Qualquer
discussão sobre formação docente no Brasil que não passe pelo nome de
Bernardete Angelina Gatti sairá, de cara, empobrecida pela ausência do olhar –
e de tantas pesquisas e interlocuções – de uma das intelectuais mais ativas do
país neste tema nas últimas décadas. Pode-se até discordar dela, mas não
prescindir de seus pontos de vista.
Atual
diretora vice-presidente da Fundação Carlos Chagas, onde orienta o setor de
pesquisas, e membro do Conselho Estadual de Educação (São Paulo), esta
professora graduada em pedagogia pela Universidade de São Paulo e doutora em
psicologia pela Universidade Paris 7, sob orientação de Paul Arbousse-Bastide,
um dos docentes franceses que ajudaram a fundar a USP, Bernardete é categórica
em suas afirmações.
Publicado
originalmente no Cenpec
Acredita,
sobretudo, no trabalho coletivo das escolas e nas ações integradas entre estas
e as universidades, desde que haja disposição mútua para interlocução. E que as
inovações verdadeiramente significativas vêm e virão dessas interlocuções.
Para saber qual formação de
professores queremos, não deveríamos antes saber para que educar e qual
educação queremos?
Não
tenho dúvida disso. Sem uma ideia projetiva da educação básica, discutir a
formação de professores fica em cima de pressupostos, ou de alguns
conhecimentos objetivos da formação dada atualmente, e daquilo que vem sendo
colocado, de modo desarticulado, por vários segmentos da sociedade. Não
reconhecemos e nem sempre percebemos como se manifestam os múltiplos olhares e
discursos sobre a formação de professores e as demandas da escola. Em geral,
ficamos nas grandes dicotomias, mas hoje a sociedade é muito mais heterogênea.
Há variadas formas de requisitos para a educação e segmentos sociais que pensam
de modo muito divergente.
Poderia dar exemplos?
Há
segmentos que acham que a formação acadêmica, na educação básica, deveria
centrar-se em dar ao aluno o necessário para trabalhar com conhecimentos
científicos, matemáticos, com as questões da vida, da biologia. Defendem uma
formação genérica, o que não quer dizer leve. Lembrando, em relação à discussão
do currículo, que já tivemos em nossa história, nos anos 80, uma formação mais
genérica, com um núcleo duro de disciplinas, mas com flexibilidade para
preencher parte desse currículo com questões locais e regionais. Não foi
adiante, pois a discussão não se resolveu. Há outros segmentos que defendem que
a educação básica deveria ser eminentemente pragmática, ou seja, dar apenas
aqueles instrumentos para a vida cotidiana, basicamente língua portuguesa e
matemática útil – que trabalhe com aplicações, não a matemática acadêmica ou
para formar o pensamento, a lógica. E outros que demandam uma revolução na
formação, iniciando-se até mesmo na pré-escola, trazendo os dilemas de ponta do
conhecimento para formação tanto de crianças como de jovens e adolescentes. E
há outras. Por enquanto, o que está mais em pauta é a ideia de dar uma formação
mais genérica, básica, culminando com uma formação mais literária e científica
no ensino médio. Tem também outra posição, que propugna que haja um currículo
diversificado a partir do ensino fundamental 2. Ou seja, os alunos que têm
preferência por formação humanista teriam um currículo diversificado, diferente
daqueles que mostram interesse por uma formação mais das ciências exatas, ou de
tecnologias. Muitos acham que essa flexibilização deveria começar no 8º ou 9º
anos, porque aí o adolescente já começa a manifestar suas motivações e
preferências cognitivas.
Qual o melhor caminho?
Nem
tanto ao mar, nem tanto à terra. Pensei que, com a discussão da Base Nacional
Comum, fôssemos chegar a um ponto de consenso, mas essas questões dos
diferenciais não foram levantadas. Estamos sempre trabalhando em cima de um
modelo já culturalmente incorporado às representações de certas lideranças, e
não conseguimos sair disso para ver o conjunto de demandas e concepções
presentes para achar um caminho intermediário. As discussões se polarizaram
demais.
A Base chega meio atropelada?
Chega
sem trazer um pensamento renovador. Precisaríamos pensar a estrutura curricular
da educação básica de maneira mais criativa, nos liberando um pouco desses
arcanos que existem na cultura desde o século 19. A proposta da educação
infantil me parece que supera algumas concepções arraigadas sobre o trabalho
com a criança. Mas não vejo isso nos outros segmentos, em que ficamos numa
discussão de conteúdos disciplinares específicos. Esse pode ser um ponto de
partida, mas não de chegada. Para avançar, seria preciso que grupos
diferenciados entrem em um debate mais ampliado, vendo os modelos que daí
surgiriam, e trabalhando sobre eles.
Como vê a formação oferecida pelas
universidades públicas para a docência?
De
modo geral, nem as públicas nem as privadas estão realmente formando
professores. A crítica às universidades públicas é que elas não faziam uma
associação adequada entre as teorizações e as práticas, que é um movimento de
interdisciplinaridade, difícil, inclusive para os professores doutores que
estão nessas universidades, pois a formação deles é disciplinar, e não
interdisciplinar. Como de certa maneira abandonamos os estudos de didática e
das práticas de ensino com teorizações adequadas e fortes, eles também não têm
onde se apoiar. No Brasil, deixamos de lado essas questões, confundindo
didáticas e práticas de ensino com tecnicismo, confusão que estamos começando a
desfazer. Não tenho dúvida de que as universidades públicas formam um corpo
discente um pouco melhor, pois já trabalham com um grupo selecionado,
estudantes que vêm para a universidade com vontade de estudar. E têm um currículo
acadêmico bem mais forte. Então, saem com uma formação acadêmica melhor, mas
não com uma formação para ser professor.
Como vê as licenciaturas com modelo
de formação interdisciplinar, tal como a Faculdade do Sesi/SP está propondo?
Não há o risco de faltar a base disciplinar?
A
ideia, nesse caso, é partir do problema complexo que emergirá da associação dos
conteúdos das disciplinas com os conteúdos da pedagogia, para recuperar o que é
da disciplina. É um caminho inverso. Dou um exemplo na formação da medicina.
Muitas faculdades hoje têm a base propedêutica que tínhamos e temos em muitos
cursos. Ou seja, você tem anatomia, fisiologia, todas essas disciplinas de
base, mas que agora já partem para analisar situações-problema. Com esses
estudos de caso, o aluno tem de recorrer ao conhecimento disciplinar, mas já
com uma visão interdisciplinar. E funciona. A Universidade Harvard, por
exemplo, está com uma proposta nessa linha, mas não é a única, pois antes
Oxford, na Inglaterra, e outras já fizeram isso. Aqui mesmo já tivemos
experiências em Marília e outros lugares com esse tipo de formação. Isso exige
que os professores formadores já tenham feito seu caminho disciplinar e
interdisciplinar. E não de uma área, mas de duas ou três. Se você vai lecionar
história da educação, tem de ter conhecimento da historiografia, da
antropologia, da sociologia e trazer essa visão interdisciplinar para a
história da educação. Se não, fica ali no fato histórico. Os grandes
historiadores dão um salto, porque têm uma cultura interdisciplinar ampliada.
Ao professor se poderia dar essa cultura interdisciplinar ampliada. Poderíamos
ter cursos que formam a partir de situações-problema. Quando a resolução no 2
de 2015 do Conselho Nacional de Educação propõe que o aluno comece o estágio
logo no primeiro ano, não é para ele dar aula, e sim para que possa ver a
escola e problematizar a sua realidade, saber o que é ser um profissional
professor, de forma concreta. Com isso, pode-se construir um currículo bem
diferenciado.
Temos exemplos?
Vi
alguns currículos muito interessantes aqui no Estado de São Paulo, houve
renovações muito grandes em áreas disciplinares aqui na USP como, por exemplo,
filosofia, matemática, física, até na ECA (Escola de Comunicações e Artes),
propostas para formar professores de modo diferente. Mas ainda são casos
isolados. Na Unicamp, tem um belíssimo programa de licenciatura de física e
química, bem feito, bem pensado. Você pode pensar em formações polivantes de
diferentes naturezas. A proposta do Sesi caminha nessa direção, mas o projeto
ainda não nos dá a ideia do que vai ser o currículo concreto, pois ainda é um
projeto em construção.
E na América Latina?
Vi
uma abordagem interessante em Buenos Aires. Há um horário das disciplinas-base
– antropologia, história da educação, sociologia – só que tem um momento
disciplinar, com muitas horas, em que esses professores trabalham com os alunos
na observação de escolas e comunidades. Os alunos trazem suas observações e os
professores fazem interpretações à luz da sua disciplina sobre aquela situação.
E formam um consenso multidisciplinar complexo sobre ela. Os alunos vão
aprendendo a olhar as realidades escolares, usando conhecimentos disciplinares,
mas com um olhar integrado. Só que isso exige do professor uma dedicação muito
grande, pois tem de trabalhar com os outros. E isso é feito nos quatro eixos de
formação para o professor. Nas universidades públicas, não seria difícil termos
projetos inovadores, pois muitos docentes são contratados em regime de
dedicação exclusiva; poderia haver uma presença maior, mais integrada, nas
atividades de ensino. Já nas particulares, isso é bem mais difícil, pois veriam
isso como custo. Mas não é impossível.
E a proposta do conselheiro do CNE
César Callegari de fazer com que todas as faculdades de pedagogia, públicas ou
privadas, tenham uma escola, de sua propriedade ou associada?
Não
acredito nisso. Essa escola vai ser tão diferente da rede que não servirá de
inserção real do professor. Já vivemos isso, com os colégios de aplicação.
Defendo que uma faculdade ou universidades que têm licenciaturas deveriam ter
convênio com um conjunto de escolas em várias partes do estado ou da cidade, de
tal maneira que seus alunos possam percorrer realidades diferentes. É muito
diferente estar numa escola pública, mesmo que atenda uma população mais ou
menos da mesma natureza, no centro de São Paulo ou em Itaquera. Há culturas
diferenciadas de quem está aqui e de quem está lá, inclusive das famílias.
Prefiro convênios com as redes públicas que organizassem o estágio e em que se
pudesse atuar nas escolas com um projeto compartilhado com elas. No caso dos
colégios de aplicação, às vezes a faculdade manda no colégio, aí ele se torna
uma exceção da exceção da exceção, começa a selecionar os alunos.
Como definir um currículo nacional de
formação docente?
A
resolução no 2 de 2015 dispõe sobre isso, está lá a Base Nacional Comum de
Formação de Professores. Não está definido nos detalhes, mas estão definidos os
conhecimentos importantes que um professor deve ter. Pela legislação, é de
alçada do CNE definir as diretrizes nacionais de educação, elas são
mandatórias. Todos os estados, municípios, instituições públicas e privadas têm
de se alinhar. E aí está a inteligência que vejo nas novas diretrizes, embora
sejam um pouco cheias de detalhes argumentativos, mas na essência trazem a
possibilidade de ser criativo e, ao mesmo tempo, ter uma diretriz clara. Isso é
uma qualidade da resolução. Tomara que as instituições tenham competência e
vontade política para mudar a formação de professores. O CNE lançou as bases,
todas as instituições terão de começar a adaptação a partir do 2o semestre de
2017. Sei que há mobilizações, pois tenho sido convidada para um monte de
coisas, mas não sei se todas o farão. Pela resolução, a formação tem de ser
feita em pelo menos 4 anos e 8 semestres, não sei como as particulares vão se
adaptar a isso. Uma verdadeira transformação nessa formação só viria se
houvesse uma integração entre todas as licenciaturas, num centro de formação de
professores, num lócus em que as faculdades de educação, de física e química
contribuíssem para formar um profissional professor. É uma coisa que discuto há
muitos anos: por que existe uma faculdade de medicina, de engenharia e não
existe uma faculdade de formação de professores?
E aí juntaríamos os conhecimentos
disciplinares com as ciências da educação…
Isso,
não é para dissolver faculdades de educação ou o instituto de base que
contribui, mas para juntar e, ao fazer isso, teria de haver uma coordenação
vivaz que permitisse a interlocução entre eles e a geração de projetos
formativos diferenciados. Como a Base Comum, que é você ter uma cultura
ampliada nos fundamentos da educação e uma formação bem assentada em didáticas
e práticas de ensino. Se essas competências que estão distribuídas fossem
condensadas, teríamos a possibilidade de construir a interdisciplinaridade a
partir da disciplinaridade, mas propondo um currículo que renovasse a formação.
Isso leva tempo? Sim, mas se começarmos já, teremos o tempo de fazê-la.
Não é preocupante o nível de
desistência de jovens docentes em início de carreira?
Dos
poucos dados existentes sobre isso, não dá para falar que a maioria desiste. Há
grande procura pelos cursos de pedagogia. Claro que muita gente que busca esses
cursos não quer ser professor e o curso tem seus problemas para formar
alfabetizadores. O que nós não temos é procura para disciplinas como história,
geografia, ciências sociais. Há poucos cursos para o tamanho do Brasil. Os gaps
são nessas áreas. Agora falando em gestão de educação no nível dos estados e
municípios, os professores iniciantes não recebem apoio suficiente para que se
sintam com um referencial na rede, apoiados através de material, orientação,
suporte, eles é que têm de procurar os colegas para se orientar. Se há um
coordenador pedagógico sensível a isso na escola, procura dar esse apoio, essa
formação. Mas a desistência não é alta, e vou dizer por quê: os licenciandos
que procuram trabalhar como professores provêm de camadas sociais menos
favorecidas. O salário de um professor é um diferencial para eles. Não é para a
classe média, média alta, mas sim para essa camada ascendente. Ele fica na carreira,
pois sabe que dali a cinco anos tem X% de aumento, tem estabilidade. Mesmo nas
licenciaturas mais sofisticadas, como física, química, matemática, eles têm um
nível socioeconômico menor do que os que procuram outros cursos, é um salto
social.
E como anda a formação dos
coordenadores pedagógicos? Modernizou-se nos últimos anos?
Teoricamente,
sim, pois temos bons autores e boas pesquisas sobre a coordenação pedagógica.
Na prática, há muitos problemas. Primeiro porque, se você define que o
coordenador pedagógico deva ser aquele que vem da pedagogia, o curso não sabe
bem o que forma. O diálogo desse formado com pessoas da história, da
matemática, da geografia, mesmo tendo feito alguma especialização em
coordenação pedagógica, não é fácil, justamente porque ele não tem uma formação
interdisciplinar que lhe permita um diálogo fecundo. Não se sustenta o discurso
de que “ah, ele pode ver o aspecto pedagógico”. Não há aspecto pedagógico
independente de conteúdo, da linguagem daquela área. São linguagens específicas
e, se ele tem dificuldade, não é bem recebido. Em outros sistemas, o
coordenador pedagógico pode vir de qualquer área – um professor de matemática
ou de história que se candidata ao cargo. Em geral, recebe uma formação
continuada para isso. Nesses casos, são muito poucos os professores de outras
áreas que se candidatam a ser coordenadores pedagógicos. É mais comum que se
candidatem a ser coordenadores de área – ciências, matemática, ciências humanas
etc. – nas redes onde isso existe. Nas poucas pesquisas que tenho lido sobre
esse tipo de coordenação, ela funciona bem. Não temos ainda uma opção clara de
que tipo de coordenação pedagógica queremos ter nas escolas. Defendo que
deveria haver um curso de pós-graduação, um mestrado profissional voltado à formação
de coordenadores pedagógicos. Aí poderia vir de qualquer área, mas teria uma
formação psicopedagógica forte, didática, interligada a diferentes conteúdos,
linguagens e lógicas. Essa é a formação que precisaríamos ter, mas para isso
precisaríamos de uma indução, em nível federal ou estadual, o que demanda
financiamento.
Hoje,
fala-se muito em metodologias ativas de ensino, como instrução por pares,
estudo de caso etc. O que é propriamente novo e o que tem mais potencial de
estimular o aluno?
Pois
é, há muita novidade que não é novidade, e muita novidade que não funciona na
escola. A sala de aula invertida, por exemplo, só pode ser fecundamente
utilizada após um tempo de aculturação da criança na vida escolar. Porque ela
vem de uma vida familiar, ou comunitária, ou de rua, um tanto indisciplinada,
solta, e a vida escolar exige concentração e atenção.
Seria mais para o ensino médio…
Sim,
e mesmo assim você teria de ter tanto recurso… A nossa população ainda não tem
uma situação socioeconômica e cultural equitativa, somos muito desiguais, a
maioria não conta com recursos culturais acessíveis, por mais que use celular.
Nos entusiasmamos com coisas que às vezes não têm muita objetividade. Então,
desconfio de alguns modismos. São coisas muito deste momento da sociedade
contemporânea, da imagem, do novo, ou de travestir de novo algo que não é
efetivamente novo.
Mas de todas essas coisas, você
destacaria algo que tem mostrado bons resultados?
Vi,
por exemplo, de estudos de caso de escolas públicas de Chicago, de escolas
públicas na França e na Itália que o que funciona mesmo é uma equipe escolar
mais fixa, mais perene, que compartilha um período maior dentro da escola. Nos
EUA há vários estudos de caso que mostram isso. Esse compartilhamento deve ter
um sistema de apoio bem desenvolvido – não de imposição, de apoio –, com
material pedagógico, possibilidades. E deixar a comunidade ser criativa. A
inovação em geral é produzida em pesquisas que a universidade faz e propõe. Por
exemplo, tivemos o Pibid. Não foi tudo, mas a maioria dos projetos trouxe
inovações importantes, em termos de construção e teste de material didático, de
organização de feiras de ciências com novos modelos. Quando você dá condições e
põe interlocutores qualificados, há criatividade nesse universo. A chave é
criar condições para compartilhamentos efetivos, no caso da escola com equipes
fixas, e no caso da universidade, de os professores conversarem, manterem uma
interlocução constante – para definir currículo, quem vai trabalhar com o quê.
Tem professor que nem sabe o currículo de formação docente da sua escola. Vai
lá e apenas dá a sua aula.
