9 de junho de 2023

Em 2022, analfabetismo cai, mas continua mais alto entre pretos e pardos e no Nordeste

 

Pela primeira vez, mais da metade (53,2%) da população de 25 anos ou mais tinham pelo menos o Ensino Básico Obrigatório. (FOTO | Renato Araújo/Agência Brasília).


A taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais recuou de 6,1% em 2019 para 5,6% em 2022, uma redução de pouco mais de 490 mil analfabetos no país, chegando a menor taxa da série, iniciada em 2016. No total, eram 9,6 milhões de pessoas que não sabiam ler e escrever, sendo que 55,3% (5,3 milhões) delas viviam no Nordeste e 54,2% (5,2 milhões) tinham 60 anos ou mais.

Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua: Educação 2022, divulgada hoje pelo IBGE. Essa é a primeira divulgação do módulo após a pandemia. Devido à redução na taxa de aproveitamento da amostra, causada pela mudança na forma de coleta implementada emergencialmente durante o período de distanciamento social, a divulgação do suplemento foi suspensa em 2020 e 2021, retornando agora com os resultados para 2022.

O analfabetismo segue em trajetória de queda, mas mantém uma característica estrutural: quanto mais velho o grupo populacional, maior a proporção de analfabetos. Isso indica que as gerações mais novas estão tendo maior acesso à educação e sendo alfabetizadas ainda crianças, enquanto permanece um contingente de analfabetos, formado principalmente, por pessoas idosas que não acessaram à alfabetização na infância/juventude e permanecem analfabetas na vida adulta”, observa a coordenadora Pesquisas por Amostra de Domicílios do IBGE, Adriana Beringuy.

As taxas ficaram em 16,0% entre as pessoas de 60 anos ou mais, 9,8% entre as pessoas com 40 anos ou mais, 6,8% entre aquelas com 25 anos ou mais e 5,6% entre a população de 15 anos ou mais. Por outro lado, a taxa de analfabetismo das pessoas de 60 anos ou mais foi a que mais caiu, reduzindo-se em 2,1 p.p frente a 2019 e 4,5 p.p. ante 2016.

Taxa de analfabetismo de pretos e pardos é duas vezes maior que a dos brancos

Em 2022, entre as pessoas pretas ou pardas com 15 anos ou mais de idade, 7,4% eram analfabetas, mais que o dobro da taxa encontrada entre as pessoas brancas (3,4%). No grupo etário de 60 anos ou mais, a taxa de analfabetismo dos brancos alcançou 9,3%, enquanto entre pretos ou pardos ela chegava a 23,3%.

Na análise por sexo, a taxa de analfabetismo das mulheres de 15 anos ou mais, em 2022, foi de 5,4%, enquanto a dos homens foi de 5,9%. Entre os idosos, a taxa das mulheres foi de 16,3%, ficando acima da dos homens (15,7%).

Beringuy destaca que “a tendência de queda do analfabetismo se verifica nos grupos onde ele é maior: população mais velha e pessoas de cor preta ou parda. É como se tivesse mais espaço para queda nesses grupos, uma vez que a população jovem já está mais escolarizada. De todo modo, temos um panorama no qual persiste mais de 20% da população de 60 anos ou mais de cor preta ou parda na condição de analfabeta”.

Taxa de analfabetismo do Nordeste é quatro vezes maior que a do Sudeste

A taxa de analfabetismo para as pessoas de 15 anos ou mais também reflete desigualdades regionais: o Nordeste tem a taxa mais alta (11,7%) e o Sudeste, a mais baixa (2,9%). No grupo dos idosos (60 anos ou mais) a diferença é maior: 32,5% para o Nordeste e 8,8% para o Sudeste.

A taxa de analfabetismo é uma das metas do atual Plano Nacional de Educação (PNE), que tem vigência até 2024. Um dos itens seria a redução da taxa da população de 15 anos ou mais para 6,5% em 2015 e a erradicação em 2024. A meta intermediária foi alcançada em 2017 na média Brasil, porém, no Nordeste e para a população preta ou parda, ainda não foi alcançada”, ressalta a coordenadora.

Entre as 27 unidades da federação, as que mostraram as três maiores taxas de analfabetismo foram Piauí (14,8%), Alagoas (14,4%) e Paraíba (13,6%). Já as três menores taxas foram as do Distrito Federal (1,9%), Rio de Janeiro (2,1%) e de São Paulo e Santa Catarina (ambos com 2,2%).

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Com informações do IBGE.

8 de junho de 2023

Povo Tabajara teme novo extermínio com possível aprovação do marco temporal

 

Mulheres tabajara reivindicam demarcação no ATL 2023 - Niaras Tabajara.

No site da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), as terras dos povos Tabajara na Paraíba ainda se encontram no status "em estudo". Mas após o Ministério Público Federal ajuizar no ano passado uma liminar para que a Justiça e a Funai concluam a demarcação, o processo andou. E segundo as lideranças, seria finalizado até agosto deste ano. A aprovação da tese do marco temporal, no entanto, pode interromper a conquista.

"O marco temporal é a catástrofe dos povos indígenas. Tanto daqueles que já lutavam antes da constituição, tanto daqueles que só reivindicaram depois, por todo um processo de silenciamento, por todo um processo de exclusão da sociedade. Ele vem trazer para cada um de nós a perda de direitos já garantidos", pontua Natália Tabajara, liderança do Niaras Tabajara, grupo de mulheres da Aldeia Vitória.

Nesta quarta-feira (7), o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou a votação para definir se é constitucional ou inconstitucional a tese jurídica que considera o dia 5 de outubro de 1988 - data da promulgação da Constituição - como o marco temporal de demarcação de terras indígenas.

Caso a Suprema Corte julgue constitucional a tese defendida pelo agronegócio brasileiro, centenas de grupos indígenas que foram expulsos de forma violenta de seus territórios perderão o direito à terra, como é o caso do povo Tabajara.

"A nossa cultura foi arrancada de nós. A gente foi proibido de falar a nossa língua, a gente foi proibido de pintar o nosso rosto. A gente foi proibido de colocar o nosso cocar para que não acontecesse o extermínio total. E hoje eu tenho dois filhos, Cauã e Cauê, eles já aprenderam sobre a cultura dos povos indígenas. Nós estamos aqui revitalizando", completa a indígena.

A luta pela terra

A luta dos Tabajara pela terra começou há séculos, em 1641. Foi quando a etnia recebeu dos portugueses a concessão das antigas sesmarias da Jacoca e Aratagui, no sul da Paraíba, zona de ocupação colonial mais antiga do estado. É o que consta nos estudos coordenados pelo antropólogo Fábio Mura, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Com o tempo, após serem expulsos de suas terras por usineiros e grandes latifundiários, as famílias do Povo Tabajara no estado se espalharam pelas periferias de João Pessoa ou em lotes da reforma agrária nos municípios de Conde, Pitimbu e Alhandra.

"Nossa maior luta hoje perante a sociedade brasileira é que a sociedade nos entenda como Tabajara, que foi um povo tão importante nos séculos passados. Nossos caciques, Piragibe, Arakem, Arapuã, Arcoverde, esses caciques que fundaram Nossa Senhora das Neves, que hoje é João Pessoa, e em troca recebemos três seis Marias, que é o Conde, a metade de Alhandra, e a metade de Pitimbu, e também a Ilha do Bispo. E de uma hora para outra esse povo desaparece", pontua o Cacique Ednaldo Tabajara.

O início da retomada

Em 2006, sob liderança de Ednaldo, os indígenas iniciaram a retomada do território. É neste ano que o cacique, através de um tio, passa a conhecer o Mito da Profecia, herdado dos anciãos tabajara, que dizia que um jovem iria novamente reunir o seu povo para conquistar o seu território.

Na época, o Cacique Tabajara era um jovem de 19 anos que pretendia deixar a Paraíba e partir para a Europa, para ser jogador profissional de futebol.

"Deixei de lutar meu direito pessoal para lutar no direito coletivo e não me arrependo porque através disso nós conseguimos respeito no município, no estado, no Nordeste, no Brasil . O cacique Ednaldo fundou uma aldeia, duas aldeias e três aldeias. Ele está revitalizando a língua do povo Tabajara. Ele está revitalizando a cerâmica, a cultura do povo de Tabajara e garantindo o território pro seu povo viver", relembra.

Antes da retomada, o cacique passou um longo período percorrendo as sedes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Funai e se reunindo com advogados, indigenistas e outras lideranças indígenas para tratar do reconhecimento oficial dos Tabajara como etnia.

Foi nesse contexto que o cacique liderou a entrada em uma área Tabajara onde seria construída uma fábrica de cimento pela empresa Elizabeth Cimentos. A concessão do território para o surgimento da primeira das três aldeias da etnia surge de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado entre a empresa e os indígenas.

"Nós Tabajara éramos muito presentes do século XV até o finalzinho do século XVI. Depois houve o silenciamento da gente. E depois vem o nosso ressurgimento. No nosso silenciamento, os coronéis, latifúndios que vêm de fora do Brasil, começam a tomar o território nosso. Hoje o marco temporal é muito isso. Como não vale mais nós ter língua cortada, pescoço cortado, cabeça cortada, óleo queimado e jogado em cima do nosso corpo, casa queimada, agora eles estão legalizando da forma que podem no Congresso Nacional. É uma covardia com toda a memória do ser humano dentro do Estado brasileiro", explica o cacique.

"Nós vamos voltar para a favela"

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Com informações do Brasil de Fato.

7 de junho de 2023

STF retoma nesta quarta julgamento do Marco Temporal

 

(FOTO | Reprodução).

O STF ignora pressão do Congresso, dobra aposta e mantém marco temporal de terras indígenas na pauta. Nesta quarta-feira, 07/06, o STF retoma o julgamento do século. A votação não deve ser concluída nesta semana, encurtada pelo feriado de Corpus-Christi.

Em Brasília, milhares de indígenas estão acampados na Praça da Cidadania onde irão acompanhar o julgamento no STF. A programação do acampamento foi dividida em três eixos, sendo eles: Por demarcação já, pelo futuro do planeta e pelo direito originário. Ontem foi realizado um ato de apoio ao Ministério dos Povos Indígenas e ao Ministério do Meio Ambiente, atacados pelo Congresso Nacional com a aprovação da MP 1554 que retira a competência das demarcações das terras indígenas do MPI, uma conquista do movimento indígena brasileiro.

Povos indígenas promovem mobilizações contra o marco temporal em todo o Brasil, convocadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e suas sete organizações regionais, com o tema “Pela justiça climática, pelo futuro do planeta, pelas vidas indígenas, pela democracia, pelo direito originário/ancestral, pelo fim do genocídio, pelo direito à vida, por demarcação já. Campanhas com artistas e ambientalistas também foram lançadas nas redes sociais, para tentar mobilizar a opinião pública.

O processo foi pautado em um momento em que o debate sobre o tema avança no Congresso. A Câmara dos Deputados aprovou, na semana passada, um projeto de lei para restringir as demarcações a territórios ocupados antes de 1988 – data da promulgação da Constituição. A proposta seguiu para o Senado.

Ao colocar a ação na pauta, a presidente do STF, Rosa Weber, contrariou a bancada ruralista e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), simpático ao projeto de lei. Deputados e senadores ligados ao agronegócio esperavam dissuadir a Corte de retomar o julgamento.

O Supremo dobrou a aposta e agora está com a bola na mão. O Estadão apurou que a pressão do Congresso não caiu bem entre uma ala do Tribunal, que identificou uma tentativa de encurralar os ministros. Quem acompanha o caso, não descarta que algum magistrado peça vista – mais tempo para análise do caso – e adie novamente a votação, o que na prática daria tempo para acalmar os ânimos entre os Poderes.

Se os ministros decidirem que a tese é inconstitucional, o projeto de lei será colocado em xeque. O PL trata de outros temas, que podem seguir tramitando, mas o trecho sobre o marco temporal precisará ser revisto, segundo especialistas.

Qualquer decisão legislativa incompatível com a eventual decisão do Supremo, especialmente por ser um projeto de lei, tende a não prosseguir e a não ter legitimidade“, explica o advogado Gabriel Sampaio, que acompanha o julgamento no STF como representante da ONG Conectas Direitos Humanos.

Com a mudança de governo e o alinhamento da gestão Luiz Inácio Lula da Silva com a defesa dos direitos indígenas, o tempo passou a correr a favor dos povos originários. O petista prometeu acelerar demarcações.

O advogado Eloy Terena, ex-coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), é uma das principais vozes no Judiciário contra a tese do marco temporal. Ele é hoje secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas, o que reforça a mudança de posicionamento em relação ao governo Jair Bolsonaro (PL). Na gestão do ex-presidente, a Advocacia-Geral da União (AGU) defendeu o marco temporal como uma garantia de “paz social”.

Julgamento

O julgamento do Marco Temporal está paralisado há quase dois anos e é apontado pela Apib como uma tese anti-indígena, pois a teste afirma que os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras se estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

O julgamento trata, no mérito, de uma ação possessória (Recurso Extraordinário n.º 1.017.365) envolvendo a Terra Indígena Xokleng Ibirama Laklaño, dos povos Xokleng, Kaingang e Guarani, e o estado de Santa Catarina. Com status de repercussão geral, a decisão tomada neste caso servirá de diretriz para todos os processos de demarcação de terras indígenas no país.

Em 2021, o julgamento foi suspenso após pedido de vista (mais tempo para analisar o caso) do ministro Alexandre de Moraes. A suspensão ocorreu após os votos do ministro Nunes Marques, favorável à tese anti-indígena, e do ministro relator, Luiz Edson Fachin, que votou contra ao marco temporal e favorável aos direitos indígenas.

Edson Fachin, foi taxativo em seu voto: NÃO EXISTE marco temporal para a demarcação de terras, e os direitos indígenas na Constituição são cláusula pétrea e não podem ser retrocedidos – nem por Emenda Constitucional e, muito menos, por um PL ordinário.

O marco temporal para nós é um retrocesso e uma negação dos nossos direitos. Todos os parentes, territórios, aldeias e cidades devem permanecer mobilizados nesse momento tão decisivo para os povos indígenas. A gente sempre fez a nossa luta. Tudo o que conquistamos até hoje foi a partir das mobilizações do movimento indígena e não será agora que vamos recuar. Vamos fazer a nossa voz ecoar em todos os cantos do Brasil e enterrar de vez a tese do marco temporal”, afirma Val Eloy, coordenadora executiva da Apib pelo Conselho Terena.

Não podemos permitir que o Brasil colônia volte a reinar sobre nossas cabeças, com a lei da bala e do fogo. O Brasil é um país democrático, onde cabem os biomas bem cuidados e a agricultura para o bem viver. E a demarcação de Terras Indígenas faz parte desse presente e desse futuro. Ou não haverá futuro para ninguém.”

Hoje, a partir das 14h, use a tag #MarcoTemporalNÃO

E vamos ecoar em uma só voz esse canto pela vida.

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Com informações do Instituto Búzios.


6 de junho de 2023

MEC institui critérios para definir se crianças estão ou não alfabetizadas; o que muda nas escolas?

 

O MEC criou um critério oficial para todos os estados brasileiros sobre o que uma criança de 7 anos precisa saber para ser considerada alfabetizada. (FOTO | Fabiane de Paula).

Estabelecer critérios que possam definir se uma criança está ou não alfabetizada, considerando a realidade dos 5,5 mil municípios brasileiros. Essa foi a tarefa que o Ministério da Educação (MEC) se propôs no início da nova gestão e, na semana passada, apresentou o resultado: traçou parâmetros, estruturados em uma escala de pontuação, que delimitam exatamente o que crianças com 7 anos de idade precisam atender no Brasil para serem consideradas alfabetizadas. Até então, o país não tinha esse tipo de referência.

No Brasil, na relação idade-série, a projeção é que crianças com 7 anos estejam no 2º ano do ensino fundamental, e as normativas educacionais preveem que nos dois primeiros anos dessa etapa, a ação pedagógica deve ter como foco a alfabetização. Porém, as avaliações, até então, não definiam especificamente o que é um estudante alfabetizado.

Agora, novos critérios foram traçados para delimitar se os estudantes desta etapa estão ou não alfabetizados. Esse referencial é proveniente da pesquisa “Alfabetiza Brasil”, realizada pelo MEC e pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) com 251 professoras alfabetizadoras em 206 municípios das cinco regiões brasileiras e com especialistas, entre abril e maio de 2023.

Dentre as habilidades necessárias para serem considerados alfabetizados, o MEC estabeleceu que os estudantes precisam:

Ler pequenos textos, formados por períodos curtos e localizar informações na superfície textual;

Produzir inferências básicas com base na articulação entre texto verbal e não verbal, como em tirinhas e histórias em quadrinhos;

Escrever, ainda que com desvios ortográficos, textos que circulam na vida cotidiana para fins de uma comunicação simples como: convidar ou lembrar algo, por exemplo.

Com isso, a partir de características que definem as habilidades básicas de leitura e de escrita, o MEC criou um critério oficial para todos os estados brasileiros sobre o que uma criança de 7 anos precisa saber para ser considerado alfabetizada.

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Com informações do Diário do Nordeste.

4 de junho de 2023

Crato: Sistema Municipal de Cultura e a luta pelos 2%

 

(FOTO | Reprodução | WhatsApp).


Por Alexandre Lucas, Colunista 

O principal marco legal da legislação municipal sobre políticas públicas para cultura no Crato é o Sistema Municipal de Cultura (SMC), o qual norteia os princípios de participação popular, planejamento da política pública e aponta a necessidade de recursos financeiros para a sua execução. O Sistema está amparado numa política de estado, estruturante e compactuada com os entes federativos ( Estado e União). O SMC foi criado em dezembro de 2014. Com menos de 10 anos, caminha a passos lentos, reflexo da conjuntura nacional, que sofreu um processo de desmonte e descontinuidade nos governos Temer e Bolsonaro, mas também pelo olhar distante que fez com que a cultura estivesse fora do orçamento, no sentido de promover a cidadania cultural, desenvolvimento territorial, requalificação e manutenção dos equipamentos culturais. 

A situação do Crato, no tocante a efetivação das políticas públicas para cultura, apresenta um cenário desanimador e desafiador. Quando se observa o conjunto dos equipamentos culturais do município detectamos a seguinte situação: os que não estão fechados, apresentam péssimas condições de funcionamento e na sua totalidade, todos necessitam de acessibilidade e requalificação. O que é um grande desafio, tendo em vista que alguns prédios se tratam de arquiteturas antigas e de valor histórico para a cidade, o que impõe mão de obra com especificações técnicas. Outro fato diz respeito à política de fomento que ainda não consegue atender aos segmentos da cultura e as linguagens artísticas, previstas no SMC. 

É neste contexto que se fortalece a luta pelos 2% do orçamento do município para cultura. Essa luta surge a partir de um contexto nacional, com a Proposta de Emenda Constitucional - PEC que ficou conhecida como PEC da Cultura – PEC 150, que previa a seguinte destinação: 2% da União, 1,5% para Estados e no mínimo 1% para os municípios. No contexto das eleições de 2012, os segmentos de cultura do Crato entregaram aos candidatos ao executivo municipal a “carta compromisso com a cultura" que dentre outras propostas estavam : Criação do Sistema Municipal de Cultura, criado em 2014, criação da Política Municipal do Cultura Viva, criada em 2021 e a defesa dos 2% do orçamento para a cultura. 

A luta pelos 2% do orçamento do município para cultura está intimamente vinculada à consolidação do Sistema Municipal de Cultura. Em março deste ano foi realizada a Conferência Municipal de Cultural que teve como missão aprovar as diretrizes para a elaboração do Plano Municipal de Cultura como prevê o SMC, a questão é, como será executado o plano? De imediato a resposta é simples: com dinheiro. Essa questão reafirma a posição de que não é possível promover políticas públicas sem recursos. 

A cultura tem caber no orçamento do município. De acordo com dados da própria prefeitura, nos últimos sete anos foram investidos menos de 1% do orçamento em cultura. Em 2022, foi investido cerca de 0,67%, sendo que aproximadamente 85% foi para folha de pagamento e encargos sociais, o restante foram destinados para outras despesas e a política de fomento. A situação demonstra a fragilidade financeira da gestão da cultura no Crato. 

A execução do Plano Municipal de Cultura tem uma dimensão significativa no caráter de transversalidade da cultura, impactando no desenvolvimento econômico, tendo em vista, que a cadeia da economia da cultura tem ramificações em várias áreas. Outro fator é o desenvolvimento e a integração territorial e social, o fortalecimento da hibridização, diversidade e pluralidade e peculiaridade cultural, estética, artística, que vai do campo  popular ao erudito. 

As condições favoráveis para execução do Plano Municipal de Cultura colocará o Crato dentro do circuito da promoção dos direitos humanos e da cidadania cultural, do intercâmbio das culturas e da ampliação da visão social do mundo. 

O Plano Municipal de Cultura precisa de recurso para ser executado. A garantia de recursos é o substrato para alimentar uma política de estado para cultura e conceber que nos diversos segmentos da cultura existem trabalhadoras e trabalhadores da construção do simbólico. O tempo do pires na mão deve ser enterrado, bem como o discurso de que não se tem dinheiro para cultura.

É hora de colocar a dimensão da transversalidade da cultura, mas para isso exige também, colocar a cultura na centralidade da política, inclusive como forma de contribuir para uma nova cultura política e de combate a concepção reacionária, conservadora, opressora e neoliberal que tenta reduzir o papel dos estado tocante a emancipação humana e na acessibilidade cultural. 

No Brasil, iremos executar duas leis que são frutos da mobilização popular, a Lei Paulo Gustavo, que tem caráter ainda emergencial e de proteção social e a Aldir Blanc II que tem um caráter mais estruturante e visa contribuir para consolidação do Sistema Nacional de Cultura nos próximos anos. Ambas devem ser percebidas como complementares aos recursos dos municípios e estados. O que nos impõe vigilância para que estados e municípios não reduzam os seus investimentos a partir dos recursos próprios. 

No Crato, não vai existir execução do Plano Municipal de Cultura sem ampliação de investimentos. Os 2% do orçamento do município para cultura é vital. Essa deve ser compreensão coletiva para unificar os diversos segmentos da cultura e a gestão municipal na defesa do direito à cidade.

70,3% da população de Nova Olinda-CE é negra, aponta estudo

 

População negra de Nova Olinda-CE é maioria. (FOTO | Arquivo do blog | Lucélia Muniz).

Por Nicolau Neto, editor

Entre 2012 e 2018, o número da população do Estado do Ceará que se declarou preta dobrou. A informação tem como base os dados publicados em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua 2018.

Nesse intervalo de tempo a população preta cearense teve um aumento de 82%, passando dos 253 mil para 480 mil. Em termos percentuais o Ceará conta hoje com 5,3% de pretos/as. Em 2012 o número era apenas de 2,9%.

Ainda de acordo com a pesquisa que é feita a partir da percepção de cor e raça do entrevistado e da entrevistada, o número de pardos no Ceará equivale a 65,7%, enquanto que as pessoas que se autodeclararam brancas atingiu 28,2%. Se somados pardos e pretos, o número de negros no Ceará atinge 71%.

No município de Nova Olinda, na região do cariri cearense, tendo como base o último censo realizado pelo IBGE em 2010, o número de negros/as representava 70,3%. As que se autodeclaravam brancas atingiu 27,2%, enquanto que as amarelas ficaram com 2,1%.

Tanto para o IBGE quanto para o Estatuto da Igualdade Racial, a população negra é definida pela soma de pretos e pardo. Quando considerado somente o número de pardos, o município atinge 64,7%. Em relação à população preta, esse número chega 5,6%; Aqueles/as que se autodeclaram indígena atingiram a casa dos 0,2%.

Em 2010, Nova Olinda possuía 14.256 habitantes. A estimativa, segundo o IBGE para 2021 é de 15.798 pessoas. Os dados preliminares do próprio órgão divulgados no ano passado cravou uma redução. O número chegou a 15.437 habitantes.

Ainda de acordo com o próprio IBGE (dados preliminares, 2022), 56,1% de toda a população brasileira é negra. Os dados revelam também que mesmo a população negra sendo maioria, ela é sub-representada. 

Maioria em população e minoria nos espaços de poder, tanto a nívl federal, quanto no Ceará e no município.

Referências

https://www.blognegronicolau.com.br/2021/01/populacao-negra-do-cariri-representa.html

https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ce/novaolinda/pesquisa/23/25888?tipo=ranking

O terreiro de nossa senhora do rosário e os batuques dos pretinhos de congo em milagres-ce

 

Mestre Doca Zacarias 1929 - 2023. (FOTO | Jaildo Oliveira, 2021).

Por César Pereira, Colunista

Em 2010 o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os seguintes resultados para a classificação cor/raça da população de Milagres:


Podemos então observar a predominância da população negra no município, pois pelo método do IBGE que classifica as pessoas de cor parda e preta como negros, teríamos em Milagres 20.318 pessoas negras residentes em 2010 o que equivaleria a 71,9% da população da cidade. Portanto no município que segundo o relatório dos presidentes da província do Ceará do século XIX foi o último a abolir o trabalho escravo a população negra sempre representou incrível maioria.

Contudo, a história da população negra de Milagres não está restrita somente ao problema da sua escravização no Vale do Riacho dos Porcos, a história negra Do município de Milagres é na verdade a história da própria cidade que a população negra construiu através do seu trabalho, das suas lutas, das suas estratégias de resistência, das suas identidades, memória social e cultura.

A história negra na cidade de Milagres começa ainda no século XVIII quando os primeiros colonizadores do vale solicitam sesmarias no Riacho dos Porcos e no documento em argumentam a favor da solicitação informam que possuem escravos, gado vacum e cavalar para ocupar e povoar as terras.

O suplicante, Bento Correa de Lima, alegou que havia requerido ao capitão-mor anterior duas datas de terra no Cariri e no riacho dos Porcos, sendo uma para seu colega, João Dantas Aranha (este sesmeiro possuía quatro sesmarias: CE 0089, CE 0125, CE 0294 e PE 0055; mas, não foi possível identificar qual delas corresponde a referida na CE 0903) e a outra para sua mulher e seus filhos. * Como João Dantas não havia povoado a sua parte, o suplicante comprou a data para si com uma escritura de venda e ocupou a terra, povoando também os sítios Pilar e Carueira com ajuda de dois homens brancos e de dois escravos da Guine, não constam seus nomes na carta CE 0903. Porém, a data ficou em posse do coronel João de Barros Braga (este sesmeiro possuía nove sesmarias: CE 0836, CE 0105, CE 0166, CE 0168, CE 0167, CE 0172, CE 0178, CE 0236 e CE 0825) e como não se achou o traslado da data no Livro de datas da capitania, o suplicante alegou que diziam que ele não havia comprado à data de João Dantas Aranha. Como Bento Correa de Lima já havia servido a Vossa Majestade e havia povoado a terra desde o ano de 1720, solicitou a data para obter o justo titulo de posse. (Grifos do autor, Plataforma S.I.L.B. Disponível em http://silb.cchla.ufrn.br/sesmaria/CE%200903).

Bento Correa Lima, João Dantas Aranha e José Correa de Lima eram todos eles sesmeiros do no Riacho dos Porcos e sertões da Paraíba eram moradores de Goiana em Pernambuco. Donos de engenho na Zona da Mata pernambucana e criadores de gado nos sertões, esses colonizadores serão os principais responsáveis pelo combate aos índios Kariris sublevados no sertão. Para ter as terras solicitadas concedidas pela autoridade colonial informam que as ditas áreas que requerem são devolutas, isto é, não pertencia a nenhuma aldeia indígena.

Juntos contrataram mercenários e atacaram os grupos indígenas até desocupar as terras por volta da década de 1720 e só em 1730 decidiram povoar definitivamente essas sesmarias. Além do argumento de terras devolutas informam que possuem escravos, no caso acima, dois escravos da Guiné, que não necessariamente significa que tais homens eram guinéus traficados, mas trabalhadores africanos escravizados que haviam sido embarcados para o Brasil através do porto da Guiné.

Mais uma vez demonstramos que o homem negro esteve desde o princípio ligado ao processo de povoamento, colonização e formação histórica e cultural do Vale do Riacho dos Porcos desde o princípio de sua ocupação pelos sesmeiros sob o mando das autoridades coloniais do século XVIII. A origem desses primeiros colonizadores brancos do Riacho dos Porcos não resta nenhuma dúvida que está na Vila de Goiana em Pernambuco:

O sesmeiro [Bento Correa Lima] recebeu dez concessões: Quatro no sertão das Piranhas, em 1679 (PB 1140), em 1700 (PB 0019), em 1706 (PB 0063) e em 1712 (PB 0099); e seis no riacho dos Porcos, em 1703 (CE 0125), em 1704 (CE 0083, CE 0085 e CE 0092), em 1708 (CE 0294) e em 1723 (CE 0903). * Nas cartas PB 1140, CE 0083, CE 0085 e CE 0903, não aparecem à ocupação do sesmeiro. * Nas cartas CE 0092, CE 0125, PB 0019, PB 0063 e PB 0099, a ocupação do sesmeiro aparece como capitão. * Nas cartas PB 1140, PB 0019, CE 0125 e CE 0903, não constam onde o sesmeiro morava. * Nas cartas CE 0083, CE 0085, CE 0092, CE 0294 e PB 0099, o sesmeiro consta como morador da capitania de Pernambuco (Goiana). * Na carta PB 0063, o sesmeiro consta como morador da capitania da Paraíba. (Plataforma S.I.L.B. Disponível em http://silb.cchla.ufrn.br/sesmaria/CE%200903).

Goiana era um dos principais centros produtores de açúcar da colônia, esteve sob o domínio holandês e a expulsão dos flamengos de suas terras deu-se pelo heroico episódio de Tejucopapo onde as mulheres goianenses lutaram para expulsar os invasores. Com o fim da dominação holandesa a Freguesia de Goiana recebeu uma leva de migrantes vindos das capitanias hereditárias do Nordeste e também de Portugal.

O trabalho nos engenhos de açúcar da colônia era realizado principalmente por trabalhadores escravizados que eram obrigados a realizar todo o serviço desde a plantação da cana, sua colheita, sua moagem e na maioria das vezes o cozimento do caldo da cana para a obtenção do açúcar. Quando os senhores de engenho de Pernambuco, Bahia, Sergipe, Alagoas, lugares que no período colonial estavam integrados sob a denominação de Capitanias Hereditárias, foram obrigados pelo decreto do rei de Portugal a retirar o gado das proximidades da região canavieira eles se voltaram então para a colonização do sertão.

Foi desse modo que os proprietários de gado e engenho de Goiana começaram a requerer terras nos sertões do Cariri paraibano e cearense. Dentre esses proprietários quem mais nos interessa aqui é Bento Correa Lima por ter sido o primeiro a pedir sesmarias no Riacho dos Porcos.

Bento Correa Lima solicitou terras tanto para si, quanto para sua esposa e também seu filho, todas elas no Vale do Riacho dos Porcos. Também pediu terras e as obteve na Paraíba e no Rio Grande do Norte. Sendo de Goiana em Pernambuco a família Correa Lima espalhou pelo Sertão do Cariri a devoção a Nossa Senhora dos Milagres, cuja igreja que hoje é patrimônio histórico na cidade de Goiana sem dúvida ajudou a construir na década de 1720.

Além da devoção a Nossa Senhora dos Milagres há em Goiana toda uma intensa devoção a Nossa Senhora do Rosário que é a padroeira da cidade. Desde o século XVI a igreja usou a devoção a Nossa Senhora do Rosário como meio de conversão dos africanos. Os padres usavam intensamente a imagem dessa representação da Virgem Maria para promover a conversão das pessoas negras tanto na África como no Brasil e uma das principais festividades negras os Reisados de Congos surgirão em torno das festas em homenagem a Nossa Senhora do Rosário e diretamente ligada a suas irmandades negras.

A primeira igreja construída para homenagear Nossa Senhora do Rosário dos Pretos foi a de Olinda – PE, onde se constituiu a mais antiga Irmandade dos Homens Pretos que se tem notícia no Brasil. Na cidade de Goiana, antiga Freguesia de Goiana que ficava na capitania de Itamaracá existe duas igrejas em honra de Nossa Senhora do Rosário. A igreja de Nossa Senhora do Rosário que é a matriz de Goiana e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e Pardos, ambas construídas no século XVIII, mas a última foi construída especificamente pela Irmandade dos Homens Pretos e era onde as pessoas pardas e pretas, mesmo livres ou escravizadas realizavam suas celebrações e era em frente dessa igreja que realizavam suas festas negras.

Sem dúvida a história colonial de Milagres está ligada aos latifundiários de Goiana e suas devoções, mas também está vinculada aos pretos de Goiana e suas devoções, pois como os colonizadores brancos os negros vieram ao Riacho dos Porcos também para colonizá-lo ainda que na condição de homens escravizados.

Além dessa relação devocional de Milagres com Goiana expressa na devoção que ambas as cidades têm a Nossa Senhora dos Milagres e Nossa Senhora do Rosário, devoção que remonta ao século XVIII quando em ambas as localidades foram construídas igrejas e capelas para essas representações da Virgem Maria, há outro elemento que faz a cultura e a história das duas cidades se cruzarem. Em Goiana existe um grupo de congos ligados à devoção a Nossa do Rosário e Milagres também existe um grupo de congos também ligado a fé em Nossa Senhora do Rosário. Em Goiana o grupo se chama Pretinhas do Congo e sua origem remonta ao período colonial e ao trabalho escravo nos engenhos, durante séculos a apresentação do grupo Pretinhas do Congo foi realizado durante as festividades de Nossa Senhora do Rosário e era uma das principais formas da Irmandade dos Homens Pretos celebrarem as festas em homenagem à santa.

Milagres possui um grupo de congo também ligado as festa de Nossa Senhora do Rosário e origem desse grupo remonta há mais de duzentos anos, exatamente quando os primeiros homens pretos foram trazidos para o Vale do Riacho dos Porcos. Os participantes dos Congos de Milagres se apresentam principalmente durante as novenas de Nossa Senhora do Rosário, no distrito do Rosário, antigo Podimirim, e fazem suas apresentações em frente da igreja de Nossa Senhora do Rosário ou no interior dela. Um dos cantos entoados pelos brincantes é este:

Pretinho de Congo

Para onde vai?

Pretinho de Congo

Para onde vai?

Eu vou pro Rusaro

Festejá Maria!

 

Outro canto que é bem interessante refletir é esta saudação que Mestre Doca Zacarias o nonagenário líder dos Congos de Milagres entoa:

Boa noite Senhora Santana

Cheguei de Goiana

Mais meu contramestre.

Sem dúvida a presença da palavra Goiana não é gratuita e remete as memórias ancestrais dos pretos e pardos que compõem o grupo de Congos de Milagres, ora já sabemos que os primeiros pretos que chegaram ao Vale do Riacho dos Porcos foram trazidos por proprietário de terras lá de Goiana. Sem dúvida Mestre Doca Zacarias é a continuidade dessa memória dos homens pretos que foram trazidos lá no século XVIII para colaborar com o homem branco na colonização das terras do Riacho dos Porcos.

Desse modo temos total convicção de que a população negra é a história do município de Milagres, que homens e mulheres negras construíram a história, a cultura e as identidades do Vale do Riacho dos Porcos e os Congos de Milagres são a ponte identitária que liga o presente da cidade ao seu passado colonial e a sua história de resistência e lutas da população negra no vale.

Os Congos de Milagres

O grupo de Congos de Milagres comandado desde a década de 1950 por Mestre Doca Zacarias é a maior e uma das mais importantes pontes que liga a população negra do município a sua ancestralidade africana.

A cidade de Milagres já possuiu num passado bem recente, várias manifestações da cultura popular. Banda cabaçal, grupo de penitentes, lapinha, renovações, vaquejada, artesanato em barro, tecido, grupo de caretas, mas atualmente toda essa vasta herança cultural encontra-se praticamente extinta no município. Delas restam apenas alguns resquícios que não chegam a representar um fator decisivo na composição das identidades das atuais gerações.

Mas graças ao empenho e comando exercido por Mestre Doca Zacarias que em 2019 completou noventa anos, os Congos de Milagres têm resistido e ainda se mantém vivo como um dos maiores patrimônios culturais e históricos da cidade de Milagres. O grupo de Congos de Milagres é um dos herdeiros dos reinados africanos como são todos os Reinados de Congo trazidos ao Brasil pela população da África que tendo sido traficada e escravizada no território da América Portuguesa e no Império do Brasil, mantiveram suas identidades e memória sociais preservadas através das festividades dos folguedos de congos e reisados que celebravam as embaixadas dos reis do Congo antes de sua destruição pelos invasores europeus nos século XVI e XVII.

Mestre Doca Zacarias se refere sempre ao seu grupo de brincantes como “os congo de Nossa Senhora do Rusaro”, mas reforça que “o nome certo são os pretinho de congo” (CORDEIRO, 2014). O que é muito importante, pois situa os Congos de Milagres sempre dentro da herança da cultura africana no Vale do Riacho dos Porcos, documentando a intensa presença do negro na região desde tempos remotos.

A origem dos folguedos de congos em Milagres sem dúvida remonta as últimas décadas do século XVIII e princípios do XIX, posto que só tenha sido devidamente mapeado juntamente com outras manifestações do gênero em fins do século XIX e começo do XX pelos pesquisadores ligados ao Instituto do Ceará. Os congos e reisados são semelhantes e são expressões da cultura popular ligadas principalmente a vida e ao cotidiano dos engenhos também fazendas de criar gado.

No século XIX a agricultura canavieira e a criação de gado foram as principais atividades econômicas do Vale do Riacho dos Porcos, já na segunda metade dos oitocentos, Milagres possuía os maiores rebanhos do Cariri e do Ceará. No final do século XIX e durante as quatro primeiras décadas do século XX foi um dos maiores produtores de rapadura do sul do Estado do Ceará, possuindo vastos canaviais.

Desde o censo de 1872 a população de Milagres foi sempre majoritariamente negra. Nos censos de 1892 e 1900 estima-se que a porcentagem de pessoas negras no município era de 78,6% no primeiro censo da república e dez anos depois já se elevava a 81,8%. Ainda em 1908 o recenseamento daquele ano permite estimar a população negra de Milagres em torno de 82% e no censo de 1920 estaria estimada em 79,5%.[1] Uma população predominantemente negra que não tinha acesso à educação, a saúde e que compunha a mão-de-obra barata que trabalhava nos canaviais, engenhos, fazendas de criação de gado e algodoais do Sertão do Cariri.

Convivendo com uma minoria branca, pessoas que descendiam dos antigos colonizadores do Vale do Riacho dos Porcos, mas que era minoria, pois a grande maioria de brancos que viviam no município de Milagres entre a segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX eram homens e mulheres pobres que como a população negra vivia de trabalhos mal remunerados e na condição de pobreza extrema como aquela. Mas é fato que a população negra do município mesmo sendo a maioria era aquela que mais sofria, pois contra ela havia todo um discurso depreciativo que era justificado pelas falas racistas que serão evocadas pela intelectualidade cearense em consonância com a brasileira nas primeiras décadas do século XX.

Na década de 1930 a fundação da Ação Integralista Brasileira e o fato de que vários intelectuais ligados ao Instituto do Ceará repercutir no estado os trabalhos de pesquisadores racistas como Oliveira Viana e Nina Rodrigues leva ao escritor e ativista da A.I. B (Seção do Ceará), Oswaldo Barroso, a celebrar um suposto embranquecimento da população cearense.

Sabemos que o grupo de homens de letras e pesquisadores ligados ao Instituto do Ceará já vinha sustentando desde o início do século XX a ideia de que no Ceará quase não houve escravidão e a população negra cearense era insignificante, pois como diziam eles, a maioria da população cearense era composta por caboclos e mestiços de índio com branco. Uma inverdade que ajudava a intelectualidade do Ceará a impor seu discurso racista contra uma sociedade onde predominavam negros e descendentes de pessoas que outrora compunham a população indígena do estado, mas que havia perdido suas terras e direito as suas identidades.

Em Milagres houve um grupo de integralistas bem ativos de 1933 a 1937. Eram homens e mulheres que pertenciam às famílias ricas do Vale do Riacho dos Porcos e que militavam no partido pró-fascistas criados por Plínio Salgado e que teve intensa atuação no Ceará e no Cariri enquanto existiu como partido legal. Racista, autoritário e extremamente conservador, o grupo que congregava-se em torno dos ideais da Ação Integralista Brasileira defendia a superioridade de alguns sobre muitos, afirmava que existia um líder superior que deveria impor seu comando sobre as massas inferiores. No Brasil os superiores eram os brancos descendentes de portugueses e os inferiores as pessoas pardas e pretas que compunham a grande maioria da população nacional.

Tal grupo ideológico existiu em Milagres e militou na política local com seu discurso racista. Sem dúvida a elite branca de todo o Brasil nunca demonstrou nenhuma satisfação em viver num país cuja população negra era e é maior fora do continente africano. Sempre houve um projeto de embranquecimento da população negra no Brasil e também outro projeto, o de extermínio dos negros em território nacional. Em Milagres não foi diferentes. A população negra desse município foi desde o século XIX, no período dos embates abolicionistas no Ceará e evidentemente no pós-abolição marginalizada e mal vista pelas elites locais.

Por ter uma das maiores populações negras do Ceará, Milagres é também uma das cidades mais pobres do estado, pois os piores índices de educação, trabalho, saúde, enfim, de IDH, estão então entre os brasileiros negros. Isso acontece porque o racismo estrutural transformou as vidas negras brasileiras nos principais alvos do descaso e da violência política, econômica e cultural em nosso país.

No censo de 1950 a população negra de Milagres é de 73,4%, e em 1991 era de 68% essa porcentagem foi de 70,6% No censo de 2000. Desse modo a história de Milagres é a história dessa população negra. Foram esses homens e mulheres negras que construíram a história do município, foram eles que produziram as riquezas do Vale do Riacho dos Porcos. Os negros não contribuíram para a história e a cultura de Milagres, a verdade é que eles são a história e acultura da cidade, a população negra construiu e continua construindo as identidades e a memória social da cidade de Milagres.

O grupo de congos comandados por Mestre Doca Zacarias é sem dúvida o elementos mais visível dessa identidade negra de Milagres. A história dos “pretinhos de congos” de Milagres é a história do município e do Vale do Riacho dos Porcos. Mestre Doca Zacarias é um príncipe africano herdeiro dos reis de congo lá da África e esse príncipe que assumiu o comando de sua embaixada na década de 1940, recebendo a sucessão das mãos do seu pai que a recebeu do pai outro príncipe africano que recebeu a embaixada também de seu pai e mestre viveram e labutaram nas terras e brejos do Riacho dos Porcos.

Mestre Doca Zacarias e seus Pretinhos de Congo desfilando nas ruas do Distrito do Rosário. (FOTO | Reprodução | Internet).

Os Congos de Milagres segundo a memória de Mestre Doca Zacarias em torno de duzentos anos de existência. É uma das tradições africanas mais significativas do Brasil, pois suas vivências remetem ao passado escravista e as lutas de resistência da população negra contra a escravidão no Vale do Riacho dos Porcos. Também é um testemunho importantíssimo para documentar todo o processo de lutas dos negros milagrenses para manter viva sua história e suas identidades no decurso do século XX, tão prolifico de práticas racistas.

Composto de homens e mulheres, trabalhadores da agricultura e pessoas vindas da camada social menos favorecida de Milagres, os congos tem toda uma hierarquia e figuras que compõem o reinado:

O grupo é formado por figuras que vêm dos folguedos populares. Em Milagres são eles: Rei, Rainha, Espantão, Mestre, Contramestre, Embaixadores e Figuras, cerca de vinte participantes. Além destes há os músicos que acompanham o cortejo (dois pífanos, uma zabumba, uma caixa de guerra, um violão) [...] Durante o cortejo e apresentação eles se organizam tendo a frente o Espantão, ao meio o rei e a rainha e duas fileiras de personagens denominadas Figuras sob o comando de dois embaixadores. As crianças maiores ficam no final das duas fileiras, imitando os passos e dos dançantes adultos. (NUNES, 2011, p.68).

Mestre Doca Zacarias leva seus “Pretinhos de Congo” para se apresentarem nas renovações, festas de santos da paróquia de Nossa Senhora dos Milagres, na procissão de Nossa Senhora dos Milagres e principalmente nas festividades de Nossa Senhora do Rosário no antigo Distrito de Podimirim. As apresentações são acompanhadas de cantos e passos de dança que entremeia as práticas devocionais do grupo.

As músicas convocam o grupo para a festa de Nossa Senhora do Rosário e têm na voz de Mestre Doca Zacarias seu principal comandante. Este começa o folguedo interrogando o grupo sobre o destino da embaixada:

Pretinho de Congo,

Para onde vai?

Vamo pro Rusaro

Para festeja.

Festeja, pretinho,

Com muita alegria!

Vamo pro Rusaro

Festejar Maria.

 

É uma música ancestral que evoca as memórias do povoamento do Vale do Riacho dos Porcos pelos colonizadores brancos e negros vindos da Freguesia de Goiana em Pernambuco. Seriam os “Pretinhos de Congos” de Milagres descendentes das “Pretinhas de Congo” da Zona da Mata Pernambucana?

A marcha “Boa noite Senhora Santana” evoca Goiana trazendo a memória dessa história colonial:

Mais uma prova de que toda a história de Milagres está indissociavelmente vinculada à cultura e a história dos homens e mulheres negras e ainda que o discurso da branquitude e o racismo queira encobrir e renegar toda essa história ela sempre emergirá como estrato dialético na construção das identidades e processos históricos da cidade. Mestre Doca Zacarias e seu reinado como príncipe africano no terreiro de Nossa Senhora do Rosário sempre prevalecerá como elemento estruturante da história da cultura de Milagres no século XX, como seus ancestrais o foram nas lutas pelo fim do trabalho escravo no Riacho dos Porcos também nos embates políticos e processos culturais do pós-abolição.

Mestre Doca Zacarias

Mestre Doca Zacarias aos 29 anos de idade já liderando os Pretinhos de Congos nas ruas de Milagres-CE (Foto gentilmente cedida pela senhora Iza Figueiredo). 

No dia 19 de novembro de 2019, Mestre Doca Zacarias completou noventa anos de idade e setenta e um anos de reinado sobre seus Pretinhos de Congo. Mestre Doca reinou sobre seus Congos desde 1949 e recebeu de seu pai o comando dos Congos de Milagres a mais antiga manifestação das Congadas Afro-brasileiras no Ceará e uma das mais antigas e bem preservadas do Brasil.

Herdeiro da ancestralidade africana, Mestre Doca Zacarias recebeu de seus antepassados negros (o pai, o avô, o bisavô), trabalhadores do Vale do Riacho dos Porcos que desde o século XVIII formaram a mão-de-obra que produziu a riqueza de Milagres ao longo do século XIX e XX. Milhares de homens e mulheres negras que foram escravizados no Ceará e no Cariri, mas nunca perderam suas identidades africanas e mantiveram suas tradições ancestrais que os colocava diretamente em contato com toda a sua matriz africana.

A genealogia dos Reis de Congo se perde na história e têm nesses homens, mestres da cultura popular os herdeiros legítimos de um reino ancestral que apesar de haver sido invadido e destruído pelo colonizador branco europeu nos séculos XVI e XVII permaneceu vivo nos inúmeros reinados e rituais de coroação que os príncipes africanos trouxeram na sua memória quando foram obrigados a se transplantar para o Brasil através do tráfico de seres humanos escravizados.

Mestre Doca Zacarias é um desses príncipes herdeiros dos Reinados de Congo, reina soberano sobre Milagres, cidade do Cariri cearense com 28.316 habitantes de acordo com o censo de 2010 dos quais 20.318 são pessoas negras, todos súditos do Rei Negro.

O dia 19 de novembro, véspera da data da morte de outro grande rei negro brasileiro Zumbi do Palmares (ou melhor, Nzambi em língua banta africana) que significa espírito imortal, a população de Milagres tem muito que refletir, pois tendo sido a cidade do Ceará que só emancipou seus escravizados no final de 1886 precisa reconhecer que sua história é a história dos homens e mulheres negras que em colaboração com o branco colonizou o vale ainda nas primeiras décadas do século XVIII, fundou com seu trabalho a Vila de Nossa Senhora dos Milagres em 1846 e garantiu com seu trabalho e suor nas plantações de cana-de-açúcar, algodão e fazendas de gado a prosperidade do município no decorrer de seus cento e setenta e quatro anos de existência.

Mestre Doca faleceu no dia 10 de janeiro de 2023, depois de reinar 75 anos sobre os seus Pretinhos de Congos. (FOTO |  Jaildo Oliveira, 2021).

REFERÊNCIAS

BARROSO, Oswaldo. Reis de Congos, IMEP, Fortaleza, 1999.

NUNES, Cícera. Reisado cearense: Uma proposta para o ensino das africanidades, Conhecimento Editora, Fortaleza, 2011.

SOUZA, Carlos. Milagres, nossa terra Cariri, Artes Gráficas e Editora, Fortaleza, 2021.

http://www.funai.gov.br/index.php

http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital

https://www.ufpe.br/progepe/documentos

http://www.silb.cchla.ufrn.br

https://www.arquidioceseolindarecife.org/arquivo.


[1] (Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/).

 


3 de junho de 2023

2023 será o 1º ano em que Altaneira terá o feriado da Consciência Negra em dia útil

 

Entrada de Altaneira-Ce. (FOTO | Prof. Nicolau Neto).

Por Nicolau Neto, editor

Em 17 de novembro de 2021 o Diário Oficial dos Municípios do Ceará fez circular a Lei nº 819, sancionada pelo prefeito de Altaneira, Dariomar Rodrigues (PT), que institui feriado em 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra.

Fruto do Plano Municipal de Combate ao Racismo e de Promoção da Equidade apresentado por este professor e fundador deste Blog, junto aos poderes executivo e legislativo no mês de maio do mesmo ano, o projeto lei que versa sobre foi apresentado pelo vereador e presidente da Câmara, Deza Soares (PT) e aprovado por unanimidade.

No primeiro ano de validade, não houve realização de atividades pelos setores públicos, visto que o dia 20 de novembro de 2021 foi em sábado. No ano seguinte foi em um domingo. Este ano, porém, será em uma segunda e a expectativa é que a lei seja cumprida com ações de reflexão e conscientização, inclusive, eventos culturais e outros relacionados ao fortalecimento e consolidação da edificação de uma sociedade mais justa e racialmente equitativa.

O texto representa um marco histórico na legislação municipal e corrobora para contribuir na reflexão e tomada de atitudes que reconheçam e valorizem a população negra que representa mais de 56% do Brasil como contribuidoras para a formação do país, mas principalmente como produtoras de saberes em todas as áreas e que isso seja discutido nas escolas.

A legislação já vigor é mais que oportuna também porque fará com as pessoas comecem a se perguntar o porquê do feriado.

Altaneira se torna o primeiro município do Ceará a ter uma legislação nesse sentido, além de ser ainda o primeiro a contar com um Plano Municipal de Combate ao Racismo e de Promoção da Equidade.