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Corpo do jornalista Vladimir Herzog pendurado em cela do Exército. Ele foi morte pela ditadura, que tentou forjar um suicídio em 1975. (Foto: Reprodução/ Blog do Sakamoto). |
O
Brasil lida com o seu passado como se tivesse feito as pazes com o presente.
Não, não fez. E o impacto de não resolvermos o que aconteceu durante a última
ditadura militar (1964-1985) se faz sentir no dia a dia das periferias das
grandes cidades e na porção profunda do interior, com parte do Estado e de seus
agentes aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente
mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). Sejam eles
agentes em serviço ou fora dele, na forma de milícias urbanas e rurais.
Em
nome de uma suposta estabilidade institucional, o passado não resolvido e
anistiado permanece como fantasma. Não são apenas as famílias dos mortos e
desaparecidos políticos que vivem assombrados pelas verdades não contadas e os crimes
não admitidos daquela época. Diariamente, os mais pobres sofrem nas mãos de uma
banda podre da polícia que adota métodos refinados na ditadura a fim de
garantir a ordem (nas periferias das grandes cidades) e o progresso (na região
rural).
Um
documento secreto liberado pelo Departamento de Estados norte-americano mostrou
que o general Ernesto Geisel aprovou a manutenção de uma política de execuções
sumárias de adversários em 1974. O ditador brasileiro, que governou entre
aquele ano e 1979, teria orientado João Baptista Figueiredo – então chefe do
Serviço Nacional de Informações e que seria seu sucessor – a seguir com os assassinatos
que começaram no governo do general Médici. Ou seja, a autorização vinha da
cúpula do governo.
Quem
percebeu a importância do documento, no qual o governo reconhece executar
dissidentes, e o postou nas redes sociais foi Matias Spektor, colunista da
Folha, e professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. O
memorando é assinado pelo diretor da CIA na época, William Colby, e relata uma
reunião com Geisel. É citada a execução sumária de, pelo menos, 104 pessoas.
Contar
histórias como a desse documento é fundamental. Os assassinatos sob
responsabilidade da ditadura devem ser conhecidos e discutidos nas escolas até
entrar nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que
nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas
custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente. E, portanto, sua
construção – até agora incompleta e imperfeita – deve ser um esforço coletivo.
Mesmo enfrentando ações como o do ''Escola Sem Partido'', que tem como
consequência equacionar a barbárie com a civilização.
O
problema é que, diante da realidade ultrapolarizada do debate público no
Brasil, isso parece ser uma tarefa inútil. Pois não adianta mostrar informações
como essa para uma parcela da sociedade que defende o retorno da ditadura
militar não pelo desconhecimento dos métodos utilizados, mas, pelo contrário,
por saudade deles.
Mesmo
que não tenha nascido muito após aqueles acontecimentos. Em sites e redes de
ultraconservadores, o memorando foi celebrado como um exemplo de algo que deve
ser copiado para o futuro e de competência da ditadura em proteger o país.
Assim, sem pudor algum.
Essa
parcela tem apoiado a candidatura do deputado federal Jair Bolsonaro para a
Presidência da República, sonhando que ele traga os ''bons tempos de volta'',
botando ordem e acabando com a roubalheira. Ignoram, dessa forma, a farta documentação
que mostra a corrupção em estatais e em obras públicas, nos anos militares, ou
mesmo o comportamento promíscuo entre empresas privadas e a ditadura.
Vale
lembrar que Bolsonaro foi ovacionado nas redes sociais por conta do conteúdo de
seu voto pelo impeachment, em abril de 2016, por uma legião de pessoas que
cabulava aula de história ou pouco se importa com a dignidade alheia. Após
parabenizar o hoje presidiário Eduardo Cunha, homenageou o açougueiro e
torturador Carlos Brilhante Ustra – falecido coronel e ex-chefe do DOI-Codi.
Certamente
o finado comandante de um dos principais centros de repressão da ditadura não é
incensado por seus belos olhos ou pela forma pela qual fazia um guizado de
frango ou jogava tranca. Mas por usar a morte como instrumento de controle
estatal. Ustra chegou a ser declarado pela Justiça como responsável por casos
de tortura e também condenado a pagar indenização por conta da morte do jornalista
Luiz Eduardo Merlino.
O
conhecimento de História não é um dádiva, mas sim uma maldição. Porque você se
torna responsável por dialogar com quem a ignora, por mais impossível que isso
pareça ser. Um diálogo que deve ser paciente e não-violento, na esperança de
que entendam que a dignidade humana, construção de milhares de anos dessa
História, é uma conquista que deve ser defendida a todo o custo.
As
Forças Armadas de hoje não são as mesmas do período da última ditadura, da
mesma forma que os contextos nacional e internacional são outros. Seus líderes
têm, repetidas vezes, confirmado que o comando é e será civil. E o respeito às
liberdades individuais e às instituições continuará. De vez em quando, contudo,
as declarações estapafúrdias de generais da ativa, mais do que os oficiais de pijama,
colocam a pulga atrás da orelha sobre a sinceridade dessa estabilidade.
Os
responsáveis pela parte mais sombria da ditadura, seus aliados e seguidores
precisam saber que a sua versão da História – de que duas décadas de assassinatos,
censura e violência foram necessárias para o bem da coletividade – não vai
vingar. Pois não agiram pelo bem do Brasil. Mataram, roubaram e calaram para o
bem de si mesmos. (Por Leonardo Sakamoto,
em seu Blog).