A
professora de história Maria Firmino, 42, foi afastada da sala de aula na
Escola de Educação Infantil e Fundamental Tarcila Cruz de Alencar, em Juazeiro
do Norte, no Ceará, após ter dado aula sobre "patrimônio material, imaterial e natural de matriz africana",
em 20 de abril.
A
Secretaria da Educação de Juazeiro do Norte informou, por meio de nota, que não
foi procurada pela docente e que a profissional continua no exercício das suas
funções. Já a professora e funcionários da escola afirmam que ela está fora da
sala de aula desde abril.
Maria
registrou um boletim de ocorrência sobre crime contra o sentimento religioso na
Delegacia Regional de Juazeiro do Norte. A delegacia da cidade apura o caso.
Durante
a aula, três alunos alegaram terem sentido mal-estar com o conteúdo da aula.
Conforme Maria, o episódio foi uma "trama"
feita por outros servidores da escola por não aceitarem uma professora de
religião africana na unidade.
"Com certeza absoluta foi tudo organizado dentro da escola porque não queriam uma professora que fosse ligada a uma religião de matriz africana lá dentro. É racismo religioso", afirma.
"Fiquei assustada, chocada e de coração
partido de ter visto aquilo, alunos fazerem parte do que parecia uma trama",
completa Maria.
Segundo
a professora, os alunos deixaram a sala dizendo sentir mal-estar e forte dor de
cabeça. Nenhum atendimento médico foi solicitado pela escola, segundo a
professora. O caso gerou uma manifestação dos pais dos estudantes.
"Quando eu ia saindo na calçada comecei a
ouvir gritos de 'sai satanás', 'vou pegar essa feiticeira', 'ninguém pode mais
do que Deus'. Só via gente descendo de carro, gente olhando, populares vindo",
conta a professora.
Maria
afirma que não recebeu apoio da direção ou de funcionários durante o ocorrido.
Com
o ocorrido, o advogado da professora foi avisado de que a instituição pretendia
transferi-la para o setor burocrático. "Eles estão colocando que eu não
tenho mais condição de estar em sala de aula, isso é uma forma de punição. Eu
posso até ir [para o setor burocrático], desde que a minha função seja fazer
com que as escolas coloquem em prática a Lei de Diretrizes e Bases, que diz que
a educação tem obrigatoriedade de ensinar a cultura africana", ressalta
Maria.
Repercussão
O
advogado e presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB de Juazeiro do
Norte, Rafael Uchôa, acompanhou a educadora até a delegacia regional para
registrar o fato. Ele confirma que o caso ganhou repercussão na cidade.
Ao
G1, a Secretaria da Educação de Juazeiro alegou não ter tomado conhecimento do
ocorrido até o contato da reportagem. No entanto, no boletim de ocorrência
registrado pela professora, ela afirma que a secretária da Educação de Juazeiro
do Norte, Maria Loreto, compareceu à escola para reunião com o colegiado.
A
agente administrativa da escola, Adriana Ricarter, estava no local no dia do
ocorrido e foi quem deu assistência às estudantes. Pelo relato dela, a diretora
não estava na instituição quando tudo ocorreu, mas um outro responsável,
identificado como Cícero, chegou ao local momentos depois. Segundo Adriana,
Cícero repassou os fatos à Secretaria da Educação.
Também
de acordo com a agente, na segunda-feira seguinte ao caso, um professor
substituto foi enviado pela secretaria passou a dar aulas na escola.
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Boletim de ocorrência referente a crime contra o sentimento religioso por professora na Delegacia Regional de Juazeiro do Norte. (Foto: Maria Firmino/ Arquivo Pessoal). |
Cultura afro-brasileira
Lembrando
a lei federal 11.645, sancionada em 2008, que torna obrigatório o estudo da
história e cultura afro-brasileira e indígena em escolas de ensino fundamental
e médio, públicas e privadas, Maria faz críticas à escola por não cumprir as
diretrizes.
"Na aula anterior eu trabalhei a cultura
indígena e marquei pra trabalhar as heranças de matriz africana naquele dia. Eu
trabalho dentro da lei 11645/08, porém, as escolas não. Aí quando chega no Dia
do Índio e da Consciência Negra fazem três desenhos e pregam na parede."
"Nem professor, nem diretor, nem gestor quer saber da História do negro e do índio, não quer trabalhar a diversidade”, reclama.
Maria
segue a religião africana candomblé de Angola e tem 20 anos de magistério.
"Não tenho necessidade de converter ninguém à minha religião. Religião nao é de conversão, muito menos de convencimento."
Ela
conta que há quatro anos trabalhou na escola Tarcila Cruz de Alencar e pediu
transferência após outros professores levantarem um abaixo-assinado contra a
permanência dela na instituição. O retorno à escola se deu pela localização
mais favorável. A professora mora em Missão Velha, a cerca de 30 km de Juazeiro
do Norte.
"Tive uma 'vibração de santo' dentro da sala
de professores. Eles me mandaram procurar um psiquiatra, disseram que eu não
tinha capacidade de trabalhar, chamaram o colegiado e assinaram abaixo-assinado
pra eu sair de lá", relata.
Segundo
ela, a vibração de santo consiste em receber uma energia que causa
estremecimento no corpo e deixa a pessoa sem fala, sem consciência de si e do
lugar por um determinado tempo. A docente diz também ter explicado previamente
aos colegas de trabalho que poderia passar por isso, já que sentia mal-estar
naquele dia.
Antes
dos dois episódios na escola de Juazeiro, Maria nunca havia passado por
situações semelhantes, mas afirma estar acostumada a lidar com o
"preconceito velado", já que costuma usar adereços que identificam
sua ligação com a religião africana, como colares de conta. "Venho sentindo a rejeição nas escolas por
onde passo, as piadinhas, o isolamento..."
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Texto
publicado originalmente no G1 Ceará com o título “Professora é substituída após dar
aula sobre religião africana em escola no Ceará”.