![]() |
Mestre Doca Zacarias 1929 - 2023. (FOTO | Jaildo Oliveira, 2021). |
Por César Pereira, Colunista
Em 2010 o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) divulgou os seguintes resultados para a classificação cor/raça da
população de Milagres:
Podemos então observar a predominância da população negra
no município, pois pelo método do IBGE que classifica as pessoas de cor parda e
preta como negros, teríamos em Milagres 20.318 pessoas negras residentes em
2010 o que equivaleria a 71,9% da população da cidade. Portanto no município
que segundo o relatório dos presidentes da província do Ceará do século XIX foi
o último a abolir o trabalho escravo a população negra sempre representou
incrível maioria.
Contudo, a história da população negra de Milagres não
está restrita somente ao problema da sua escravização no Vale do Riacho dos
Porcos, a história negra Do município de Milagres é na verdade a história da
própria cidade que a população negra construiu através do seu trabalho, das
suas lutas, das suas estratégias de resistência, das suas identidades, memória
social e cultura.
A história negra na cidade de Milagres começa ainda no
século XVIII quando os primeiros colonizadores do vale solicitam sesmarias no
Riacho dos Porcos e no documento em argumentam a favor da solicitação informam
que possuem escravos, gado vacum e cavalar para ocupar e povoar as terras.
O
suplicante, Bento Correa de Lima, alegou que havia requerido ao capitão-mor
anterior duas datas de terra no Cariri e no riacho dos Porcos, sendo uma para
seu colega, João Dantas Aranha (este sesmeiro possuía quatro sesmarias: CE
0089, CE 0125, CE 0294 e PE 0055; mas, não foi possível identificar qual delas
corresponde a referida na CE 0903) e a outra para sua mulher e seus filhos. * Como João Dantas não havia
povoado a sua parte, o suplicante comprou a data para si com uma escritura de
venda e ocupou a terra, povoando também os sítios Pilar e Carueira com ajuda de
dois homens brancos e de dois escravos da Guine, não constam seus nomes na
carta CE 0903. Porém, a data ficou em posse do coronel João de
Barros Braga (este sesmeiro possuía nove sesmarias: CE 0836, CE 0105, CE 0166,
CE 0168, CE 0167, CE 0172, CE 0178, CE 0236 e CE 0825) e como não se achou o
traslado da data no Livro de datas da capitania, o suplicante alegou que diziam
que ele não havia comprado à data de João Dantas Aranha. Como Bento Correa de
Lima já havia servido a Vossa Majestade e havia povoado a terra desde o ano de
1720, solicitou a data para obter o justo titulo de posse. (Grifos do autor, Plataforma
S.I.L.B. Disponível em http://silb.cchla.ufrn.br/sesmaria/CE%200903).
Bento Correa Lima, João Dantas Aranha e José Correa de
Lima eram todos eles sesmeiros do no Riacho dos Porcos e sertões da Paraíba
eram moradores de Goiana em Pernambuco. Donos de engenho na Zona da Mata
pernambucana e criadores de gado nos sertões, esses colonizadores serão os
principais responsáveis pelo combate aos índios Kariris sublevados no sertão.
Para ter as terras solicitadas concedidas pela autoridade colonial informam que
as ditas áreas que requerem são devolutas, isto é, não pertencia a nenhuma
aldeia indígena.
Juntos contrataram mercenários e atacaram os grupos
indígenas até desocupar as terras por volta da década de 1720 e só em 1730
decidiram povoar definitivamente essas sesmarias. Além do argumento de terras
devolutas informam que possuem escravos, no caso acima, dois escravos da Guiné,
que não necessariamente significa que tais homens eram guinéus traficados, mas
trabalhadores africanos escravizados que haviam sido embarcados para o Brasil
através do porto da Guiné.
Mais uma vez demonstramos que o homem negro esteve desde
o princípio ligado ao processo de povoamento, colonização e formação histórica
e cultural do Vale do Riacho dos Porcos desde o princípio de sua ocupação pelos
sesmeiros sob o mando das autoridades coloniais do século XVIII. A origem
desses primeiros colonizadores brancos do Riacho dos Porcos não resta nenhuma
dúvida que está na Vila de Goiana em Pernambuco:
O
sesmeiro [Bento Correa Lima] recebeu dez concessões: Quatro no sertão das
Piranhas, em 1679 (PB 1140), em 1700 (PB 0019), em 1706 (PB 0063) e em 1712 (PB
0099); e seis no riacho dos Porcos, em 1703 (CE 0125), em 1704 (CE 0083, CE
0085 e CE 0092), em 1708 (CE 0294) e em 1723 (CE 0903). * Nas cartas PB 1140,
CE 0083, CE 0085 e CE 0903, não aparecem à ocupação do sesmeiro. * Nas cartas
CE 0092, CE 0125, PB 0019, PB 0063 e PB 0099, a ocupação do sesmeiro aparece
como capitão. * Nas cartas PB 1140, PB 0019, CE 0125 e CE 0903, não constam
onde o sesmeiro morava. * Nas cartas CE 0083, CE 0085, CE 0092, CE 0294 e PB
0099, o sesmeiro consta como morador da capitania de Pernambuco (Goiana). *
Na carta PB 0063, o sesmeiro consta como morador da capitania da Paraíba.
(Plataforma S.I.L.B. Disponível em http://silb.cchla.ufrn.br/sesmaria/CE%200903).
Goiana era um dos principais centros produtores de açúcar
da colônia, esteve sob o domínio holandês e a expulsão dos flamengos de suas
terras deu-se pelo heroico episódio de Tejucopapo onde as mulheres goianenses
lutaram para expulsar os invasores. Com o fim da dominação holandesa a
Freguesia de Goiana recebeu uma leva de migrantes vindos das capitanias
hereditárias do Nordeste e também de Portugal.
O trabalho nos engenhos de açúcar da colônia era
realizado principalmente por trabalhadores escravizados que eram obrigados a
realizar todo o serviço desde a plantação da cana, sua colheita, sua moagem e
na maioria das vezes o cozimento do caldo da cana para a obtenção do açúcar.
Quando os senhores de engenho de Pernambuco, Bahia, Sergipe, Alagoas, lugares
que no período colonial estavam integrados sob a denominação de Capitanias
Hereditárias, foram obrigados pelo decreto do rei de Portugal a retirar o gado
das proximidades da região canavieira eles se voltaram então para a colonização
do sertão.
Foi desse modo que os proprietários de gado e engenho de
Goiana começaram a requerer terras nos sertões do Cariri paraibano e cearense.
Dentre esses proprietários quem mais nos interessa aqui é Bento Correa Lima por
ter sido o primeiro a pedir sesmarias no Riacho dos Porcos.
Bento Correa Lima solicitou terras tanto para si, quanto
para sua esposa e também seu filho, todas elas no Vale do Riacho dos Porcos.
Também pediu terras e as obteve na Paraíba e no Rio Grande do Norte. Sendo de
Goiana em Pernambuco a família Correa Lima espalhou pelo Sertão do Cariri a
devoção a Nossa Senhora dos Milagres, cuja igreja que hoje é patrimônio
histórico na cidade de Goiana sem dúvida ajudou a construir na década de 1720.
Além da devoção a Nossa Senhora dos Milagres há em Goiana
toda uma intensa devoção a Nossa Senhora do Rosário que é a padroeira da
cidade. Desde o século XVI a igreja usou a devoção a Nossa Senhora do Rosário
como meio de conversão dos africanos. Os padres usavam intensamente a imagem dessa
representação da Virgem Maria para promover a conversão das pessoas negras
tanto na África como no Brasil e uma das principais festividades negras os
Reisados de Congos surgirão em torno das festas em homenagem a Nossa Senhora do
Rosário e diretamente ligada a suas irmandades negras.
A primeira igreja construída para homenagear Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos foi a de Olinda – PE, onde se constituiu a mais
antiga Irmandade dos Homens Pretos que se tem notícia no Brasil. Na cidade de
Goiana, antiga Freguesia de Goiana que ficava na capitania de Itamaracá existe
duas igrejas em honra de Nossa Senhora do Rosário. A igreja de Nossa Senhora do
Rosário que é a matriz de Goiana e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos e Pardos, ambas construídas no século XVIII, mas a última foi
construída especificamente pela Irmandade dos Homens Pretos e era onde as
pessoas pardas e pretas, mesmo livres ou escravizadas realizavam suas
celebrações e era em frente dessa igreja que realizavam suas festas negras.
Sem dúvida a história colonial de Milagres está ligada
aos latifundiários de Goiana e suas devoções, mas também está vinculada aos
pretos de Goiana e suas devoções, pois como os colonizadores brancos os negros
vieram ao Riacho dos Porcos também para colonizá-lo ainda que na condição de
homens escravizados.
Além dessa relação devocional de Milagres com Goiana
expressa na devoção que ambas as cidades têm a Nossa Senhora dos Milagres e
Nossa Senhora do Rosário, devoção que remonta ao século XVIII quando em ambas
as localidades foram construídas igrejas e capelas para essas representações da
Virgem Maria, há outro elemento que faz a cultura e a história das duas cidades
se cruzarem. Em Goiana existe um grupo de congos ligados à devoção a Nossa do
Rosário e Milagres também existe um grupo de congos também ligado a fé em Nossa
Senhora do Rosário. Em Goiana o grupo se chama Pretinhas do Congo e sua origem
remonta ao período colonial e ao trabalho escravo nos engenhos, durante séculos
a apresentação do grupo Pretinhas do Congo foi realizado durante as festividades
de Nossa Senhora do Rosário e era uma das principais formas da Irmandade dos
Homens Pretos celebrarem as festas em homenagem à santa.
Milagres possui um grupo de congo também ligado as festa
de Nossa Senhora do Rosário e origem desse grupo remonta há mais de duzentos
anos, exatamente quando os primeiros homens pretos foram trazidos para o Vale
do Riacho dos Porcos. Os participantes dos Congos de Milagres se apresentam
principalmente durante as novenas de Nossa Senhora do Rosário, no distrito do
Rosário, antigo Podimirim, e fazem suas apresentações em frente da igreja de
Nossa Senhora do Rosário ou no interior dela. Um dos cantos entoados pelos
brincantes é este:
Pretinho
de Congo
Para
onde vai?
Pretinho
de Congo
Para
onde vai?
Eu
vou pro Rusaro
Festejá
Maria!
Outro canto que é bem interessante refletir é esta
saudação que Mestre Doca Zacarias o nonagenário líder dos Congos de Milagres
entoa:
Boa
noite Senhora Santana
Cheguei
de Goiana
Mais
meu contramestre.
Sem dúvida a presença da palavra Goiana não é gratuita e
remete as memórias ancestrais dos pretos e pardos que compõem o grupo de Congos
de Milagres, ora já sabemos que os primeiros pretos que chegaram ao Vale do
Riacho dos Porcos foram trazidos por proprietário de terras lá de Goiana. Sem
dúvida Mestre Doca Zacarias é a continuidade dessa memória dos homens pretos
que foram trazidos lá no século XVIII para colaborar com o homem branco na
colonização das terras do Riacho dos Porcos.
Desse modo temos total convicção de que a população negra
é a história do município de Milagres, que homens e mulheres negras construíram
a história, a cultura e as identidades do Vale do Riacho dos Porcos e os Congos
de Milagres são a ponte identitária que liga o presente da cidade ao seu
passado colonial e a sua história de resistência e lutas da população negra no
vale.
Os Congos de Milagres
O grupo de Congos de Milagres comandado desde a década de
1950 por Mestre Doca Zacarias é a maior e uma das mais importantes pontes que
liga a população negra do município a sua ancestralidade africana.
A cidade de Milagres já possuiu num passado bem recente,
várias manifestações da cultura popular. Banda cabaçal, grupo de penitentes,
lapinha, renovações, vaquejada, artesanato em barro, tecido, grupo de caretas,
mas atualmente toda essa vasta herança cultural encontra-se praticamente
extinta no município. Delas restam apenas alguns resquícios que não chegam a
representar um fator decisivo na composição das identidades das atuais
gerações.
Mas graças ao empenho e comando exercido por Mestre Doca
Zacarias que em 2019 completou noventa anos, os Congos de Milagres têm
resistido e ainda se mantém vivo como um dos maiores patrimônios culturais e
históricos da cidade de Milagres. O grupo de Congos de Milagres é um dos
herdeiros dos reinados africanos como são todos os Reinados de Congo trazidos
ao Brasil pela população da África que tendo sido traficada e escravizada no
território da América Portuguesa e no Império do Brasil, mantiveram suas
identidades e memória sociais preservadas através das festividades dos
folguedos de congos e reisados que celebravam as embaixadas dos reis do Congo
antes de sua destruição pelos invasores europeus nos século XVI e XVII.
Mestre Doca Zacarias se refere sempre ao seu grupo de
brincantes como “os congo de Nossa Senhora do Rusaro”, mas reforça que “o nome
certo são os pretinho de congo” (CORDEIRO, 2014). O que é muito importante,
pois situa os Congos de Milagres sempre dentro da herança da cultura africana
no Vale do Riacho dos Porcos, documentando a intensa presença do negro na
região desde tempos remotos.
A origem dos folguedos de congos em Milagres sem dúvida
remonta as últimas décadas do século XVIII e princípios do XIX, posto que só
tenha sido devidamente mapeado juntamente com outras manifestações do gênero em
fins do século XIX e começo do XX pelos pesquisadores ligados ao Instituto do
Ceará. Os congos e reisados são semelhantes e são expressões da cultura popular
ligadas principalmente a vida e ao cotidiano dos engenhos também fazendas de
criar gado.
No século XIX a agricultura canavieira e a criação de
gado foram as principais atividades econômicas do Vale do Riacho dos Porcos, já
na segunda metade dos oitocentos, Milagres possuía os maiores rebanhos do
Cariri e do Ceará. No final do século XIX e durante as quatro primeiras décadas
do século XX foi um dos maiores produtores de rapadura do sul do Estado do
Ceará, possuindo vastos canaviais.
Desde o censo de 1872 a população de Milagres foi sempre
majoritariamente negra. Nos censos de 1892 e 1900 estima-se que a porcentagem
de pessoas negras no município era de 78,6% no primeiro censo da república e
dez anos depois já se elevava a 81,8%. Ainda em 1908 o recenseamento daquele
ano permite estimar a população negra de Milagres em torno de 82% e no censo de
1920 estaria estimada em 79,5%.[1]
Uma população predominantemente negra que não tinha acesso à educação, a saúde
e que compunha a mão-de-obra barata que trabalhava nos canaviais, engenhos,
fazendas de criação de gado e algodoais do Sertão do Cariri.
Convivendo com uma minoria branca, pessoas que descendiam
dos antigos colonizadores do Vale do Riacho dos Porcos, mas que era minoria,
pois a grande maioria de brancos que viviam no município de Milagres entre a
segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX eram homens e
mulheres pobres que como a população negra vivia de trabalhos mal remunerados e
na condição de pobreza extrema como aquela. Mas é fato que a população negra do
município mesmo sendo a maioria era aquela que mais sofria, pois contra ela
havia todo um discurso depreciativo que era justificado pelas falas racistas
que serão evocadas pela intelectualidade cearense em consonância com a
brasileira nas primeiras décadas do século XX.
Na década de 1930 a fundação da Ação Integralista
Brasileira e o fato de que vários intelectuais ligados ao Instituto do Ceará
repercutir no estado os trabalhos de pesquisadores racistas como Oliveira Viana
e Nina Rodrigues leva ao escritor e ativista da A.I. B (Seção do Ceará),
Oswaldo Barroso, a celebrar um suposto embranquecimento da população cearense.
Sabemos que o grupo de homens de letras e pesquisadores
ligados ao Instituto do Ceará já vinha sustentando desde o início do século XX
a ideia de que no Ceará quase não houve escravidão e a população negra cearense
era insignificante, pois como diziam eles, a maioria da população cearense era
composta por caboclos e mestiços de índio com branco. Uma inverdade que ajudava
a intelectualidade do Ceará a impor seu discurso racista contra uma sociedade
onde predominavam negros e descendentes de pessoas que outrora compunham a
população indígena do estado, mas que havia perdido suas terras e direito as
suas identidades.
Em Milagres houve um grupo de integralistas bem ativos de
1933 a 1937. Eram homens e mulheres que pertenciam às famílias ricas do Vale do
Riacho dos Porcos e que militavam no partido pró-fascistas criados por Plínio
Salgado e que teve intensa atuação no Ceará e no Cariri enquanto existiu como
partido legal. Racista, autoritário e extremamente conservador, o grupo que
congregava-se em torno dos ideais da Ação Integralista Brasileira defendia a
superioridade de alguns sobre muitos, afirmava que existia um líder superior que
deveria impor seu comando sobre as massas inferiores. No Brasil os superiores
eram os brancos descendentes de portugueses e os inferiores as pessoas pardas e
pretas que compunham a grande maioria da população nacional.
Tal grupo ideológico existiu em Milagres e militou na
política local com seu discurso racista. Sem dúvida a elite branca de todo o
Brasil nunca demonstrou nenhuma satisfação em viver num país cuja população
negra era e é maior fora do continente africano. Sempre houve um projeto de
embranquecimento da população negra no Brasil e também outro projeto, o de
extermínio dos negros em território nacional. Em Milagres não foi diferentes. A
população negra desse município foi desde o século XIX, no período dos embates
abolicionistas no Ceará e evidentemente no pós-abolição marginalizada e mal
vista pelas elites locais.
Por ter uma das maiores populações negras do Ceará,
Milagres é também uma das cidades mais pobres do estado, pois os piores índices
de educação, trabalho, saúde, enfim, de IDH, estão então entre os brasileiros
negros. Isso acontece porque o racismo estrutural transformou as vidas negras
brasileiras nos principais alvos do descaso e da violência política, econômica
e cultural em nosso país.
No censo de 1950 a população negra de Milagres é de 73,4%,
e em 1991 era de 68% essa porcentagem foi de 70,6% No censo de 2000. Desse modo
a história de Milagres é a história dessa população negra. Foram esses homens e
mulheres negras que construíram a história do município, foram eles que produziram
as riquezas do Vale do Riacho dos Porcos. Os negros não contribuíram para a
história e a cultura de Milagres, a verdade é que eles são a história e
acultura da cidade, a população negra construiu e continua construindo as
identidades e a memória social da cidade de Milagres.
O grupo de congos comandados por Mestre Doca Zacarias é
sem dúvida o elementos mais visível dessa identidade negra de Milagres. A
história dos “pretinhos de congos” de Milagres é a história do município e do
Vale do Riacho dos Porcos. Mestre Doca Zacarias é um príncipe africano herdeiro
dos reis de congo lá da África e esse príncipe que assumiu o comando de sua
embaixada na década de 1940, recebendo a sucessão das mãos do seu pai que a
recebeu do pai outro príncipe africano que recebeu a embaixada também de seu
pai e mestre viveram e labutaram nas terras e brejos do Riacho dos Porcos.
![]() |
Mestre Doca Zacarias e seus Pretinhos de Congo desfilando nas ruas do Distrito do Rosário. (FOTO | Reprodução | Internet). |
Os Congos de Milagres segundo a memória de Mestre Doca
Zacarias em torno de duzentos anos de existência. É uma das tradições africanas
mais significativas do Brasil, pois suas vivências remetem ao passado
escravista e as lutas de resistência da população negra contra a escravidão no
Vale do Riacho dos Porcos. Também é um testemunho importantíssimo para
documentar todo o processo de lutas dos negros milagrenses para manter viva sua
história e suas identidades no decurso do século XX, tão prolifico de práticas
racistas.
Composto de homens e mulheres, trabalhadores da
agricultura e pessoas vindas da camada social menos favorecida de Milagres, os
congos tem toda uma hierarquia e figuras que compõem o reinado:
O grupo é formado por
figuras que vêm dos folguedos populares. Em Milagres são eles: Rei, Rainha,
Espantão, Mestre, Contramestre, Embaixadores e Figuras, cerca de vinte
participantes. Além destes há os músicos que acompanham o cortejo (dois
pífanos, uma zabumba, uma caixa de guerra, um violão) [...] Durante o cortejo e
apresentação eles se organizam tendo a frente o Espantão, ao meio o rei e a
rainha e duas fileiras de personagens denominadas Figuras sob o comando de dois
embaixadores. As crianças maiores ficam no final das duas fileiras, imitando os
passos e dos dançantes adultos. (NUNES, 2011, p.68).
Mestre Doca Zacarias leva seus “Pretinhos de Congo” para
se apresentarem nas renovações, festas de santos da paróquia de Nossa Senhora
dos Milagres, na procissão de Nossa Senhora dos Milagres e principalmente nas
festividades de Nossa Senhora do Rosário no antigo Distrito de Podimirim. As
apresentações são acompanhadas de cantos e passos de dança que entremeia as
práticas devocionais do grupo.
As músicas convocam o grupo para a festa de Nossa Senhora
do Rosário e têm na voz de Mestre Doca Zacarias seu principal comandante. Este
começa o folguedo interrogando o grupo sobre o destino da embaixada:
Pretinho
de Congo,
Para
onde vai?
Vamo
pro Rusaro
Para
festeja.
Festeja,
pretinho,
Com
muita alegria!
Vamo
pro Rusaro
Festejar
Maria.
É uma música ancestral que evoca as memórias do
povoamento do Vale do Riacho dos Porcos pelos colonizadores brancos e negros
vindos da Freguesia de Goiana em Pernambuco. Seriam os “Pretinhos de Congos” de
Milagres descendentes das “Pretinhas de Congo” da Zona da Mata Pernambucana?
A marcha “Boa noite Senhora Santana” evoca Goiana
trazendo a memória dessa história colonial:
Mais uma prova de que toda a história de Milagres está
indissociavelmente vinculada à cultura e a história dos homens e mulheres
negras e ainda que o discurso da branquitude e o racismo queira encobrir e
renegar toda essa história ela sempre emergirá como estrato dialético na
construção das identidades e processos históricos da cidade. Mestre Doca
Zacarias e seu reinado como príncipe africano no terreiro de Nossa Senhora do
Rosário sempre prevalecerá como elemento estruturante da história da cultura de
Milagres no século XX, como seus ancestrais o foram nas lutas pelo fim do
trabalho escravo no Riacho dos Porcos também nos embates políticos e processos
culturais do pós-abolição.
Mestre Doca Zacarias
![]() |
Mestre Doca Zacarias aos 29 anos de idade já liderando os Pretinhos de Congos nas ruas de Milagres-CE (Foto gentilmente cedida pela senhora Iza Figueiredo). |
No dia 19 de novembro de 2019, Mestre Doca Zacarias
completou noventa anos de idade e setenta e um anos de reinado sobre seus
Pretinhos de Congo. Mestre Doca reinou sobre seus Congos desde 1949 e recebeu
de seu pai o comando dos Congos de Milagres a mais antiga manifestação das
Congadas Afro-brasileiras no Ceará e uma das mais antigas e bem preservadas do
Brasil.
Herdeiro da ancestralidade africana, Mestre Doca
Zacarias recebeu de seus antepassados negros (o pai, o avô, o bisavô),
trabalhadores do Vale do Riacho dos Porcos que desde o século XVIII formaram a
mão-de-obra que produziu a riqueza de Milagres ao longo do século XIX e XX.
Milhares de homens e mulheres negras que foram escravizados no Ceará e no
Cariri, mas nunca perderam suas identidades africanas e mantiveram suas
tradições ancestrais que os colocava diretamente em contato com toda a sua
matriz africana.
A genealogia dos Reis de Congo se perde na história
e têm nesses homens, mestres da cultura popular os herdeiros legítimos de um
reino ancestral que apesar de haver sido invadido e destruído pelo colonizador
branco europeu nos séculos XVI e XVII permaneceu vivo nos inúmeros reinados e
rituais de coroação que os príncipes africanos trouxeram na sua memória quando
foram obrigados a se transplantar para o Brasil através do tráfico de seres
humanos escravizados.
Mestre
Doca Zacarias é um desses príncipes herdeiros dos Reinados de Congo, reina
soberano sobre Milagres, cidade do Cariri cearense com 28.316 habitantes de
acordo com o censo de 2010 dos quais 20.318 são pessoas negras, todos súditos
do Rei Negro.
O
dia 19 de novembro, véspera da data da morte de outro grande rei negro
brasileiro Zumbi do Palmares
(ou melhor, Nzambi em língua banta africana) que significa espírito imortal, a
população de Milagres tem muito que refletir, pois tendo sido a cidade do Ceará
que só emancipou seus escravizados no final de 1886 precisa reconhecer que sua
história é a história dos homens e mulheres negras que em colaboração com o
branco colonizou o vale ainda nas primeiras décadas do século XVIII, fundou com
seu trabalho a Vila de Nossa Senhora dos Milagres em 1846 e garantiu com seu
trabalho e suor nas plantações de cana-de-açúcar, algodão e fazendas de gado a
prosperidade do município no decorrer de seus cento e setenta e quatro anos de
existência.
![]() |
Mestre Doca faleceu no dia 10 de janeiro de 2023, depois de reinar 75 anos sobre os seus Pretinhos de Congos. (FOTO | Jaildo Oliveira, 2021). |
REFERÊNCIAS
BARROSO,
Oswaldo. Reis de Congos, IMEP, Fortaleza, 1999.
NUNES,
Cícera. Reisado cearense: Uma proposta para o ensino das africanidades,
Conhecimento Editora, Fortaleza, 2011.
SOUZA,
Carlos. Milagres, nossa terra Cariri, Artes Gráficas e Editora,
Fortaleza, 2021.
http://www.funai.gov.br/index.php
http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital
https://www.ufpe.br/progepe/documentos
https://www.arquidioceseolindarecife.org/arquivo.
[1]
(Disponível
em https://biblioteca.ibge.gov.br/).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!