodificação do contexto histórico-social. Caminhar para enxergar a poesia no meio do caminho se faz a partir da apropriação dos códigos e dos contextos. Ler e escrever não é suficiente para enxergar a poesia.

Ler para além das palavras e escrever para além do previsível e do repertório reduzido é o grande desafio que se apresenta. Junta-se a isso a construção da autonomia e da autoestima como parte deste elo. É preciso esperançar em cada indivíduo e coletivamente a capacidade de acreditar na potência produtiva e transformadora dos seres humanos.

A autonomia e autoestima dos estudantes das escolas públicas são sistematicamente abaladas. A violência psicológica é um modus operandi que se processa nos espaços familiares e escolares constituindo descrença, insegurança e sentimento de incapacidade. Expressões do tipo “burro”, “preguiçoso”, “desinteressado”, “não quer nada” e suas variantes fazem parte do cotidiano de crianças, adolescentes e jovens do nosso país. Esse aspecto deve ser alterado se quisermos construir na classe trabalhadora um contingente ativo e amplo de leitoras e leitores, escritoras e escritores.                      

É preciso encontrar a poesia na apropriação da linguagem, no escavacar da história e na prática social dos indivíduos.  A poesia é resultado da produção dialética da humanidade, a partir do tempo e do espaço, das relações e contradições humanas.  A poesia está longe de ser dom, como alguns tentam impor, é antes que tudo resultado da vida.         

Ampliar o repertório de palavras para os filhos e as filhas da classe trabalhadora, é contribuir para o processo de ampliação da capacidade imaginativa, inventiva e argumentativa. Quanto maior for o quantitativo de palavras que se adquire, maior será a possibilidade de extensão de repertório e da visão social de mundo.  Cada palavra carrega um universo de ideias, ela nunca vem isolada e vai ganhando significados maiores a partir do momento que o repertório vai se estendendo.       

A escola tem um papel decisivo na democratização da linguagem. Incentivar à leitura é disponibilizar o conjunto da produção e das conexões historicamente criadas pela humanidade na qual a palavra também se insere.          

A poesia pode está em todo canto, entretanto, a escola pode ser um dos espaços para que ela possa ser enxergada de forma robusta, sistematizada, contextualizada e que componha uma trivialidade para muitos, se contrapondo, ao seu uso restrito e estratificado.

A palavra das camadas populares precisa ser legitimada. Desesconder a palavra imatura, destrinchar a escrita cheia de vida que ultrapassa a junção das letras, incrementar os códigos negadas historicamente, ter o popular, o senso comum, sempre como ponto de partida para apropriação do conhecimento sistematizado e erudito. Consagrar o popular unicamente, é negar o direito da classe trabalhadora de se apropriar dos conhecimentos necessários para o exercício do poder.

É preciso romper com uma lógica que esconde a poesia e a capacidade de leitura e escrita da classe trabalhadora. Ler, produzir, publicar, ainda continua sendo um direito restrito e todos os dias crianças, adolescentes e jovens deste país são instruídos a desacreditar que são capazes de escrever e construir a história. 

Comunidade do Gesso: Qual é a revolução?

 

(FOTO/ Reprodução).

Por Alexandre Lucas, Colunista.

A gente anda só e a revolução não se faz de forma isolada, esse provavelmente seja o entendimento para compreender que as transformações são fruto da luta organizada. A compreensão de coletividade, as condições objetivas e o poder político é o que faz a revolução. Na comunidade do Gesso, no Crato, existe uma revolução em curso?

É preciso entender com profundidade o que vem acontecendo na comunidade na última década, não é um simples movimento, mas um conjunto de forças e uma engenharia social que enxerga a dimensão transversal da luta pelo direito à cidade e suas interrelações entre o local e o global.     

Entender o significado do processo histórico de ocupação espacial e simbólica da comunidade é um caminho para compreender o que vem ocorrendo nesta última década. A estratificação social e espacial da Comunidade do Gesso, demarcada pelas linhas férreas e pelo preconceito de classe e a estigmatização social são elementos essenciais para apontar os danos estruturais na urbanização e no acesso à cidade, bem como na autoestima coletiva e no sentimento de unidade comunitária.

Não é o discurso da “melhoria” que vem dando visibilidade e impulso às mudanças na comunidade, é para além. O discurso da “melhoria” é justo e previsível, mas ao mesmo tempo pode ser pequeno e insignificante. É outra perspectiva, baseada na necessidade de desconstruir as relações de submissão e coitadismo e ao mesmo tempo da construção de pontes e capilaridades para o protagonismo social.

A comunidade do Gesso precisa ser percebida a partir do seu Território. É atuação em rede e a dimensão territorial que vem redimensionando a capacidade política e a construção de uma narrativa positiva de organização popular.

Em 2015, o Coletivo Camaradas idealizou e articulou uma série de organizações da sociedade civil e do poder público para constituir o Território Criativo do Gesso, uma experiência necessária, inovadora e dinâmica que compreende cinco bairros da cidade do Crato, onde está inserida a comunidade. Essa dimensão de Território coloca em outro lugar a comunidade do Gesso, ou seja, no lugar da aproximação entre sociedade civil e poder público, do imaginário transformador de organização popular, do reconhecimento de potencialidades e desafios e evidencia uma radiografia mais próxima da realidade, onde são expostos os conflitos, diálogos possíveis e as construções coletivas.

Dentro do Território é possível mapear Pontos de Cultura, coletivos artísticos, grupos da tradição popular, Ongs, grupos esportivos, museu comunitário, escolas, universidade, grupos religiosos, unidades de saúde e de assistência social, além de outros órgãos da gestão pública, o que torna esse conjunto de organizações uma potência territorial.   É numa costura de rede que a comunidade e o Território Criativo do Gesso vão ganhando força e visibilidade.   

De forma isolada, as organizações da sociedade civil perdem força, mas quando atuam em rede conseguem ampliar ações, reivindicações e conquistas, é o que vem acontecendo na comunidade do Gesso e no Território. É nesta atmosfera que o lugar e o Território vão se conectando a outras visões de mundo e ganhando novas dimensões e articulações.         

Além das ações realizadas em parcerias e das reivindicações constantes, alinhasse a essa questão a produção de conteúdo para construção de uma narrativa territorial e de lugar. São vídeos, fotografias, cartazes, textos para imprensa, etc., que vão dando nomes e identidades para as organizações e os sujeitos, ou seja, que vão promovendo o protagonismo popular. Essa visibilidade significa também ocupação dos micros espaços políticos de poder, tão necessários para o enfrentamento e o diálogo com o poder constituído.

Um exemplo de conquista e de como a micropolítica se entrelaça a macropolítica e vice-versa, é a Lei Aldir Blanc, fruto da luta dos movimentos sociais, de gestores públicos e de parlamentares de diversos campos políticos, em especial da esquerda que proporcionou ao país reduzir os impactos da pandemia na economia da cultura descentralizando recursos públicos para estados e municípios brasileiros. A Lei Aldir Blanc teve impacto direto na comunidade do Gesso, no Território Criativo do Gesso e na sua interligação com o país.

Atividades formativas, produções de documentários, apresentações artísticas, diálogos com artistas, pesquisadores e gestores culturais de diversos estados do país, estruturação com aquisição de equipamentos para diversas organizações que atuam no Território Criativo do Gesso e o envolvimento da sociedade civil e do poder público em diversos eventos demonstra a atuação em rede do Coletivo Camaradas proporcionado pela Lei Aldir Blanc.

Com foco na luta pelo direito à cidade, a Lei Aldir Blanc também proporcionou a comunidade do Gesso, através do Coletivo Camaradas uma série de intervenções urbanísticas e paisagísticas que impactam diretamente na cultura, no cuidado coletivo, na economia local e no protagonismo das organizações e dos moradores. O projeto urbanístico e paisagístico reforça a existência e a continuidade do Sítio Urbano do Gesso, uma conquista comunitária que visa promover a agricultura urbana, o Sítio Urbano é reconhecido por lei municipal. A ação consta de construção de calçadas, escadarias, corrimão, ampliação de canteiros, terreiros culturais e oratório e de uma série de intervenções artísticas. Essa intervenção abre novos olhares para pensar a interface entre direito à cidade e a cultura. É possível pensar urbanização, paisagismo, meio ambiente e cultura de forma interligada e tendo os sujeitos e suas organizações como protagonistas? Sim, o exemplo da Comunidade do Gesso, demonstra que é possível inverter o holofote e promover a qualidade de vida.         

É impossível andar pela comunidade do Gesso e não perceber que existe algum tipo de revolução. 

Queremos aparecer, isso não é detalhe

 

Por Alexandre Lucas, Colunista

O Cultura Viva enquanto política pública e posteriormente como política de estado, o qual ficou conhecido a partir dos Pontos de Cultura, é substancialmente uma metodologia e campo de disputar para repensar a relação da sociedade civil e o poder público, no tocante, ao reconhecimento, o aparecimento e a legitimação do protagonismo dos sujeitos e de suas organizações, nos territórios e nos lugares.

O Cultura Viva coloca em evidência o conflito, as contradições e a fragilidade do conceito de gestão democrática e participativa, em especial, no âmbito dos municípios, onde as disputas são mais acirradas.

Reconhecer o papel e o protagonismo dos movimentos sociais na deliberação das políticas públicas, no controle social e no aparecimento da comunicação institucional continua sendo um desafio, um espaço para ser conquistado.

Decolonizar parece ser um termo conveniente para romper com uma lógica de pensamento hegemônico de política pública baseada na negação deliberada do aparecimento das vozes e ações oriundas da sociedade civil, o indeferimento do conflito e da contradição com tática política de silenciamento dos movimentos sociais e o equivocado discurso de gestão democrática e participativa que não se sustenta quando se apresentam  as vozes das  contraposições, das discordâncias e das oposições.

A democracia não é um conjunto de iguais, pelo contrário, é um caminho divergente. É na divergência que se constrói a democracia, dito de outra forma, é com a  participação de diversos e divergentes  sujeitos e organizações sociais que se constrói uma gestão democrática e participativa. Não se constrói democracias entre iguais, pelo contrário se alicerça a ditadura ou distanciamento do conceito democracia que não é uno, mas que está longe ser um conjunto de compreensões de iguais.

O Cultura Viva enquanto perspectiva de política pública e de movimento social tem muito para nos ensinar sobre gestão democrática e participativa. Precisamos ficar atentos e desmascarar as tentativas constantes de ataques à democracia ventiladas e orquestradas de forma mais nítida e robustas pela direita representada por um discurso que elege a participação e a democracia como inimigas.

Por lado os setores do campo democrático e progressista, incluindo setores da esquerda, precisam aprofundar o debate sobre a necessidade do protagonismo dos sujeitos e de suas organizações na construção e deliberação das políticas públicas, tendo em vista que é notório, ainda, uma visão romanceada de democracia por alguns setores, baseada em concepções negacionistas do conflito, da contradição e da luta de classes.  O diálogo e o consenso não é em hipótese alguma uma homogeneidade numa sociedade dividida antagonicamente em classes sociais irreconciliáveis.

Qual a necessidade do protagonismo dos sujeitos e de suas organizações na deliberação das políticas públicas? Se queremos aprofundar os mecanismos de participação e de acessibilidade das políticas públicas, minimamente os espaços, os micros espaços de poder, precisam ser compartilhados. Neste sentido é preciso também mudar a direção do holofote da comunicação institucional, democratizar a comunicação é um ato político, que orienta quem deve protagonizar as narrativas.

Historicamente, os sujeitos e suas organizações foram excluídos do direito de participar e decidir sobre as políticas públicas e consequentemente de aparecer enquanto construtores da democracia. Isso não é  um detalhe, é uma deliberação.

Participar, decidir e aparecer é indispensável para que os movimentos sociais ocupem outro lugar na esfera da política pública. Afinal, é sempre importante entender que a comunicação cumpre uma função política central na ocupação dos espaços de poder e isso nunca foi detalhe.         

Nos encontramos na rua

 

Alexandre Lucas. (FOTO/ Reprodução).

Por Alexandre Lucas, Colunista

Sei que não sabia ler ainda, nem vasculhar o mundo, tinha menos de uma década. Foi no meio da rua que nos encontramos pela vez, era dia, ela, maior que eu, bem maior, por algum tempo nos encontramos no mesmo lugar, sempre em silêncio, mas com olhos de querer saber. Ficava naquele imenso muro, sozinha, não tinha como ficar despercebida.

Depois ela desapareceu, não deixou cartas, nem pistas. Fiquei sem notícias. Já tinha passado mais de uma década, ainda pequeno para a dimensão do mundo. Em uma noite encontrei algumas delas, numa grande rua, dançavam, altas e brilhosas. Pareciam até uma fábrica de sonhos, meus olhos brilhavam como cetim. O céu parecia um mar vermelho, cheio de ondas que faziam cambalhotas de esperança.

Depois já éramos tão próximos, tínhamos tanta intimidade que carregamos nos braços da razão. Já descobria sobre os desaparecimentos e os silêncios.

Já não conseguem apagar você, nem separar os nossos caminhos. Enquanto existem punhos que cruzam braços, outros pintam foices e martelos pelas ruas para construírem redemoinhos.  

Quem apertou o gatilho?

 

Alexandre Lucas, Colunista. (FOTO/ Divulgação).

Por Alexandre Lucas, Colunistas

Teve um tiroteio, bem no meio da barriga, daqueles que não matam. Era uma noite de sexta-feira, tinha preparado um verso para encher a noite de felicidade. Dizem que as sextas-feiras é cheia de ministério. Teve um tempo que esses tiroteios apareciam todos os dias.   Parecia uma festa de São João. 

Sempre pensei que iria morrer. É dor passageira, faz destroços e passa, mas não passa eternamente, volta sem anúncio prévio.  Fazia um rosário no pensamento para contar o silêncio. Os tiros acabaram desaparecendo, aos poucos começava a dançar uma valsa, apenas com a respiração.

Tem dias que os tiroteios parecem não acabar. No interior da casa, um corpo é encolhido com receios dos tiros de verdade, aqueles que matam, que atravessam a carne. Poças de lágrimas e gritos se misturam ao sangue.  A criança toma leite, os mais velhos assistem atentamente a tragédia, como se assistissem a uma comédia comendo pipoca. 

As balas ficam cravadas, os tiroteios apenas cessam. Os corpos estendidos são publicados sem limites. Encolhidos, outros corpos, escondem as marcas das balas que peneiram os pensamentos.

Os gatilhos estão soltos.

Latadas

 

Alexandre Lucas, Colunista. (FOTO/ Reprodução).

Por Alexandre Lucas, Colunista

Óleo, terra, besouros, mijo e muita raiva! Sabia exatamente o horário que a professora passava para dar aula durante à noite. Duas latas prontas para o ataque surpresa.

Era jogar e sair correndo! Isso foi feito, muito bem feito. Suja e fedorenta, fez o percurso de um quarteirão até chegar na escola. A aula estava perdida. Seria impossível entrar na sala naquele estado.  

Deve ter tremido de ira, medo e dúvida. Quem poderia atacar uma professora, logo uma professora?

A situação estava fedida e sem respostas, mas bastou um banho de duas horas e uma roupa limpa para seguir entrando nas salas de aula, durante anos, cheirosa e seguindo os padrões da moda. 

Óleo, terra, besouros e mijo nunca mais encontraram o caminho da professora. Enquanto isso, ela nunca deixou de jogar latadas de palavras nas suas aulas, mais sujas e fedorentas, do que aquelas que marcaram apenas um dia de sua vida.

 


Porta errada

Alexandre Lucas. (FOTO/ Reprodução).

Por Alexandre Lucas, Colunista

A geladeira estava em dia raro, quase sua porta não fecha, entupida. Frutas, doces, uma jarra com suco de limão com leite, água em abundância e um pote de sorvete, tinha também leite condensado, arroz para requentar, carne congelada e um chá de maracujá numa garrafa de vinho.

Enquanto olhava para geladeira aberta, a conta de energia fazia cambalhotas. Os olhos vasculharam aquele retângulo gelado, tentando despistar os pensamentos que nada tinham a ver com a geladeira. 

Uma cadeira foi posta diante da geladeira, a qual ficou aberta por horas, parecia que tudo tinha desaparecido e um filme passava ali por dentro. Descompunha naquele instante a palavra geladeira: gel, gela, ela, ladeira, eira, ira.   

Porta fechada. Afinal, amor não se tira da geladeira.

 

Calculando histórias

Alexandre Lucas, Colunista. (FOTO/ Reprodução).



Uma calculadora e uma garrafa branca com café quente e bem preto, a mesa tinha algumas canetas e papéis preenchidos de rascunhos. Vozes, latidos e batidas de bola entoavam a noite. Um jazz tentava bloquear o desfoco. Um incenso soprava cheiros. O calor estava furioso que fazia sangrar o suor. Sem camisa, apenas um pouco de roupa.  

Um gole, café amargo, trivialidade da casa, pouco açúcar. As roupas estavam sujas, mas faltava coragem para colocar em ordem a limpeza. Coragem não é coisa para todo dia. Mais um gole, desta vez, água com uns pingos de limão.

Mas o que não saía da cabeça, era um guarda-roupa velho, antigo,  talvez tenha sido da bisavó. Já faz mais de 18 anos que ele foi deixado num quarto, deu até briga. Pouco importava se ele tinha sido da bisavó. Foi deixado com dor, naquele quarto apertado e abarrotado de incertezas.

Quase tudo ficou naquela casa, apenas roupas e alguns livros couberam na despedida. O guarda-roupa ficou preso às posses alheias.

Naquele momento era preciso arranjar outro guarda-roupa, outra casa, a vida seria a mesma em cenários diferentes.

As memórias parecem que duram mais que os guarda-roupas.