Fotografia do Príncipe Ribamar da Beira Fresca em seus trajes cotidianos. (FOTO | Reprodução | Internet). |
Por César Pereira, Colunista
Joaquim
Gomes Menezes seu nome, marceneiro de excelente arte para móveis,
(principalmente caramanchões), também entalhava tesouras para os tetos das
igrejas e santuários do Cariri. Era preto, negro, filho de pais que sempre
foram pobres, nunca se casou, viveu sempre com a mãe e uma irmã que morreram
bem antes dele, e dizem que estas morreram de fome.
Foi
personagem muito conhecido em Juazeiro do Norte. Sempre visto em repartições
públicas, saguões de hotéis, agências bancárias, escritórios, cartórios e na
própria prefeitura municipal. Dele muito se falava. Falava-se dele na Rádio
Progresso, falava-se dele na Rádio Iracema. Sobre ele escreviam os cronistas e
os poetas. Era famigerado, pois seu nome era sempre propalado nas rodas de
conversas, lembrado nas praças, nas feiras, nas bodegas.
Nos
dias de festas, principalmente nas festas cívicas, dia do município e 7 de
setembro, aparecia em público vestido roupa de gala. Nessas ocasiões trajava-se
com apuro, pois aí envergava sua melhor vestimenta. Uma casaca com galões e botões
dourados, dragonas e capa, calça de linho com vinco, cinto de couro e muitas
medalhas, representando suas muitas condecorações e títulos honoríficos.
Nos
dias comuns caminhava pelas ruas de Juazeiro do Norte vestindo terno, chapéu e
pasta e guarda-chuva nas mãos. Dentro da pasta tinha tudo: cheques já
descontados, documentos vencidos, cartas e uma fotografia da princesa Gioconda
da Eslobóvia, também projetos de engenharia, ideias políticas e folhetos de
cordel.
Os
incautos o acreditavam doido, mente fraca, um homem que teria perdido o juízo.
Muitos o tratavam com desdém e o viam apenas como o restolho de um mundo
arcaico que o rápido progresso de Juazeiro do Norte ia tratando de eliminar
para deixar a cidade limpa, pronta para receber os bons ventos da modernidade.
Para muitos, o príncipe
era maluco, um pobre coitado com o cérebro derretido pelo sol do sertão. Riam
dele, roubavam e escondiam o retrato da Gioconda. Nestes momentos, o príncipe
se imobilizava, uma explosão de dor o congelava. Eu me lembro dele, assim
privado da sua amada, feito uma estátua no meio da praça. Parecia tão triste e
ausente de si que, eu juro, flutuava a meio metro do chão, pendurado no
guarda-chuva branco. Quando uma alma boa lhe devolvia seu bem mais precioso, a
felicidade saltava dos seus olhos como um raio na tempestade. Talvez ele fosse
realmente louco. Mas uma loucura que fazia nascer uma tal felicidade e uma
felicidade que vinha de um amor tão grande me deixavam na dúvida. (WILKER,
1995, disponível em: http://oberronet.blogspot.com/2011/07/principe-ribamar-o-sonhador-de-juazeiro.html,
acesso em 21 de maio de 2023).
Na
década de 1950 a cidade de Juazeiro do Norte já despontava como uma das mais
promissoras do interior nordestino. Impulsionado pelas romarias em torno da figura
e da memória do padre Cícero Romão Batista, o progresso econômico deste
município do sul do estado do Ceará já era celebrado em todo o Brasil. Na
década seguinte, isto é, 1960, as lideranças políticas de Juazeiro do Norte
ganhariam força quando se posicionaram ao lado dos grupos hegemônicos na
política cearense.
O
período que vai de 1964 a 1985, ficou conhecido no Ceará como o do Ciclo dos
coronéis. Isto porque ao longo desses vinte e um anos, os principais líderes da
política do nosso estado foram homens ligados aos generais-presidentes que
governaram a república brasileira durante a vigência da ditadura civil-militar.
Do início dos anos 1970
à metade da década seguinte, a política cearense foi compartilhada por três
grupos oligárquicos liderados pelos coronéis do exército Virgílio Távora,
Adauto Bezerra e César Cals. [...] o controle que os coronéis exerciam sobre o
Ceará decorria, sobretudo, de um fator externo, isto é, o apoio que recebiam da
ditadura militar brasileira. (FARIAS, 2015, p.493).
A
atuação política do coronel Adauto Bezerra, juazeirense nascido em 1926, ao
lado de outros líderes cearenses alinhados com a ditadura, transformou assim o
estado do Ceará num forte reduto de apoio ao regime político implantado por
meio de um golpe de estado no dia 31 de março de 1964.
Esse
período de triste memória para a história de nosso país, marcou uma época de
avanços econômicos no Cariri, em especial nas cidades de Juazeiro do Norte e
Crato, os dois municípios onde se concentrava a atenção dos políticos
caririenses.
Aos
poucos essas cidades do Cariri iam perdendo sua base econômica agrária
estruturada na lavoura de cana-de-açúcar, criação de gado, cotonicultura e na
produção de mandioca, e enveredavam por um projeto de industrialização
financiado por investimentos de capitais estrangeiros e do governo federal na
região.
A
economia das três principais cidades caririenses (Barbalha, Crato e Juazeiro do
Norte), diversificou-se bastante. O comércio cresceu, bancos foram fundados,
outros que já existiam e eram importantes casas financeiras em todo o país
abriram agências nessas cidades. O crédito disponível aumentou o número de
fábricas e novas casas comerciais foram abertas nesses municípios.
Ainda
na década de 1970 e 1980, Juazeiro do Norte tornou-se o principal centro
econômico do sul do Ceará. Dezenas de indústrias se instalaram no município e
em consequência disto houve um rápido aumento demográfico na cidade. O
progresso econômico também alterou o ritmo da metrópole regional e assim a
relação dos seus habitantes com o espaço e o tempo também sofreu sensíveis
rupturas.
Para
se ter uma idéia da rapidez do desenvolvimento demográfico e econômico do
Juazeiro, lembramos que em 1872, quando Padre Cícero lá chegou como capelão,
aquele povoado contava aproximadamente duas mil almas. Em 1909, já contava
15.050 habitantes e, em 1940, 38.145, quase se equiparando ao Crato, que
naquele ano contava 40.282 habitantes. Em 1940, a população urbana e suburbana
de Juazeiro já era bem maior do que a do Crato: 24.155 habitantes, enquanto a
zona urbana do Crato contava apenas 12.567 habitantes. Em 1950, a população de
Juazeiro salta para 56.146 habitantes, enquanto que a do Crato vai para 46.408,
mantendo-se a grande maioria dos habitantes do Juazeiro na zona urbana: 42.821,
enquanto no Crato a maioria ainda habitava o campo, residindo na zona urbana
apenas 16.776. Em 1960, a população de Juazeiro era de 68.494, dos quais 54.170
residiam na zona urbana, enquanto no Crato havia 59.464 habitantes, dos quais
29.308 habitando a zona urbana. (CORTEZ, 2000, p. 70).
Nos
fins da década de 1930, Juazeiro do Norte era ainda vista como uma cidade
arcaica. espécie de reduto do fanatismo religioso, antro de beatos, um lugar
onde vicejavam as crendices e as práticas religiosas consideradas nefastas pela
igreja católica. Padre Cícero Romão Batista havia falecido em 1934, o túmulo e os
restos mortais de Maria de Araújo haviam sido destruídos em 1931, o beato José
Lourenço havia sido expulso do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto em 1937, mas
a população local teimava em manter viva as práticas religiosas heterodoxas da
religiosidade popular.
As
mentalidades do povo e os comportamentos dos “tipos” (romeiros, penitentes,
beatos, rezadeiras, carpideiras, cegos, cantadores, pedintes), exasperavam as
elites locais que sonhavam com uma cidade asséptica, uma cidade “civilizada”,
onde prevalecesse principalmente a boa ordem cosmopolita que utopicamente existia
nas grandes capitais brasileiras, modelos de cidades modernas para as demais.
O
projeto de modernização conservadora que passou a ser efetivado no Ceará a
partir da década de 1950 e logo foi igualmente introduzido no Cariri, este
tinha como principal objetivo efetivar um ideal modernizador que favorecesse as
elites locais em todos os aspectos: econômico, dispondo-lhes capitais para
investirem em seus negócios; culturais, abrindo
escolas e faculdades para que os filhos dessa elite pudesse ter acesso a
cultura “civilizada” do mundo; aspectos heterotópicos, criando espaços-outros.,
(FOUCAULT, 2001) (praças, parques municipais, balneários, clubes privados)
onde essa elite pudesse divertir-se.
Mas
enquanto a elite caririense ufanava-se com o aparente progresso do Cariri e
acreditava haver enfim trazido a civilização para o sul cearense, indivíduos,
grupos e mentalidades ditos “arcaicos” e que essa mesma elite desejava soterrar
resistiam e sobreviviam impedindo a plena efetivação do projeto “civilizatório”
da branquitude e do elitismo no Vale do Cariri.
Figuras
populares como Maria Caboré, dona Pibite, Maria Dariú, beato da Cruz, Compadre
Chico, Tandôr, Doida Amaral, João Mexe-bucho, Bilinha, se impunham como
resistências ao projeto “civilizador” das elites. Assim, enquanto os grupos
economicamente hegemônicos procuravam impor de cima para baixo seu ideal
modernizador através do PLAMEG I (Primeiro Plano de Metas Governamentais),
projeto de industrialização do estado do Ceará idealizado pelo coronel Virgílio
Távora e toda a classe política conservadora que gravitava em torno do
governador do estado, havia estratos, grupos, indivíduos que se impunham como
resistência, fenda e desvio contra esse pacto pelo progresso das elites locais.
O Ceará sempre foi uma
região de economia pouco dinâmica e periférica no Brasil, estado pobre distante
dos grandes centros mundiais do capitalismo, sujeito a secas periódicas e de
solos ruins, (pouco férteis e desgastados pela erosão, uso contínuo e falta de
investimentos), apresentava uma estrutura latifundiária intocada e uma elevada
concentração de renda, o que diminuía por demais o mercado consumidor interno.
Sua economia no início dos anos 1960 era frágil baseada no comércio, na
produção agropastoril, na lavoura de subsistência e nas atividades
extrativistas. (FARIAS, 2015, p. 475).
Para
superar este projeto econômico que vinha sendo a base da força política das
elites cearenses desde o século XIX, o governado Virgílio Távora aderiu ao
programa desenvolvimentista em voga no Brasil a partir da década de 1950:
Foi, portanto, com base
nessas ideias desenvolvimentistas que Távora realizou sua gestão no Ceará. Não
mudaria, é verdade, a estrutura fundiária nem diminuiria as abissais diferenças
sociais, mas realizaria a “modernização conservadora” cearense – modernização
no sentido de realização de grandes projetos estruturantes no sentido de ser
feita baseada nos mesmos padrões políticos vigentes. (FARIAS, 2015, p.475).
À medida que o projeto dessa
modernização conservadora se aprofunda no Ceará ele chega ao Cariri e
principalmente em Crato, Barbalha e Juazeiro do Norte, pois aí residia o grosso
da elite política regional.
Essa
modernização conservadora logo atinge os indivíduos e grupos tidos como
“arcaicos” e que passam a ser vistos como sinônimo de atraso e incivilidade
para a região. Esses grupos e indivíduos arcaicos, fanáticos, bárbaros vão
sendo folclorizados ou somente postos a margem, e aqueles que resistem à
folclorização e disciplinamento são extintos, caso ocorrido com as carpideiras
de Nossa Senhora da Boa Morte.
Quem
aceita o disciplinamento é conduzido para as margens da cultura oficial, sendo
relegados a tomarem parte, mas estrito controle disciplinar por meio de
contrato e cachês nas festas programadas pelo município ou a Igreja Católica,
isto seu deu por exemplo com os grupos de penitentes, reisados, vendedores de
cordel, cantadores, violeiros, artesãos. Homens e mulheres que não se alinharam
ao modelo de modernidade projetado para as cidades de Crato, Juazeiro e
Barbalha tornam-se logo incômodos e desapareceram sucumbidos ao esquecimento.
É
neste período que as romarias antes manifestações espontâneas dos fiéis do
Padre Cícero Romão Batista passam ao controle da Diocese do Crato que se faz
representar em Juazeiro do Norte pela figura carismática do padre Murilo de Sá
Barreto.
Por
outro lado, todo centro de interesse peregrino surge de alguma teofania
inaugural ou do anúncio de algum fato extraordinário à volta de determinada santidade. E Juazeiro, também nisso, não
difere dos demais. Inegavelmente, porém, o que
mais chama a atenção do estudioso desses
fenômenos e que caracteriza ou particulariza as romarias do Juazeiro reside no
fato de serem elas praticamente criadas e
sustentadas autonomamente pelo povo e até, durante muito tempo indesejadas e reprimidas pela Igreja oficial ou sua
hierarquia. (DIATAHY, 2004, p. 114).
Percebeu-se
na segunda metade do século XX, que não se podia conter os movimentos
religiosos no Cariri. Até então a atitude da Igreja Católica vinha sendo no
sentido de fazer a repressão as romarias, ou quando muito tolerá-las. Mas a
partir da década de 1960, uma aliança entre as forças políticas e religiosas
locais adotou a estratégia da disciplina.
O
objetivo das autoridades e elites regionais passou a ser explicitamente
disciplinar. Não se combatia mais os movimentos religiosos em Juazeiro do
Norte, procurava-se discipliná-los. A construção da estátua do Padre Cícero
Romão Batista na Serra do Horto, a urbanização dos caminhos que davam acesso
aos locais de devoção, o estabelecimento de calendários para as romarias
oficiais, o credenciamento dos vendedores de santos, objetos sacros, pousadas,
a criação de museus e galerias para abrigar os vestígios materiais e a memória
do Padre Cícero, bem como os presentes e ex-votos dos romeiros foram aos poucos
estabelecendo a ordem e a disciplina na espontaneidade dos movimentos
religiosos caririenses.
esses métodos que
permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição
constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são
o que podemos chamar ‘disciplinas’. Muitos processos disciplinares existem há
muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as
disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de
dominação. Diferentes da escravidão, pois não fundamentam numa relação de
apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação
custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes
(FOUCAULT, 2010, p. 133).
O
processo de disciplinamento das cidades do Cariri efetivar-se-ia ao longo da
segunda metade do século XX. Para os resistentes contra esta “modernização”
foram construídas as instituições disciplinares tradicionais. Na década de 1970
inaugurou-se no Crato o hospital psiquiátrico Santa Tereza para abrigar os
loucos. Para esta instituição eram encaminhados além dos doentes mentais assim
diagnosticados pelo saber médico, também aqueles que viviam pelas ruas das
cidades “perturbando” os transeuntes, pondo em risco a boa fluidez do trânsito,
trazendo incômodos e constrangimentos para os consumidores e visitantes da terra.
No
mesmo período foi inaugurada a Colônia Penal de Santana do Cariri, para onde
iam recolhidos os criminosos e marginais das cidades caririenses. Nessa colônia
penal realizavam trabalhos agrícolas e em oficinas, aí os presos viviam numa
espécie de regime disciplinar semiaberto.
A disciplina “fabrica”
indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao
mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder
triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em seu
superpoderio; um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma
economia calculada, mas permanente. Humildes modalidades, procedimentos
menores, se os comprarmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes
aparelhos do Estado (FOUCAULT, 2010, p. 164).
Por
meio do disciplinamento do corpo procurava-se reeducar os marginais do Cariri. Assim,
além do hospício e prisões outras instituições de caráter disciplinar foram
construídas ao longo das décadas de 1960, 1970 e 1980 no Vale do Cariri. É
dessa época que data a abertura da escola agrotécnica da região, a escola
técnica de comércio em Crato, a escola normal rural de Juazeiro do Norte, os
hospitais especializados de Crato e Barbalha.
Diante
de todo esse poderoso aparato “modernizador”, “civilizatório”, e principalmente
disciplinador, o que pode o corpo negro de Joaquim Gomes Menezes, mais
conhecido como Príncipe Ribamar da Beira Fresca?
A
presença do corpo desse homem negro nos espaços utópicos gestados pelas elites
locais foi tão marcante que mesmo intelectuais a serviço desta elite local não
puderam prescindir da sua presença. O corpo negro do Príncipe Ribamar da Beira
Fresca se impôs no seu próprio tempo como um instrumento de rebeldia contra a
projeto de modernização conservadora no Cariri e mais especificamente em
Juazeiro do Norte.
O Príncipe Ribamar da Beira Fresca em sua melhor vestimenta pronto para o desfile cívico de 7 de setembro. (FOTO | Reprodução | Internet). |
Não
trataremos como coincidência o fato de que a suposta loucura que acometeu
Joaquim Gomes Menezes tenha se desencadeado nos meados da década de 1950,
exatamente quando os pactos das elites locais para modernizar e disciplinar as
cidades de Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha e a partir delas estender o
modelo modernizador para toda a região se fizeram mais evidentes através da
política de industrialização, modernização e desenvolvimento do Ceará proposta
pelo PLAMEG I.
Sabemos
que até fins da década de 1940, Joaquim Gomes Menezes vivia uma vida pacata em
companhia de sua mãe e sua irmã nas proximidades do Rio Salgadinho em Juazeiro
do Norte. Nessa época trabalhava como marceneiro, e era um profissional
bastante requisitado para fabricar móveis, e criar tesouras para os tetos de
prédios e igrejas da região. Consta que teria sido o criador das tesouras das
que sustentam os tetos do santuário de São Francisco de Assis em Juazeiro do
Norte e do Cine Eldorado na mesma cidade, também há notícias de ter sido este
homem negro quem entalhou a tesoura que sustenta o teto da igreja matriz de
Ipaumirim no Ceará.
O Príncipe Ribamar com seu Joaquim ele mesmo. (FOTO | Reprodução | Internet). |
Relatos
da época informam que era exímio entalhador de móveis e que tinha especial
talento para criar caramanchões de jardim, muito comuns nos nas casas ricas
daquelas décadas. Desse modo percebemos que Joaquim Gomes Menezes vivia como um
trabalhador e um homem comum até princípios dos anos de 1950.
Em vários relatos sobre
o Príncipe Ribamar temos o depoimento de que se tratava de um exímio
carpinteiro, que abandonou a profissão para perambular pelas ruas de Juazeiro e
mostrar as condecorações recebidas, simbolizadas em medalhas penduradas na sua
incrementada vestimenta. Pelas suas qualidades de homem pacato e respeitador,
todos lhe davam atenção. Era um excelente marceneiro: foi ele quem fez os
cruzamentos e tesouras de madeira para a construção do Santuário São Francisco,
cines Eldorado e Capitólio, caramanchões e outras obras em madeira. (João
Caboclo, disponível em http://principeribamar.blogspot.com/, acesso em 21 de
maio de 2023).
As
primeiras notícias de que Joaquim Gomes Menezes adotara para si a personalidade
de Príncipe Ribamar da Beira Fresca vem de relatos e crônicas de fins de 1950.
Durante mais de duas décadas ele viveria em Juazeiro do Norte não mais como o
marceneiro Joaquim Gomes, mas como o nobre Príncipe Ribamar a vagar pelo centro
da cidade apresentando seus projetos para quem lhe desse a devida atenção.
Desse
modo enquanto Juazeiro do Norte se “modernizava”, enquanto o progresso chegava
e as elites se ufanavam dele, e enquanto essa mesma elite criava os espaços
heterotópicos para seu gozo ou para disciplinamento biológico dos resistentes
ao seu projeto de modernização conservadora, o Príncipe Ribamar da Beira Fresca
rebelava-se com seu corpo negro contra os devaneios desenvolvimentistas das
elites políticas e econômicas conservadoras regionais.
A
rebelião do Príncipe Ribamar da Beira Fresca não se impunha somente pela
presença do seu corpo negro rebelado contra as práticas disciplinares do ideal
de modernidade da intelectualidade e da elite caririense. Além do seu corpo
negro rebelde que se fazia presente nas festas e celebrações públicas dadas
pela classe dominante para comemorar os fastos nacionais e municipais, havia
toda uma estratégia de resistência nos gestos, nas falas e nas ideias do
Príncipe Ribamar.
Segundo
João Caboclo:
Figura bastante popular
entre a população: cor morena, estatura elevada, físico esguio. Nos dias de
festas, Dia do Município, 7 de setembro, trajava vestes reais: chapéu de
penacho, sapatos com emblemas, muitas medalhas em metais luminosos lhe ornavam
o peito, casaca de botões dourados, espada e outros aparatos que lhe davam
aparência real. Usava óculos escuros e andava de forma imponente. Costumava
conversar com pessoas eminentes, autoridades e frequentava diariamente as
agências bancárias da cidade. (Disponível em: http://principeribamar.blogspot.com/,
acesso em 21 de maio de 2023)
E
Daniel Walker:
Quem conheceu o Príncipe Ribamar
da Beira-fresca, em Juazeiro do Norte, sabe que ele tinha quatro grandes
empreendimentos, tidos por todos como sendo coisas fantasiosas:
1) Fábrica de desentortar
banana;
2) Fábrica de fumaça;
3) Mina de espermatozoides
e
4) Cavalaria marítima.
Ninguém o
levava a sério, e ele morreu com muita gente acreditando tratar-se de mais
um dos loucos da cidade. Mas isso pode não ser totalmente verdade, e talvez ele
não tenha sido tão louco como se pensava... (Disponível em: http://principeribamar.blogspot.com/,
acesso em 21 de maio de 2023).
A
pasta de estadista Do Príncipe Ribamar da Beira Fresca trazia uma fotografia de
sua dama prometida, a Princesa Gioconda de Eslobóvia e junto a fotografia dessa
alteza real havia também documentos em que planejava como estabelecer a paz
mundial, mas havia igualmente planos de gestão, ideias políticas, projetos de
engenharia. Aos incrédulos tais projetos e planos semelhavam abusões geradas
por um cérebro doente e uma mente ensandecida.
Desses
ideais do Príncipe Ribamar costuma-se falar em tom geralmente chocarreiro e
trocista. Se os seus contemporâneos ouviam-no falar ou tinham notícias de suas
ideias para construir uma fábrica de fumaça, montar uma máquina de desentortar
banana, aplainar a Serra do Horto para lá construir um sanatório para
tratamento dos tuberculosos, trazer uma cavalaria marinha desde o mar através
do curso do Rio Jaguaribe, Rio Salgado e Salgadinho para guarnecer Juazeiro do
Norte ou instalar uma mina de espermatozoide, tratavam essas ideias como
fantasias e produtos de uma mente doente.
Mas
o que podemos perceber é que há uma evidente ironia subversiva nesses ideais
surrealistas do Príncipe Ribamar. Vejamos alguns aspectos desses pensamentos. Sabemos
que ao ser questionado sobre suas propriedades o Príncipe informou que se
dedicava a criar macacos em sua fazenda, mas sua criação de símios estava sendo
atacada por viventes humanos e para dar cabo da praga que atormentava seus
macacos tinha passado a caçar tais viventes e com o couro destes fabricava
cédulas de 5.000 e 10.000 cruzeiros que por isso possuíam alto valor monetário.
Esses
e outros relatos sobre as falas e gestos públicos do Príncipe Ribamar da Beira
Fresca mostram que sua lógica de pensamento se vinculava aos pensamentos
oníricos dos surrealistas. Com efeito na lógica do surrealismo a realidade não
se apresenta como foi gestada pela razão ocidental, os pensadores surrealistas,
pintores, escultores, poetas, escritores, cineastas adotaram uma percepção
maravilhosa da realidade.
Se a racionalidade
extrema do século XIX, trouxe o caos para a
civilização, o Surrealismo, então, propôs uma nova lógica de pensamento., a
realidade vista como espaço onde se funde o real e o maravilhoso, a antilógica
surrealista se afirma como subversão da ordem burguesa. [...] o Surrealismo que
preconizou quatro postulados: a liberdade, a poesia, o amor e o
maravilhoso. A liberdade no Surrealismo busca o desapego às regras sociais burguesas
religião, família, trabalho. (TIMBONI, 2012, p.3)
Ao
inverter a lógica da racionalidade que se esperava de um homem disciplinado
pelas luzes da modernidade o Príncipe Ribamar da Beira Fresca criava o
estranhamento no seu ouvinte ou nas testemunhas dos seus atos e falas.
Máquina
de desentortar banana? Fazenda de Macacos? O que significam essas ideias? Elas
sugerem que o Príncipe Ribamar não se submetia aos princípios de uma
racionalidade disciplinada gestada no âmago do projeto de modernidade e de sociedade
“civilizada”, nem tampouco se submetia a lógica da “normalidade” burguesa
transplantada ao longo do século XIX e XX para o Brasil.
Seus
gestos depunham contra o sistema de valores impostos pela elite regional sobre
a população caririense, isto é, enquanto a igreja e as autoridades políticas
atuavam com o evidente objetivo de disciplinar os movimentos religiosos de
Juazeiro do Norte e do Cariri em geral impondo aos romeiros práticas religiosas
oficialmente construídas em torno da memória e da história do Padre Cícero
Romão Batista, o Príncipe Ribamar circulava com suas vestes de alteza real pela
cidade impondo sua presença e seu corpo negro àqueles que o queriam
disciplinado.
Príncipe Ribmar da Beira Fresca e seus trajes de gala. (FOTO | Reprodução | Internet). |
Ao
não se sujeitar a ser recolhido ao hospício do Crato ou a colônia penal de
Santana do Cariri, ao não aceitar ser medicalizado ou reeducado pelas
instituições do biopoder local, o Príncipe Ribamar passou a representar toda
uma estratégia de resistência contra os instrumentos de disciplinamento que vão
tomando conta do Cariri e de Juazeiro do Norte ao longo da segunda metade do
século XX.
Seus
gestos são os gestos de um homem que se rebela contra os poderes constituídos,
mas esta não é uma rebelião que agita bandeiras ou discursos inflamados, esta é
a rebelião de um homem infame, de um homem que possuindo um corpo rebelde e uma
inteligência sagaz deles faz uso para através da existência autêntica impor seu
modo de ser contra as formas de existir criadas pela modernidade.
Como
vimo a vida, os gestos e o corpo do Príncipe Ribamar da Beira Fresca nunca
foram compreendidos pelos seus contemporâneos, não se percebeu que ele era um
burlador, um Dom Quixote contra os moinhos de vento, um homem rebelado contra
uma modernidade que submetia multidões a servidão voluntária e concedia
privilégios as elites fechadas nos seus próprios nichos heterotópicos.
Diante
da impossibilidade de viver de acordo com os princípios daquela sociedade
disciplinar Joaquim Gomes Menezes criou para si a singular existência do
Príncipe Ribamar da Beira Fresca, existência esta que cinquenta anos após seu
desaparecimento ainda permanece como um desafio à sociedade disciplinar e à
modernidade conservadora do Cariri.
REFERÊNCIAS
CORTEZ, Antônia
Otonite de Oliveira. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960),
disponível em https://cariridasantigas.com.br/wp-content/uploads/2018/09/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Otonite.pdf
FOUCAULT, Michel. Em
defesa da sociedade. Trad. Mana Ermantina Galvão – São Paulo: Martins
fontes, 1999.
MENESES
Eduardo Diatahy Bezerra. Romarias e o Juazeiro do Padre Cícero. In: Anais do
III Simpósio
Internacional sobre o Padre Cícero. Juazeiro-CE, 2004.
TIMBONI,
Kétina Allen da Silva. O Surrealismo em Salvador Dalí, Pablo
Picasso e Eugenio Granell, disponível em: https://www.ufrgs.br/ppgletras/wp-content/uploads/2020/06/TIMBONIKetina.pdf.
WILKER, José. Revista Globo Rural, Editora Globo, Rio de Janeiro, 1995.
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