O príncipe Ribamar da beira fresca e o projeto de modernização conservadora do cariri

 

Fotografia do Príncipe Ribamar da Beira Fresca em seus trajes cotidianos. (FOTO | Reprodução | Internet). 

Por César Pereira, Colunista

Joaquim Gomes Menezes seu nome, marceneiro de excelente arte para móveis, (principalmente caramanchões), também entalhava tesouras para os tetos das igrejas e santuários do Cariri. Era preto, negro, filho de pais que sempre foram pobres, nunca se casou, viveu sempre com a mãe e uma irmã que morreram bem antes dele, e dizem que estas morreram de fome.

Foi personagem muito conhecido em Juazeiro do Norte. Sempre visto em repartições públicas, saguões de hotéis, agências bancárias, escritórios, cartórios e na própria prefeitura municipal. Dele muito se falava. Falava-se dele na Rádio Progresso, falava-se dele na Rádio Iracema. Sobre ele escreviam os cronistas e os poetas. Era famigerado, pois seu nome era sempre propalado nas rodas de conversas, lembrado nas praças, nas feiras, nas bodegas.

Nos dias de festas, principalmente nas festas cívicas, dia do município e 7 de setembro, aparecia em público vestido roupa de gala. Nessas ocasiões trajava-se com apuro, pois aí envergava sua melhor vestimenta. Uma casaca com galões e botões dourados, dragonas e capa, calça de linho com vinco, cinto de couro e muitas medalhas, representando suas muitas condecorações e títulos honoríficos.

Nos dias comuns caminhava pelas ruas de Juazeiro do Norte vestindo terno, chapéu e pasta e guarda-chuva nas mãos. Dentro da pasta tinha tudo: cheques já descontados, documentos vencidos, cartas e uma fotografia da princesa Gioconda da Eslobóvia, também projetos de engenharia, ideias políticas e folhetos de cordel.

Os incautos o acreditavam doido, mente fraca, um homem que teria perdido o juízo. Muitos o tratavam com desdém e o viam apenas como o restolho de um mundo arcaico que o rápido progresso de Juazeiro do Norte ia tratando de eliminar para deixar a cidade limpa, pronta para receber os bons ventos da modernidade.

Para muitos, o príncipe era maluco, um pobre coitado com o cérebro derretido pelo sol do sertão. Riam dele, roubavam e escondiam o retrato da Gioconda. Nestes momentos, o príncipe se imobilizava, uma explosão de dor o congelava. Eu me lembro dele, assim privado da sua amada, feito uma estátua no meio da praça. Parecia tão triste e ausente de si que, eu juro, flutuava a meio metro do chão, pendurado no guarda-chuva branco. Quando uma alma boa lhe devolvia seu bem mais precioso, a felicidade saltava dos seus olhos como um raio na tempestade. Talvez ele fosse realmente louco. Mas uma loucura que fazia nascer uma tal felicidade e uma felicidade que vinha de um amor tão grande me deixavam na dúvida. (WILKER, 1995, disponível em: http://oberronet.blogspot.com/2011/07/principe-ribamar-o-sonhador-de-juazeiro.html, acesso em 21 de maio de 2023).

           

Na década de 1950 a cidade de Juazeiro do Norte já despontava como uma das mais promissoras do interior nordestino. Impulsionado pelas romarias em torno da figura e da memória do padre Cícero Romão Batista, o progresso econômico deste município do sul do estado do Ceará já era celebrado em todo o Brasil. Na década seguinte, isto é, 1960, as lideranças políticas de Juazeiro do Norte ganhariam força quando se posicionaram ao lado dos grupos hegemônicos na política cearense.

O período que vai de 1964 a 1985, ficou conhecido no Ceará como o do Ciclo dos coronéis. Isto porque ao longo desses vinte e um anos, os principais líderes da política do nosso estado foram homens ligados aos generais-presidentes que governaram a república brasileira durante a vigência da ditadura civil-militar.

Do início dos anos 1970 à metade da década seguinte, a política cearense foi compartilhada por três grupos oligárquicos liderados pelos coronéis do exército Virgílio Távora, Adauto Bezerra e César Cals. [...] o controle que os coronéis exerciam sobre o Ceará decorria, sobretudo, de um fator externo, isto é, o apoio que recebiam da ditadura militar brasileira. (FARIAS, 2015, p.493).

A atuação política do coronel Adauto Bezerra, juazeirense nascido em 1926, ao lado de outros líderes cearenses alinhados com a ditadura, transformou assim o estado do Ceará num forte reduto de apoio ao regime político implantado por meio de um golpe de estado no dia 31 de março de 1964.

Esse período de triste memória para a história de nosso país, marcou uma época de avanços econômicos no Cariri, em especial nas cidades de Juazeiro do Norte e Crato, os dois municípios onde se concentrava a atenção dos políticos caririenses.

Aos poucos essas cidades do Cariri iam perdendo sua base econômica agrária estruturada na lavoura de cana-de-açúcar, criação de gado, cotonicultura e na produção de mandioca, e enveredavam por um projeto de industrialização financiado por investimentos de capitais estrangeiros e do governo federal na região.

A economia das três principais cidades caririenses (Barbalha, Crato e Juazeiro do Norte), diversificou-se bastante. O comércio cresceu, bancos foram fundados, outros que já existiam e eram importantes casas financeiras em todo o país abriram agências nessas cidades. O crédito disponível aumentou o número de fábricas e novas casas comerciais foram abertas nesses municípios.

Ainda na década de 1970 e 1980, Juazeiro do Norte tornou-se o principal centro econômico do sul do Ceará. Dezenas de indústrias se instalaram no município e em consequência disto houve um rápido aumento demográfico na cidade. O progresso econômico também alterou o ritmo da metrópole regional e assim a relação dos seus habitantes com o espaço e o tempo também sofreu sensíveis rupturas.

Para se ter uma idéia da rapidez do desenvolvimento demográfico e econômico do Juazeiro, lembramos que em 1872, quando Padre Cícero lá chegou como capelão, aquele povoado contava aproximadamente duas mil almas. Em 1909, já contava 15.050 habitantes e, em 1940, 38.145, quase se equiparando ao Crato, que naquele ano contava 40.282 habitantes. Em 1940, a população urbana e suburbana de Juazeiro já era bem maior do que a do Crato: 24.155 habitantes, enquanto a zona urbana do Crato contava apenas 12.567 habitantes. Em 1950, a população de Juazeiro salta para 56.146 habitantes, enquanto que a do Crato vai para 46.408, mantendo-se a grande maioria dos habitantes do Juazeiro na zona urbana: 42.821, enquanto no Crato a maioria ainda habitava o campo, residindo na zona urbana apenas 16.776. Em 1960, a população de Juazeiro era de 68.494, dos quais 54.170 residiam na zona urbana, enquanto no Crato havia 59.464 habitantes, dos quais 29.308 habitando a zona urbana. (CORTEZ, 2000, p. 70).

 

Nos fins da década de 1930, Juazeiro do Norte era ainda vista como uma cidade arcaica. espécie de reduto do fanatismo religioso, antro de beatos, um lugar onde vicejavam as crendices e as práticas religiosas consideradas nefastas pela igreja católica. Padre Cícero Romão Batista havia falecido em 1934, o túmulo e os restos mortais de Maria de Araújo haviam sido destruídos em 1931, o beato José Lourenço havia sido expulso do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto em 1937, mas a população local teimava em manter viva as práticas religiosas heterodoxas da religiosidade popular.

As mentalidades do povo e os comportamentos dos “tipos” (romeiros, penitentes, beatos, rezadeiras, carpideiras, cegos, cantadores, pedintes), exasperavam as elites locais que sonhavam com uma cidade asséptica, uma cidade “civilizada”, onde prevalecesse principalmente a boa ordem cosmopolita que utopicamente existia nas grandes capitais brasileiras, modelos de cidades modernas para as demais.

O projeto de modernização conservadora que passou a ser efetivado no Ceará a partir da década de 1950 e logo foi igualmente introduzido no Cariri, este tinha como principal objetivo efetivar um ideal modernizador que favorecesse as elites locais em todos os aspectos: econômico, dispondo-lhes capitais para investirem em seus negócios;  culturais, abrindo escolas e faculdades para que os filhos dessa elite pudesse ter acesso a cultura “civilizada” do mundo; aspectos heterotópicos, criando espaços-outros., (FOUCAULT, 2001) (praças, parques municipais, balneários, clubes privados) onde essa elite pudesse divertir-se.

Mas enquanto a elite caririense ufanava-se com o aparente progresso do Cariri e acreditava haver enfim trazido a civilização para o sul cearense, indivíduos, grupos e mentalidades ditos “arcaicos” e que essa mesma elite desejava soterrar resistiam e sobreviviam impedindo a plena efetivação do projeto “civilizatório” da branquitude e do elitismo no Vale do Cariri.

Figuras populares como Maria Caboré, dona Pibite, Maria Dariú, beato da Cruz, Compadre Chico, Tandôr, Doida Amaral, João Mexe-bucho, Bilinha, se impunham como resistências ao projeto “civilizador” das elites. Assim, enquanto os grupos economicamente hegemônicos procuravam impor de cima para baixo seu ideal modernizador através do PLAMEG I (Primeiro Plano de Metas Governamentais), projeto de industrialização do estado do Ceará idealizado pelo coronel Virgílio Távora e toda a classe política conservadora que gravitava em torno do governador do estado, havia estratos, grupos, indivíduos que se impunham como resistência, fenda e desvio contra esse pacto pelo progresso das elites locais.

O Ceará sempre foi uma região de economia pouco dinâmica e periférica no Brasil, estado pobre distante dos grandes centros mundiais do capitalismo, sujeito a secas periódicas e de solos ruins, (pouco férteis e desgastados pela erosão, uso contínuo e falta de investimentos), apresentava uma estrutura latifundiária intocada e uma elevada concentração de renda, o que diminuía por demais o mercado consumidor interno. Sua economia no início dos anos 1960 era frágil baseada no comércio, na produção agropastoril, na lavoura de subsistência e nas atividades extrativistas. (FARIAS, 2015, p. 475).

Para superar este projeto econômico que vinha sendo a base da força política das elites cearenses desde o século XIX, o governado Virgílio Távora aderiu ao programa desenvolvimentista em voga no Brasil a partir da década de 1950:

Foi, portanto, com base nessas ideias desenvolvimentistas que Távora realizou sua gestão no Ceará. Não mudaria, é verdade, a estrutura fundiária nem diminuiria as abissais diferenças sociais, mas realizaria a “modernização conservadora” cearense – modernização no sentido de realização de grandes projetos estruturantes no sentido de ser feita baseada nos mesmos padrões políticos vigentes. (FARIAS, 2015, p.475).

          À medida que o projeto dessa modernização conservadora se aprofunda no Ceará ele chega ao Cariri e principalmente em Crato, Barbalha e Juazeiro do Norte, pois aí residia o grosso da elite política regional.

Essa modernização conservadora logo atinge os indivíduos e grupos tidos como “arcaicos” e que passam a ser vistos como sinônimo de atraso e incivilidade para a região. Esses grupos e indivíduos arcaicos, fanáticos, bárbaros vão sendo folclorizados ou somente postos a margem, e aqueles que resistem à folclorização e disciplinamento são extintos, caso ocorrido com as carpideiras de Nossa Senhora da Boa Morte.

Quem aceita o disciplinamento é conduzido para as margens da cultura oficial, sendo relegados a tomarem parte, mas estrito controle disciplinar por meio de contrato e cachês nas festas programadas pelo município ou a Igreja Católica, isto seu deu por exemplo com os grupos de penitentes, reisados, vendedores de cordel, cantadores, violeiros, artesãos. Homens e mulheres que não se alinharam ao modelo de modernidade projetado para as cidades de Crato, Juazeiro e Barbalha tornam-se logo incômodos e desapareceram sucumbidos ao esquecimento.

É neste período que as romarias antes manifestações espontâneas dos fiéis do Padre Cícero Romão Batista passam ao controle da Diocese do Crato que se faz representar em Juazeiro do Norte pela figura carismática do padre Murilo de Sá Barreto.

Por outro lado, todo centro de interesse peregrino surge de alguma teofania inaugural ou do anúncio de algum fato extraordinário à volta de determinada santidade. E Juazeiro, também nisso, não difere dos demais. Inegavelmente, porém, o que mais chama a atenção do estudioso desses fenômenos e que caracteriza ou particulariza as romarias do Juazeiro reside no fato de serem elas praticamente criadas e sustentadas autonomamente pelo povo e até, durante muito tempo indesejadas e reprimidas pela Igreja oficial ou sua hierarquia. (DIATAHY, 2004, p. 114).

Percebeu-se na segunda metade do século XX, que não se podia conter os movimentos religiosos no Cariri. Até então a atitude da Igreja Católica vinha sendo no sentido de fazer a repressão as romarias, ou quando muito tolerá-las. Mas a partir da década de 1960, uma aliança entre as forças políticas e religiosas locais adotou a estratégia da disciplina.

O objetivo das autoridades e elites regionais passou a ser explicitamente disciplinar. Não se combatia mais os movimentos religiosos em Juazeiro do Norte, procurava-se discipliná-los. A construção da estátua do Padre Cícero Romão Batista na Serra do Horto, a urbanização dos caminhos que davam acesso aos locais de devoção, o estabelecimento de calendários para as romarias oficiais, o credenciamento dos vendedores de santos, objetos sacros, pousadas, a criação de museus e galerias para abrigar os vestígios materiais e a memória do Padre Cícero, bem como os presentes e ex-votos dos romeiros foram aos poucos estabelecendo a ordem e a disciplina na espontaneidade dos movimentos religiosos caririenses.

esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar ‘disciplinas’. Muitos processos disciplinares existem há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois não fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes (FOUCAULT, 2010, p. 133).

 

O processo de disciplinamento das cidades do Cariri efetivar-se-ia ao longo da segunda metade do século XX. Para os resistentes contra esta “modernização” foram construídas as instituições disciplinares tradicionais. Na década de 1970 inaugurou-se no Crato o hospital psiquiátrico Santa Tereza para abrigar os loucos. Para esta instituição eram encaminhados além dos doentes mentais assim diagnosticados pelo saber médico, também aqueles que viviam pelas ruas das cidades “perturbando” os transeuntes, pondo em risco a boa fluidez do trânsito, trazendo incômodos e constrangimentos para os consumidores e visitantes da terra.

No mesmo período foi inaugurada a Colônia Penal de Santana do Cariri, para onde iam recolhidos os criminosos e marginais das cidades caririenses. Nessa colônia penal realizavam trabalhos agrícolas e em oficinas, aí os presos viviam numa espécie de regime disciplinar semiaberto.

A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em seu superpoderio; um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. Humildes modalidades, procedimentos menores, se os comprarmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes aparelhos do Estado (FOUCAULT, 2010, p. 164).

 

Por meio do disciplinamento do corpo procurava-se reeducar os marginais do Cariri. Assim, além do hospício e prisões outras instituições de caráter disciplinar foram construídas ao longo das décadas de 1960, 1970 e 1980 no Vale do Cariri. É dessa época que data a abertura da escola agrotécnica da região, a escola técnica de comércio em Crato, a escola normal rural de Juazeiro do Norte, os hospitais especializados de Crato e Barbalha.

Diante de todo esse poderoso aparato “modernizador”, “civilizatório”, e principalmente disciplinador, o que pode o corpo negro de Joaquim Gomes Menezes, mais conhecido como Príncipe Ribamar da Beira Fresca?

A presença do corpo desse homem negro nos espaços utópicos gestados pelas elites locais foi tão marcante que mesmo intelectuais a serviço desta elite local não puderam prescindir da sua presença. O corpo negro do Príncipe Ribamar da Beira Fresca se impôs no seu próprio tempo como um instrumento de rebeldia contra a projeto de modernização conservadora no Cariri e mais especificamente em Juazeiro do Norte.


O Príncipe Ribamar da Beira Fresca em sua melhor vestimenta pronto para o desfile cívico de 7 de setembro. (FOTO | Reprodução | Internet). 

Não trataremos como coincidência o fato de que a suposta loucura que acometeu Joaquim Gomes Menezes tenha se desencadeado nos meados da década de 1950, exatamente quando os pactos das elites locais para modernizar e disciplinar as cidades de Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha e a partir delas estender o modelo modernizador para toda a região se fizeram mais evidentes através da política de industrialização, modernização e desenvolvimento do Ceará proposta pelo PLAMEG I.

Sabemos que até fins da década de 1940, Joaquim Gomes Menezes vivia uma vida pacata em companhia de sua mãe e sua irmã nas proximidades do Rio Salgadinho em Juazeiro do Norte. Nessa época trabalhava como marceneiro, e era um profissional bastante requisitado para fabricar móveis, e criar tesouras para os tetos de prédios e igrejas da região. Consta que teria sido o criador das tesouras das que sustentam os tetos do santuário de São Francisco de Assis em Juazeiro do Norte e do Cine Eldorado na mesma cidade, também há notícias de ter sido este homem negro quem entalhou a tesoura que sustenta o teto da igreja matriz de Ipaumirim no Ceará.

O Príncipe Ribamar com seu Joaquim ele mesmo. (FOTO | Reprodução | Internet).

Relatos da época informam que era exímio entalhador de móveis e que tinha especial talento para criar caramanchões de jardim, muito comuns nos nas casas ricas daquelas décadas. Desse modo percebemos que Joaquim Gomes Menezes vivia como um trabalhador e um homem comum até princípios dos anos de 1950.

 

Em vários relatos sobre o Príncipe Ribamar temos o depoimento de que se tratava de um exímio carpinteiro, que abandonou a profissão para perambular pelas ruas de Juazeiro e mostrar as condecorações recebidas, simbolizadas em medalhas penduradas na sua incrementada vestimenta. Pelas suas qualidades de homem pacato e respeitador, todos lhe davam atenção. Era um excelente marceneiro: foi ele quem fez os cruzamentos e tesouras de madeira para a construção do Santuário São Francisco, cines Eldorado e Capitólio, caramanchões e outras obras em madeira. (João Caboclo, disponível em http://principeribamar.blogspot.com/, acesso em 21 de maio de 2023).

 

As primeiras notícias de que Joaquim Gomes Menezes adotara para si a personalidade de Príncipe Ribamar da Beira Fresca vem de relatos e crônicas de fins de 1950. Durante mais de duas décadas ele viveria em Juazeiro do Norte não mais como o marceneiro Joaquim Gomes, mas como o nobre Príncipe Ribamar a vagar pelo centro da cidade apresentando seus projetos para quem lhe desse a devida atenção.

Desse modo enquanto Juazeiro do Norte se “modernizava”, enquanto o progresso chegava e as elites se ufanavam dele, e enquanto essa mesma elite criava os espaços heterotópicos para seu gozo ou para disciplinamento biológico dos resistentes ao seu projeto de modernização conservadora, o Príncipe Ribamar da Beira Fresca rebelava-se com seu corpo negro contra os devaneios desenvolvimentistas das elites políticas e econômicas conservadoras regionais.

A rebelião do Príncipe Ribamar da Beira Fresca não se impunha somente pela presença do seu corpo negro rebelado contra as práticas disciplinares do ideal de modernidade da intelectualidade e da elite caririense. Além do seu corpo negro rebelde que se fazia presente nas festas e celebrações públicas dadas pela classe dominante para comemorar os fastos nacionais e municipais, havia toda uma estratégia de resistência nos gestos, nas falas e nas ideias do Príncipe Ribamar.

Segundo João Caboclo:

Figura bastante popular entre a população: cor morena, estatura elevada, físico esguio. Nos dias de festas, Dia do Município, 7 de setembro, trajava vestes reais: chapéu de penacho, sapatos com emblemas, muitas medalhas em metais luminosos lhe ornavam o peito, casaca de botões dourados, espada e outros aparatos que lhe davam aparência real. Usava óculos escuros e andava de forma imponente. Costumava conversar com pessoas eminentes, autoridades e frequentava diariamente as agências bancárias da cidade. (Disponível em: http://principeribamar.blogspot.com/, acesso em 21 de maio de 2023)

 

E Daniel Walker:

 

Quem conheceu o Príncipe Ribamar da Beira-fresca, em Juazeiro do Norte, sabe que ele tinha quatro grandes empreendimentos, tidos por todos como sendo coisas fantasiosas: 

1) Fábrica de desentortar banana; 

2) Fábrica de fumaça; 

3) Mina de espermatozoides e 

4) Cavalaria marítima. 

Ninguém o levava a sério, e ele morreu com muita gente acreditando tratar-se de mais um dos loucos da cidade. Mas isso pode não ser totalmente verdade, e talvez ele não tenha sido tão louco como se pensava... (Disponível em: http://principeribamar.blogspot.com/, acesso em 21 de maio de 2023).

 

A pasta de estadista Do Príncipe Ribamar da Beira Fresca trazia uma fotografia de sua dama prometida, a Princesa Gioconda de Eslobóvia e junto a fotografia dessa alteza real havia também documentos em que planejava como estabelecer a paz mundial, mas havia igualmente planos de gestão, ideias políticas, projetos de engenharia. Aos incrédulos tais projetos e planos semelhavam abusões geradas por um cérebro doente e uma mente ensandecida.

Desses ideais do Príncipe Ribamar costuma-se falar em tom geralmente chocarreiro e trocista. Se os seus contemporâneos ouviam-no falar ou tinham notícias de suas ideias para construir uma fábrica de fumaça, montar uma máquina de desentortar banana, aplainar a Serra do Horto para lá construir um sanatório para tratamento dos tuberculosos, trazer uma cavalaria marinha desde o mar através do curso do Rio Jaguaribe, Rio Salgado e Salgadinho para guarnecer Juazeiro do Norte ou instalar uma mina de espermatozoide, tratavam essas ideias como fantasias e produtos de uma mente doente.

Mas o que podemos perceber é que há uma evidente ironia subversiva nesses ideais surrealistas do Príncipe Ribamar. Vejamos alguns aspectos desses pensamentos. Sabemos que ao ser questionado sobre suas propriedades o Príncipe informou que se dedicava a criar macacos em sua fazenda, mas sua criação de símios estava sendo atacada por viventes humanos e para dar cabo da praga que atormentava seus macacos tinha passado a caçar tais viventes e com o couro destes fabricava cédulas de 5.000 e 10.000 cruzeiros que por isso possuíam alto valor monetário.

Esses e outros relatos sobre as falas e gestos públicos do Príncipe Ribamar da Beira Fresca mostram que sua lógica de pensamento se vinculava aos pensamentos oníricos dos surrealistas. Com efeito na lógica do surrealismo a realidade não se apresenta como foi gestada pela razão ocidental, os pensadores surrealistas, pintores, escultores, poetas, escritores, cineastas adotaram uma percepção maravilhosa da realidade.

Se a racionalidade extrema do século XIX, trouxe o caos para a
civilização, o Surrealismo, então, propôs uma nova lógica de pensamento., a realidade vista como espaço onde se funde o real e o maravilhoso, a antilógica surrealista se afirma como subversão da ordem burguesa. [...] o Surrealismo que preconizou quatro postulados: a liberdade, a poesia, o amor e o
maravilhoso. A liberdade no Surrealismo busca o desapego às regras sociais burguesas
religião, família, trabalho. (TIMBONI, 2012, p.3)

 

Ao inverter a lógica da racionalidade que se esperava de um homem disciplinado pelas luzes da modernidade o Príncipe Ribamar da Beira Fresca criava o estranhamento no seu ouvinte ou nas testemunhas dos seus atos e falas.

Máquina de desentortar banana? Fazenda de Macacos? O que significam essas ideias? Elas sugerem que o Príncipe Ribamar não se submetia aos princípios de uma racionalidade disciplinada gestada no âmago do projeto de modernidade e de sociedade “civilizada”, nem tampouco se submetia a lógica da “normalidade” burguesa transplantada ao longo do século XIX e XX para o Brasil.

Seus gestos depunham contra o sistema de valores impostos pela elite regional sobre a população caririense, isto é, enquanto a igreja e as autoridades políticas atuavam com o evidente objetivo de disciplinar os movimentos religiosos de Juazeiro do Norte e do Cariri em geral impondo aos romeiros práticas religiosas oficialmente construídas em torno da memória e da história do Padre Cícero Romão Batista, o Príncipe Ribamar circulava com suas vestes de alteza real pela cidade impondo sua presença e seu corpo negro àqueles que o queriam disciplinado.

Príncipe Ribmar da Beira Fresca e seus trajes de gala. (FOTO | Reprodução | Internet).


Ao não se sujeitar a ser recolhido ao hospício do Crato ou a colônia penal de Santana do Cariri, ao não aceitar ser medicalizado ou reeducado pelas instituições do biopoder local, o Príncipe Ribamar passou a representar toda uma estratégia de resistência contra os instrumentos de disciplinamento que vão tomando conta do Cariri e de Juazeiro do Norte ao longo da segunda metade do século XX.

Seus gestos são os gestos de um homem que se rebela contra os poderes constituídos, mas esta não é uma rebelião que agita bandeiras ou discursos inflamados, esta é a rebelião de um homem infame, de um homem que possuindo um corpo rebelde e uma inteligência sagaz deles faz uso para através da existência autêntica impor seu modo de ser contra as formas de existir criadas pela modernidade.

Como vimo a vida, os gestos e o corpo do Príncipe Ribamar da Beira Fresca nunca foram compreendidos pelos seus contemporâneos, não se percebeu que ele era um burlador, um Dom Quixote contra os moinhos de vento, um homem rebelado contra uma modernidade que submetia multidões a servidão voluntária e concedia privilégios as elites fechadas nos seus próprios nichos heterotópicos.

Diante da impossibilidade de viver de acordo com os princípios daquela sociedade disciplinar Joaquim Gomes Menezes criou para si a singular existência do Príncipe Ribamar da Beira Fresca, existência esta que cinquenta anos após seu desaparecimento ainda permanece como um desafio à sociedade disciplinar e à modernidade conservadora do Cariri.

REFERÊNCIAS

CORTEZ, Antônia Otonite de Oliveira. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960), disponível em https://cariridasantigas.com.br/wp-content/uploads/2018/09/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Otonite.pdf

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Mana Ermantina Galvão – São Paulo: Martins fontes, 1999.

MENESES Eduardo Diatahy Bezerra. Romarias e o Juazeiro do Padre Cícero. In: Anais do III Simpósio Internacional sobre o Padre Cícero. Juazeiro-CE, 2004.

TIMBONI, Kétina Allen da Silva. O Surrealismo em Salvador Dalí, Pablo
Picasso e Eugenio Granell
, disponível em:
https://www.ufrgs.br/ppgletras/wp-content/uploads/2020/06/TIMBONIKetina.pdf.

WILKER, José. Revista Globo Rural, Editora Globo, Rio de Janeiro, 1995.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!