É tarefa de todo democrata defender o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

 

A Reforma Agrária segue sendo uma transformação fundamental para a construção de um projeto de desenvolvimento. - Manuela Martinoya - MST.

No dia 17 de maio, foi instaurada na Câmara dos Deputados, em Brasília (DF), a Comissão Parlamentar de Inquérito do MST, com o objetivo de investigar uma suposta escalada de ocupações de terras no Brasil. É a quinta CPI enfrentada pelo MST ao longo de sua história. Expressão da correlação de forças desfavoráveis no Congresso, a presidência da CPI ficou com o Coronel Zucco (Republicanos-RS), investigado por incentivar os atos golpistas do 8 de janeiro; e a relatoria com Ricardo Salles (PL-SP), ex-ministro de Bolsonaro, investigado por um conjunto de crimes ambientais, inclusive, organização criminosa, quando tentava “passar a boiada” à frente do Ministério do Meio Ambiente. 

O que temos visto desde então é um verdadeiro circo de horrores, com a tentativa absurda de associar à luta pela terra no Brasil ao trabalho escravo e ao narcotráfico. Justamente o inverso da realidade brasileira, como demonstram as recentes denúncias de trabalho escravo nas vinícolas em Bento Gonçalves (RS), mas também, como evidenciado pela Agência Pública, em matéria de outubro de 2020, uma investigação da Polícia Federal realizada naquele ano demonstrou que parte dos lucros com o tráfico de cocaína no Brasil são lavados no agronegócio, através da aquisição de fazendas nas regiões de fronteira e no financiamento de campanhas.

Na verdade, o objetivo da CPI do MST é atacar o governo Lula e criminalizar a luta popular no Brasil, buscando desviar o foco da CPMI dos atos golpistas do 8 de janeiro. Vale lembrar que a democracia e os direitos sociais no Brasil são conquistas da classe trabalhadora. Se dependesse de grandes proprietários de terra no país, ainda viveríamos em uma sociedade escravista. Aliás, a própria Abolição, longe de ser uma benevolência da princesa, foi produto da luta da população escravizada e do movimento abolicionista, que defendia que o fim da escravatura no país fosse acompanhado justamente da democratização da propriedade de terra, da Reforma Agrária!

Neste sentido, o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra é continuidade da luta abolicionista no Brasil, mas também das lutas camponesas ocorridas com o advento da República, tais como Canudos, Contestado, Caldeirão, das Ligas Camponesas no Nordeste, do MASTER, no Rio Grande do Sul, etc. Enquanto não for democratizado a propriedade da terra no país, surgirão movimentos como o MST que lutarão pelo acesso à terra.

Portanto, como nos dizia o saudoso Florestan Fernandes, o que a CPI evidencia é justamente o caráter autocrático das classes dominantes no país, que são incapazes de relacionar desenvolvimento econômico, democracia e soberania e que, por conseguinte, tem um verdadeiro pavor quando os trabalhadores se organizam e lutam por seus direitos. Tratam a questão social no Brasil como questão de polícia.

Por isso, é fundamental que todos os democratas defendam o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra de mais uma tentativa de criminalização. A Reforma Agrária segue sendo uma transformação fundamental para a construção de um projeto de desenvolvimento, que produza alimentos saudáveis, que desenvolva o mercado interno, que estimule a industrialização, mas, que sobretudo, recupere a dignidade do povo brasileiro e acabe de uma vez por todas com a fome em nosso país.

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Com informações do Brasil de Fato-CE

Machado de Assis e o embranquecimento do Brasil

 

Machado de Assis em imagem clássica divulgada nos livros e em foto recriada pela campanha "Machado de Assis Real". (FOTO | Divulgação).

Por César Pereira, Colunista

Em 1911, na cidade de Londres, Inglaterra, centenas de intelectuais reuniram-se para participar do Primeiro Congresso Internacional das Raças. O evento ocorreu entre os dias 26 e 29 de julho, durante o evento discutiu-se intensamente sobre eugenia, darwinismo social, o suposto “fardo do homem banco,” raças, relações inter-raciais, cordialidade inter-racial.

O Brasil foi convidado para tomar parte no congresso, e teve como seu delegado o antropólogo João Batista de Lacerda que durante a realização da sexta sessão do congresso apresentou o trabalho intitulado "The Metis, or half-breeds, of Brazil" para intelectuais da Europa, África, Ásia e América. Era um artigo onde o representante brasileiro defendia sua tese de embranquecimento da população “mestiça” do Brasil.

Ao longo da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX, importantes intelectuais brasileiros refletiram sobre o papel histórico, econômico e social do negro para a civilização brasileira. Intelectuais brancos como José de Alencar, Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, dedicaram-se a pensar sobre o chamado “elemento negro” no Brasil.

Esses homens escreveram obras em que defendem um país com a hegemonia da branquitude sobre as características fenotípicas dos negros. Segundo a maioria deles, o negro representava a decadência da raça, e a sua predominância demográfica no Brasil explicava em grande parte nosso atraso cultural e econômico com relação as nações europeias mais ricas e “civilizadas” que eram os modelos para o Brasil das elites.

José de Alencar polemizou intensamente na imprensa fluminense nas décadas de 1860 e 1870 contra os abolicionistas que ganhavam força por todo o Império do Brasil. Em suas Cartas a favor da escravidão, José de Alencar argumenta contra a extinção do trabalho escravo no país e questiona sobre o futuro da nação depois que o “elemento servil” já não estiver sob a tutela de um senhor branco. Na visão do escritor cearense os pretos livres representavam um sério risco à sociedade brasileira.

Joaquim Nabuco foi um dos mais importantes políticos brasileiros do final do período monárquico. Suas principais pautas eram a defesa da manutenção da monarquia no país e a abolição da escravidão. Joaquim Nabuco defendia o fim da escravidão como um instrumento político que iria revolucionar o império, pois a escravização dos negros era uma mancha na sociedade brasileira uma vez que tal prática envergonhava o Brasil perante as nações civilizadas e atrasava a economia nacional.

Nabuco compreendia a escravidão não como sendo um instrumento que se impunha de forma violenta e destrutiva sobre seres humanos negros, mas como uma prática política imprópria para uma nação civilizada como a nossa. Para ele a escravização não era um problema porque violentava pessoas, mas porque fazia do Brasil uma nação bárbara perante as nações civilizadas da Europa. Acabar com a escravidão era libertar o Brasil.

Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Oliveira Vianna concluíram que a presença do negro no Brasil era um fator importante na formação cultural e econômica do país, mas para eles essa importância não se sobrepunha ao do branco, pois os brancos, principalmente a herança luso-europeia do Brasil deveria se impor sobre a africana.  Para estes intelectuais havia a necessidade de um predomínio do branco sobre o negro, a eliminação das chamadas características “negroides” por elementos “caucasianos” era fundamental para o Brasil caminhar lado a lado com a civilização europeia.

As ideias deles são ecos do pensamento geral da branquitude nacional nos fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Para Euclides da Cunha a própria miscigenação de várias raças no Brasil criou uma sub-raça, mestiços degenerados e que eram responsáveis pelos retrocessos culturais, econômicos e sociais.

O artigo de João Batista de Lacerda é a defesa dessa ideologia de embranquecimento do país. O projeto da branquitude propondo-se a criar uma nação branca, um Brasil cuja presença do negro fosse irrelevante ou inexistente se corporifica na comunicação de João Batista de Lacerda em Londres,

 Para Lacerda a escravização de pretos e pretas no Brasil não representou violências, pois esses homens e mulheres foram sempre tratados com cordialidade pelos seus senhores. Segundo ele não houve na história de nosso país violência escravocrata, pois em nenhum período histórico houve segregação do negro pelo branco.

Ainda segundo seu ensaio a aceitação da miscigenação a partir do livre intercurso sexual do branco e das negras no Brasil, criou por aqui uma singular “excepcionalidade racial”, pois por causa da "seleção sexual", os mulatos procurariam sempre encontrar parceiros que pudessem "trazer de volta seus descendentes para o tipo branco puro", removendo os aspectos característicos da "raça negra", inclusive o atavismo. (Lacerda, 1911a, p. 382).

Desenvolvendo mais ainda seus argumentos racistas, Lacerda afirma que a introdução de imigrantes brancos no Brasil em muito favoreceu a melhoria racial do país, assim, o cruzamento entre os mestiços e os brancos faria recuar o “elemento negro” decadente e aos poucos o “elemento branco” superior predominaria, prevendo João Batista de Lacerda que em cem anos 1912 a 2012 já não haveria mais negros no Brasil.

Grande parte dos dados que Lacerda apresenta para demonstrar sua tese do branqueamento, foram produzidos por Roquette-Pinto (Figura 1). Este outro intelectual brasileiro era assistente da cadeira de Antropologia, Arqueologia e Etnografia do Museu Nacional, portanto um jovem antropólogo que já vinha reunindo, pelo menos desde o ano de 1906, vastas informações, dados estatísticos sobre a formação social do Brasil, principalmente com relação à 'evolução' e às características raciais do povo brasileiro.

As pesquisas de Roquete-Pinto estavam apontando que a população branca no Brasil tinha crescido progressivamente, e de forma acelerada, entre 1870 e 1910, enquanto o crescimento da população negra e mestiça seguiam em sentido claramente oposto (Souza, 2011, p. 90-92). Se baseando, então, na sequência progressiva dessa estatística, não fora difícil para João Batista de Lacerda chegar à conclusão que, em 2012, a "raça branca" representaria 80% da população brasileira, os indígenas, 17% e os mestiços, 3%, sendo que a "raça negra" tendia a desaparecer de vez do território nacional (Lacerda, 1912b, p. 101).

O trabalho de Lacerda publicado em 1912, foi o amadurecimento de uma ideia que já vinha sendo desenvolvida desde o século XIX e que aparece ilustrada na pintura A redenção de Cam, de Modesto Brocos (1893). O diagrama criado por Roquete-Pinto se impunha como o elemento científico comprobatório da ideologia do branqueamento do Brasil.


Sintomaticamente no ano de 2011 a Caixa Econômica Federal veiculou na televisão um comercial utilizando um ator branco que representava o papel de Machado de Assis como um dos clientes do banco. Na propaganda um ator branco caminha pelas ruas do Rio de Janeiro no começo do século XX e dirige-se a uma agência da Caixa Econômica para fazer uma transação bancária. A peça publicitária é narrada pela atriz Glória Pires.

Ao entrar no banco o ator representando Machado de Assis é cumprimentado como um homem célebre das letras nacionais e o próprio comercial deixa isto evidente ao longo de seu 1 minuto e 2 segundos de duração. A ideia dos criadores da peça publicitária é deixar bem evidente ao público que aquele senhor branco grisalho é um dos maiores escritores da língua portuguesa.

Logo que a propaganda veio a público causou imenso desconforto em quem conhece bem a história de Machado de Assis. Filho de pai negro e neto de pretos que tinham sido escravizados, o escritor era um homem negro e foi como uma pessoa preta que alcançou a maior posição intelectual já atingida por escritor brasileiro em todo o mundo.

A cor da pele de Machado de Assis se tornou alvo de disputas entre a elite brasileira desde os primeiros dias de sua morte em 26 de setembro de 1908. Joaquim Nabuco que era seu amigo, pessoa que muito conviveu com ele desde a década de 1880 e se correspondia intensamente com Machado se pronuncia nesses termos sobre a cor deste: "O Machado para mim era branco. [...] quando houvesse sangue estranho, isto em nada alterava a sua perfeita caracterização caucásica" (NABUCO Apud MASSA, p.46).

A negritude de Machado de Assis sempre foi um problema para a branquitude brasileira. Ressentida por saber que o maior escritor da nossa língua e um dos maiores intelectuais do mundo é um indivíduo não-branco, então essa elite vai utilizar de todos os subterfúgios para impor um branqueamento que o fizesse seu legítimo representante.

Além disso, um Machado de Assis negro refutaria os argumentos da intelectualidade racista brasileira e internacional, aquela intelectualidade que se reunira em 1911 na cidade de Londres para argumentar sobre a superioridade da raça branca sobre a raça negra e desta primeira sobre todas as raças.

A peça publicitária da Caixa Econômica Federal foi a massificação da tese defendida por João Batista de Lacerda de que em cem anos não haveria mais negros no Brasil. Ora, analisemos de perto a estrutura da ideologia veiculada pela propaganda do banco federal.

Segundo Lacerda em 2012 a população brasileira seria composta de 80% de brancos, 17% de indígenas e apenas 3% de mestiços, negros seriam ausentes, logo, uma campanha publicitária para divulgar um dos bancos mais ricos do país, um banco que pertence ao país, país este supostamente segundo Lacerda formado predominantemente por pessoas brancas, pessoas que seriam os verdadeiros clientes do banco, indígenas consumiriam serviços bancários na selva? Mestiços pobres se utilizariam de bancos? Assim a campanha da Caixa Econômica Federal dirigiu-se para aqueles que ela considerava ser a maioria dominante do provo brasileiro, os brancos.

Se a tese de João Batista de Lacerda estivesse correta a propaganda da Caixa Econômica Federal teria acertado bem no alvo o ego da branquitude brasileira, pois como não existiria mais negros no Brasil, um Machado de Assis branco satisfaria muito bem o narcisismo branco.

Mas não foi isto que se deu. No dia seguinte ao início da primeira veiculação da propaganda o Movimento Negro, clientes do banco, jornalistas, escritores, intelectuais e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir-PR), questionaram o presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Hereda e este teve que suspender a peça publicitária do ar e solicitar da agência que a produzira fizesse uma outra agora com um ator negro representando o escritor.


Foto da representação das duas propagandas da Caixa Econômica Federal (FONTE | YOUTUBE)

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A cor da pele de Machado de Assis sempre foi um problema para as pulsões narcísicas da elite branca nacional. Mesmo quando o escrito era vivo, os intelectuais brasileiros já polemizavam sobre sua origem hereditária e a sua negritude. Num dos primeiros estudos sobre a obra machadiana o crítico literário e antropólogo Sílvio Romero escreve o seguinte:

Quem já o estudou à luz de seu meio social, da sua influência, de sua educa- ção, de sua hereditariedade não só física como étnica, mostrando a formação, a orientação normal de seu talento? Quem já lhe ‘assinou o posto’ na história espiritual do país? (ROMERO, p. 18)

 

E continua:

(...) Machado de Assis não sai fora da lei comum, não pode sair, e aí dele, se saísse. Não teria valor. Ele é um dos nossos, um genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada, por mais que pareça estranho tocar neste ponto (ROMERO, p. 28).

 

Este estudo de Sílvio Romero sobre Machado de Assis foi escrito nos meados da década de 1890 e publicado em 1897, isto é, quando o escritor estava no auge de sua carreira literária tendo já escrito e publicado os romances da primeira fase de 1872 a 1878 e as obras mais importantes da literatura mundial como Memórias Póstumas de Brás Cubas, O alienista, Quincas Borba, Papéis Avulsos e Histórias sem data.

Durante todo a crítica de Sílvio Romero sobre o escritor fluminense nota-se o desconforto deste com a negritude de Machado de Assis. Para Sílvio Romero a obra deste era imperfeita exatamente devido as suas influências hereditárias africanas. Podemos compreender que a visão de Romero eram os ecos do desconforto geral da intelectualidade branca nacional bem como da própria elite da qual o crítico literário sergipano havia se feito cão de guarda.

Nas citações acima percebe-se a obsessão de Sílvio Romero com relação a afrodescendência de Machado de Assis, tais obsessões narcísicas já muito evidentes quando o escrito era vivo se tornarão ainda mais intensas após sua morte. Romero defendia a seguinte tese sobre o futuro do Brasil:

A minha tese, pois, é que a vitória na luta pela vida, entre nós, pertencerá, no porvir, ao branco; mas que esse, para essa mesma vitória, tem necessidade de aproveitar-se do que de útil as outras duas raças lhe podem fornecer, máxime a preta com quem tem mais cruzado. Pela seleção natural, todavia, depois de prestado o auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância até mostrar-se puro e belo como no Velho Mundo. Será quando já estiver de todo aclimatado no continente. Dois fatos contribuirão largamente para esse resultado: de um lado, a extinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dos índios, e de outro a imigração europeia. (ROMERO, p. 47).

 

Percebemos que as ideias de Sílvio Romero são muito semelhantes a ideologia geral que predominava entre a intelectualidade branca brasileira em fins do século XIX e início do XX. Para estes porta vozes da elite não havia futuro para o negro no Brasil. Desse modo explica-se por que se recusavam a aceitar um Machado de Assis afrodescendente.

Relutante em reconhecer a genialidade da obra de Machado de Assis devido as suas ideias racistas, Sílvio Romero passa a analisar a obra machadiana como imitação da escrita de Flaubert, Zola e Charles Dickens. Para Sílvio Romero a literatura de Machado de Assis é apenas uma imitação dos cânones europeus.

Mesmo diante da relutância de Romero outros críticos literários e intelectuais precisaram reconhecer a genialidade de Machado de Assis. Um desses críticos foi José Veríssimo. Para este o Machado de Assis gênio literário da língua portuguesa não era o descendente de pretos, na troca de cartas com Joaquim Nabuco José Veríssimo não aceita o adjetivo “mulato” com que se referiam ao amigo.

Mulato, ele foi de fato, um grego da melhor época. Eu não teria chamado Machado de Assis de mulato e penso que lhe doeria mais do que essa síntese. (…) O Machado para mim era um branco e creio que por tal se tornava; quando houvesse sangue estranho isso nada alterava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só via nele o grego” ( Joaquim Nabuco, em carta a José Veríssimo, após a morte de Machado de Assis, disponível em: https://www.geledes.org.br/duas-cores-de-machado-de-assis/, acesso em 11 de junho de 2023 ).

         

Assim os dois se entenderam sobre o problema da cor da pele de Machado de Assis, era um mulato, mas um mulato grego. A insatisfação das pulsões narcísicas da elite brasileira com um Machado de Assis negro atravessou, portanto, todo o século XX e ainda repercutiu no ano do centenário do Congresso Internacional das Raças através da propaganda da Caixa Econômica Federal.

O branqueamento de Machado tornava-o palatável para as elites e foi assim que ele entrou na galeria dos cânones da literatura brasileira. A certidão de óbito do escritor lavrada em 19 de outubro de 1908, três semanas após sua morte o declara como branco.


Trecho da Certidão de óbito de Machado de Assis. (FOTO | Reprodução | Internet).

A declaração do documento destoa dos vastos testemunhos sobre a negritude de Machado de Assis, mas confirma a campanha oficial para branqueá-lo. Importante notar aqui que este documento possui uma anomalia estudada pela cientista social Simone da Conceição Silva, esta anomalia consiste em estar declarada a cor da pessoa morta, para a pesquisadora é estranho que a certidão de óbito de Machado de Assis a traga, pois este tipo de declaração só passou a ser obrigatória no Brasil em 1973.

Apesar de constituir uma falsa declaração da branquitude do escritor o atestado de óbito vai servir de base para sustentar vários argumentos sobre a suposta pele branca ou no máximo mulata do autor. Essa obsessão em descrever Machado de Assis como branco vai ecoar nas celebrações do seu centenário nascimento em 1939.

Para desmontar os argumentos sobre a negritude do escritor, argumentos estes que tinham principal base sua ascendência africana, pai, avós paternos e o fato de haver nascido no Morro do Livramento, a região da Pequena África no Rio de Janeiro, exibiu-se na Academia Brasileira de Letras a certidão de nascimento de Machado de Assis como prova irrefutável de sua dívida com a branquitude luso-brasileira:

Aos treze dias do mês de Novembro de mil oitocentos e trinta e nove annos na Capella da Senhora do Livramento filial a esta Matriz com Provizão do Illustrissimo e Reverendissimo Monsenhor, e Vigário Capitular Narcizo da Silva Nepomuceno, e minha licença o Reverendo Narcizo José de Moraes Marques baptizou, e pos os Santos Oleos a Joaquim, innocente filho legítimo de Francisco Jozé de Assis, e Maria Leopoldina Machado de Assis, elle natural desta Côrte, e Ella da ilha do Faial, digo, Ella da Ilha de São Miguel: forão padrinhos o Excellentissimo Viador Joaquim Alberto de Souza da Silveira, e Dona Maria Jozé de Mendonça Barrozo, nasceo aos vinte e hum de junho do prezente anno: de que fis este assento.

O Vigr.° Jozé Francisco da Silva Cardoso. (COSTA & FRANCO, p. 49)

O documento causou impacto, pois para a intelectualidade do Estado Novo representava o triunfo do elemento lusitano sobre o africano, demonstrando que aqueles que insistiam em Machado de Assis negro estavam enganados. A partir desse momento a crítica e a história da literatura trabalhará durante todo o século XX, com a representação de um Machado de Assis branco.

Para ajudar na manutenção do mito da branquitude de Machado de Assis a iconografia, registros fotográficos e pinturas guardados na Academia Brasileira de Letras será de grande importância. Nas fotografias em branco e preto, o escrito é representado como um jovem quase imberbe, sentado numa escrivaninha encarando o espectador, nesta fotografia seus traços afrodescendentes foram quase apagados pelo trabalho de retoque do estúdio.


Fotografia de Machado de Assis como esta acima ajudaram a divulgar a imagem do gênio da literatura brasileira como um homem branco (FOTO | Reprodução | Internet).

Em outra fotografia ele aparece já como um senhor maduro, barbado e grisalho olhando fixamente para um horizonte ausente como se contemplasse misteriosamente algo que só a ele é dado ver. Ainda nesta fotografia procurou-se apagar sua negritude. No entanto, apesar de todo os esforços por invisibilizar sua afrodescendência através dos retratos divulgados ao público, a sua ascendência negra não escapou aos olhos dos estudiosos mais atentos, segundo um destes:

Alguns o consideram como branco. Examinando os retratos que dele nos ficaram, nota-se que, adulto, tinha, como muitos brasileiros, alguns traços negroides: cabelos ligeiramente crespos, o lábio inferior bastante carnudo, um nariz antes achatado. Estes traços mais ou menos acentuados segundo os vários retratos, são bem encobertos pelo uso da barba. (MASSA, p.46-47)

 

Quem assim se pronuncia é o crítico francês Jean-Michel Massa no seu livro A juventude de Machado de Assis de 1947. Apesar dessa percepção do autor francês a regra entre os estudiosos brasileiros da vida e da obra machadiana foi sempre considerá-lo não-negro. Os vastos estudos bibliográficos, de crítica literária e história da literatura que serão escritos por diferentes autores no decorrer do século XX, procurarão obsessivamente repensar a condição de mulato de Machado de Assis e todos eles concomitantes num ponto, não aceitam a negritude do escritor.

Somente no século XXI começa-se a rediscutir a afrodescendência de Machado de Assis e as obsessivas tentativas de branqueá-lo ao longo da história do Brasil. Estudos como o de Sidney Shalhoub “Machado de Assis Historiador” e de Eduardo de Assis “Machado de Assis Afrodescendente” reabriram o debate sobre a presença do negro na obra do romancista.

Machado de Assis segundo esses historiadores era um homem negro e como tal agia, também agia como um intelectual negro observando as elites brancas por dentro, também agia como um funcionário público negro dentro do alto escalão da monarquia e da república, e agia igualmente como um jornalista negro num país escravocrata e racista.

REFERÊNCIAS

COSTA & FRANCO, Machado de Assis, José Olympio, Rio de Janeiro, 1988.

LACERDA, João Baptista de. Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo Rio de Janeiro: Papelaria Macedo, 1912a.

MASSA, Jean-Michel, A juventude de Machado de Assis, Ministério da Educação, 1947.

ROMERO, Nelson. A história da literatura brasileira. 3. ed.. Rio de Janeiro: Editora Zélio Valverde, 1944.

Como vencer os reacionários?

 

(FOTO | Marcelo Camargo | Agência Brasil).

Fábio José, originalmente no Esquerda Online

O povo elegeu Lula para que ele comandasse um governo que fizesse exatamente o contrário do que vimos nos últimos anos, quando os direitos da classe trabalhadora, incluindo saúde e educação públicas, sofreram um ataque brutal, primeiro com Temer e, depois, no governo de Jair Bolsonaro. Infelizmente, as forças reacionárias, dentro e fora do congresso nacional, querem sepultar os sonhos da maioria do povo. Diante desse fato, que fazer?

Para eliminar falsas interpretações, destacamos que vivemos nos últimos anos, no Brasil, um cenário bastante desfavorável à maioria da população. Ataques sucessivos ao nível de vida das massas tornaram-se algo corriqueiro. Quem refletir sobre esse fato há de entender que a eleição de Lula deu-se em contexto de muitas dificuldades, mas, igualmente, de incontáveis esperanças.

A tentativa de golpe de 8 de janeiro demonstrou que a extrema-direita bolsonarista está disposta ao enfrentamento físico contra qualquer esboço de mudanças no país. Bolsonaro foi retirado do palácio do planalto, mas o bolsonarismo está incrustrado nas instituições – parlamento, forças de segurança, STF, MP etc. – e na sociedade. Daí a necessidade de seguir lutando contra o bolsonarismo como questão de primeira ordem.

Esse cenário, aliás, explica os obstáculos que o governo encontra no Banco Central, na câmara dos deputados e na trincheira neoliberal representada pela mídia a serviço do capital financeiro. Isso se traduz na ação de uma série de partidos que, desde o interior do congresso nacional, busca reduzir os sonhos da maioria do povo a uma peça de ficção.

É preciso saudar medidas que o governo Lula adotou no plano social e cultural, mas sabendo que estamos longe de alcançar o programa aprovado nas urnas e apoiado em centenas de milhares de pessoas que ganharam às ruas, ao longo da campanha eleitoral, não só para desafiar a extrema-direita e as políticas neoliberais, mas para defender a adoção uma nova plataforma programática.

A desvantagem na correlação de forças no congresso nacional conduziu o governo a acordos com partidos nos quais o conservadorismo e o golpismo andam de mãos dadas. Mesmo com ministros no governo, essas forças políticas, contudo, votam no congresso medidas cujo teor lembra os últimos seis anos de terror parlamentar, assentados nas contrarreformas.

Um dos erros incontestes no campo da esquerda é o de acreditar que devemos nos conformar com esse quadro extremamente desvantajoso para o governo e o conjunto da classe trabalhadora. Se se quer ser partidária das mudanças propostas ao longo da campanha, todavia, a esquerda precisa apontar numa outra direção.

Qual a conveniência prática de estabelecer prioridade a acordos, compromissos e alianças com partidos políticos reacionários que, por princípio e interesses rapaces, votam permanentemente contra o povo? Baixemos esta discussão à terra. Quem são os partidos que, estando na base do governo, votam contra ele?

Foi observado em várias ocasiões o caráter politicamente criminoso do União Brasil (resultado da fusão do partido Democratas e do Partido Social Liberal, de Luciano Bivar). Esse partido apoiou todas as contrarreformas para retirar direitos dos trabalhadores e foi base de sustentação do bolsonarismo. Mesmo com ministros dentro do governo Lula da Silva, vota sistematicamente com a extrema-direita e contra a coalizão da qual, formalmente, participa, amparando os negócios sujos do agronegócio e do capital financeiro.

Desse bloco heterogêneo que conforma a base do condomínio governamental, chama a atenção a presença do PSD, partido com a maior bancada no interior do senado federal. Por que exatamente esse destaque? Porque ele é dirigido por ninguém menos que a raposa política de nome Gilberto Kassab, secretário de governo e relações institucionais de Tarcísio de Freitas no estado de São Paulo, o principal suporte político-institucional do bolsonarismo.

Por fim, destacaria também as contradições do velho MDB, que tem Simone Tebet como ministra do planejamento. Há um setor que no senado, sobretudo, apoia o lulismo, praticamente desde os mandatos anteriores. Acontece que nas votações na câmara dos deputados, o MDB tem revelado um posicionamento mais de oposição do que de alinhamento ao governo.

Há quem defenda a necessidade de substituir os partidos que não traduzem seu apoio formal, e presenças nos ministérios, com engajamento e lealdade no parlamento. Porém, curiosamente, propõe a entrada no governo, em ministérios estratégicos, como o da saúde, do partido Republicanos, do impagável Arthur Lira.

Reitera-se assim uma ideia fundamental: não é possível governar sem se ancorar nas forças políticas mais retrógradas do país. Aqui, cabe perguntar: é mediante esse processo que se fará conjunto de mudanças que as pessoas esperam?

Gabriel Boric, no Chile, e Gustavo Petro, na Colômbia, chegaram aos governos de seus respectivos países, apoiados na mais vigorosa mobilização social. O primeiro, desmobilizou e apostou na velha política de compromissos com a burguesia e o imperialismo. Já o segundo confiou no caminho que o levou ao Palácio de Nariño.

Lula, diferentemente, não chegou à presidência apoiado em mobilizações massivas como no Chile e na Colômbia, apesar dos atos de rua ocorridos ao longo da campanha eleitoral. Isso o levaria forçosamente a uma saída intermediária, nem a de Boric, nem a de Petro?

Essa é uma premissa historicamente falsa. De acordo com a história, qualquer mudança estrutural depende de algum grau de mobilização social. Quando abdicou desse caminho, Boric sofreu uma derrota decisiva no terreno da constituinte, abrindo caminho para o neopinochetismo. Ao ressaltar a alternativa de promover as mobilizações populares com o fito de alcançar as transformações necessárias, Petro foi ao encontro da história. Isso é uma garantia de vitória? Evidentemente que não. Como muito já foi dito: a história não promete nada. O que ela nos ensina é que sem luta e mobilização, as coisas tendem a retroceder em lugar de avançar. E ainda que avance, em um dado momento, no primeiro descuido, as forças reacionárias farão sentir o peso de sua mão intransigente.

Qual a tática acertada?

Uma tática acertada para enfrentar o reacionarismo, no caso do Brasil, não passaria por retirar os legatários do bolsonarismo do governo e, em lugar de apostar em uma política aliancista com o celerado Arthur Maia, acreditar na força das ruas? Nisso reside a essência do problema. O governo está em um entroncamento. É primordial pegar a via correta. Qualquer política favorável à maioria do povo, em última análise, depende de vê-lo mobilizado.

Eis as condições da vitória. Não se trata de uma tarefa fácil, mas nada que enfrente a máquina do capital, azeitada pelas mãos férreas do reacionarismo e do neofascismo, reclama um caminho sem dificuldades, sem ousadia.

Nenhum governo está fadado a renunciar a certos compromissos, e por que, no entanto, estaria fadado a renunciar à mobilização das amplas massas que o apoiam?

Altaneira poderá ser o 2º município do Brasil e o 1º do Ceará a ter Estatuto da Equidade Racial

 

Entrada de Altaneira-CE. (FOTO | Prof. Nicolau Neto).

Por Nicolau Neto, editor

Nos dia 13 e 26 de maio de 2021, mês em que as atenções se voltaram para relembrar e debater os 133 anos da abolição inconclusa da escravização no Brasil, ocorreu no município de Altaneira, no cariri cearense, e no formato remoto, a apresentação do Plano de Combate ao Racismo e de Promoção da Equidade. A ação partiu deste professor e fundado do blog.

Como já relatado aqui, as apresentações se deram junto às secretarias de governo, de educação, de cultura, além de contar com a participação de diretores/as e coordenadores/as das escolas no município, de formadores/as educacionais e de representantes do Sindicato dos Servidores Municipais (Sinsema) em um primeiro momento (dia 13) e posteriormente para o poder legislativo (dia 16).

Das 11 propostas do plano, duas já foram aprovadas por meio de lei na Câmara e sancionadas pelo executivo municipal: a transformação do dia 20 de novembro em feriado municipal de autoria do presidente da casa, o vereador Deza Soares (PT); e a criação do Conselho Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (CMPPIR) oriunda do poder executivo.

Agora, mais uma propostas poderá sair do papel. Durante a solenidade de posse da mesa diretora da Câmara para o biênio 2023/2024 ocorrida em janeiro do ano ano em curso, a vereadora Rafaela Gonçalves (PT), agora na função de vice-presidente,  destacou em seu discurso de posse que uma de suas prioridades para este ano era a aprovação e promulgação do Estatuto Municipal da Equidade Racial que adotará os parâmetros do Estatuto da Igualdade Racial do Governo Federal aprovado em 2010.

Pioneirismo

Ainda de acordo com a vereadora, o Estatuto encontra-se na Comissão Permanente da casa para emissão de parecer. Ainda não há previsão para que o PL do estatuto étnico-racial vá a votação em plenário. Se for aprovado, o município de Altaneira entrará mais uma vez para a história no enfrentamento ao racismo por meio de dispositivos legais. Poderá ser o 2º município do país a contar com um estatuto dessa envergadura e o 1º do Estado do Ceará.

Dos mais de 5.000 municípios brasileiros, apenas Olinda, no Estado de Pernambuco, tem um Estatuto de Igualdade Étnico-Racial. O Projeto de Lei foi aprovado e sancionado em 2021 pelo prefeito Lupércio (SDD), primeiro negro a governar a cidade.

Em Altaneira, o prefeito Dariomar (PT) se autodeclarou negro para a justiça eleitoral nas eleições de 2020 ao identificar-se pardo. Conforme o IBGE, a população negra brasileira é a somatória de pretos e pardos.

É importante destacar que o enfrentamento as desigualdades advindas do racismo é uma responsabilidade e um dever de todos e os poderes constitucionalmente instituídos precisam assumir seu papel na luta antirracista disseminando o debate a respeito da questão racial, contribuindo para desarranjar todas as formas de discriminação e preconceito presentes diariamente.

APP Educaya: percursos urbanos e memórias de bairro negro do Cariri cearense

 

Imagem do aplicativo Educaya. (FOTO | Reprodução).


Educaya é uma junção das palavras educação e Aya, sendo Aya parte de um conjunto de símbolos africanos conhecidos como Adinkra e está relacionado à resistência e à superação. Foi assim que surgiu o nome do aplicativo Educaya, desenvolvido na esfera do projeto “O currículo e os processos de formação no campo das relações étnico-raciais na educação básica numa perspectiva inter e transdisciplinar”.

Coordenado por Cicera Nunes, o projeto surgiu de uma trajetória de trabalho junto ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais, que tem em sua centralidade a proposta de recontar e ressignificar a história do Cariri cearense a partir de perspectivas negras e indígenas, no bairro negro Comunidade do Gesso, localizado na cidade do Catro (CE).

A ideia é estabelecer parceria e aproximação com agentes escolares e moradores da comunidade, para que se percebesse influências, referências e presenças negras e indígenas na história desse lugar.

Segundo Cícera, o aplicativo Educaya foi desenvolvido em parceria com a equipe de informática do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia IFCE/CE, justamente para identificação dos pontos de memória do Território Criativo do Gesso.

O aplicativo está associado a placas indicativas dos pontos de memória da comunidade e direciona os percursos urbanos para traçar uma cartografia étnico-racial nos apresentando à uma parte importante da história do lugar”, explica a coordenadora.

Neste sentido, Educaya aparece relacionado à forma como a comunidade ressignifica a relação com a linha férrea no processo de organização do Sítio Urbano com a plantação de ervas medicinais e plantas frutíferas gerando remédios, alimento, sombra, arejando o ambiente, diminuindo a poluição e embelezando os ambientes.

Os percursos urbanos no Território Criativo do Gesso foram uma das etapas da metodologia do projeto onde, na companhia dos/as moradores/as do lugar, percorremos as ruas e os pontos de memória contextualizando a história do lugar, conhecendo as histórias de vida de pessoas que preservam o legado ancestral negro e indígena e identificando os pontos que guardam a memória coletiva desse território”, completa Cícera.

Projeto

O aplicativo é um dos produtos do Edital Equidade Racial na Educação Básica: pesquisa aplicada e artigos científicos, lançado em 2019, iniciativa do Itaú Social coordenada pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), em parceria com o Instituto Unibanco, a Fundação Tide Setubal e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Outros/as pesquisadores/as mapearam exemplos de práticas pedagógicas antirracistas e também têm obras disponibilizadas para download gratuitamente no acervo digital “Equidade Racial na Educação Básica: Pesquisas e Materiais”, que pode ser acessado na Biblioteca Dinâmica do Observatório Anansi, pelo site: https://anansi.ceert.org.br/biblioteca

Até dezembro deste ano, o acervo digital vai abrigar mais de 50 produções, entre livros, teses acadêmicas, artigos, e-books, jogos didáticos e vídeos, que serão lançados periodicamente.

A iniciativa foi lançada oficialmente em 9 de janeiro deste ano, em comemoração aos 20 anos da Lei 10.639, que alterou a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), tornando obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas brasileiras.

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Com informações do CEERT e do Observatório Anansi.

Universidades africanas existem antes das europeias

 

(FOTO | Reprodução).


Existe um imaginário no Brasil e em grande parte do mundo, de que as universidades são construções brancas europeias quando na realidade existiam universidades antes de existir centros de altos estudos europeus.

O povo africano produziu conhecimentos sofisticados milênios antes de existir universidades na Europa. Temos exemplos de centros de altos estudos no Egito, Etiópia, Mali, Marrocos e Tunísia. Essa informação é muito importante para que se conheça e se questione a ideia de que os brancos trouxeram a civilização para o continente africano quando na realidade o continente africano é a base de todo o conhecimento existente.

Há uma disputa política desde o século 15 para que só uma voz seja reconhecida, essa voz é a da população branca do Ocidente e sua história oficial. No Brasil criou-se um imaginário de que a emoção é negra e a razão branca, mas se analisarmos mais detidamente veremos que os africanos e descendentes de forma coletiva realizavam diversos ofícios do século 16 ao 19, com suas tecnologias ancestrais africanas e legaram soluções em diversas áreas do conhecimento como agricultura, pecuária, arquitetura, mineração, metalurgia, medicina, artes, guerra, esportes, culinária e espiritualidade.

Haviam instituições de ensino superior na África antes do colonialismo asiático e europeu. Essas altas instituições de ensino produziram e transferiram novos conhecimentos pertinentes à sociedade contemporânea para entender o mundo, a natureza, a sociedade, a religião, agricultura, medicina, saúde, literatura e filosofia.

Norte da África: kmt/Kemet/Egito Antigo

Os antigos keméticos, no Vale do Nilo, estabeleceram uma organização de ensino superior – o Per Ankh, que significa “Casa da Vida” – por volta de 2600 a.C. Ficava anexa aos grandes templos do país como Sais, Menfis, Akhetaton, Abidos, Tebas, Edfu, etc. Funcionava como universidade, biblioteca, arquivo ou oficina de cópia de papiros. Seu principal objetivo era a conservação e criação do conhecimento tanto científico quanto espiritual. Servia como instituição cultural destinada a estudos avançados. Entre os ensinamentos ministrados estavam os de medicina, astronomia, matemática, doutrina religiosa e línguas estrangeiras. No século 3 a.C, durante a dinastia ptolomaica, o Serapeum, Mouseion e a Biblioteca de Alexandria serviram como organizações de ensino superior em Alexandria. No Cairo, Al-Azhar, fundada em 970 d.C, está anexa à mesquita homónima. Foi fundada como escola de teologia no Califado Fatímida, em 988, sendo uma das mais antigas universidades do mundo e serve como uma organização de ensino superior até hoje.

Tunísia

A Universidade Ez-Zitouna, em Tunis, fundada em 737 d.C. no Califado Omíada e serve como uma organização de ensino superior. É a mais antiga universidade do mundo em funcionamento.Junto com as disciplinas de teologia – como a exegese do Alcorão (tafsir) – a universidade ensinava fiqh (jurisprudência islâmica, gramática árabe, história, ciência e medicina. Também tinha um kuttab ou escola primária que ensinava os jovens a ler, escrever e memorizar textos religiosos.

Marrocos

Em Fez, Fatima al-Fihri estabeleceu uma mesquita em 859 d.C. que se tornou a organização de ensino superior, a Universidade de al-Qarawiyyin. A educação na Universidade de al-Qarawiyyin concentra-se nas ciências religiosas e jurídicas islâmicas, com forte ênfase e pontos fortes em gramática/linguística árabe clássico eMaliki Sharia, embora também recebam aulas sobre assuntos não islâmicos aos alunos. O ensino ainda é ministrado nos métodos tradicionais. A universidade é frequentada por estudantes de todo o Marrocos e da África Ocidental muçulmana, com alguns também vindos do exterior.

África Oriental: Etiópia

No século 4 d.C. durante o reinado do rei de Axum Ella Amida (ou Ousanas), a Igreja Imperial Axumita serviu como uma organização de ensino superior.

África Ocidental: Mali

No ano de 988 a Universidade de Sankore, construída no Império do Mali sob o reinado de Mansa Musa, começou como a Mesquita de Sankore, serviu como uma organização de ensino superior na cidade de Timbuctu. A Mesquita de Sankore, a Mesquita de Sidi Yahya e a Mesquita de Djinguereber constituem o que é referido como a Universidade de Timbuctu. A Universidade de Sankoré tem suas raízes na Mesquita de Sankoré, que foi construída em 988 d.C. com o apoio financeiro de uma mulher Malinke. Mais tarde, foi restaurado entre 1578 e 1582 d.C. pelo Imam Al-Aqib ibn Mahmud ibn Umar, o Chefe Qadi de Timbuctu. Imam al-Aqib demoliu o santuário e o reconstruiu com as dimensões da Caaba em Meca. A Universidade Sankore prosperou e se tornou um ponto de aprendizado muito significativo no mundo muçulmano, especialmente sob o reinado de Mansa Musa (1307–1332) e a dinastia Askia (1493–1591).

Para que nós povo negro possamos avançar é necessário uma educação que ensine para as novas gerações o real papel do continente africano, berço ancestral, para o desenvolvimento da humanidade. Nunca é demais lembrar que somos a maioria da população brasileira e não podemos aceitar a continuidade de uma educação eurocentrada que esconde a nossa importância para nós e para a humanidade. Brancos existem por volta de 8.000 anos e nós povo negro existimos há pelo menos 300 mil anos! Descolonize-se.

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Com informações da Revista Raça.

Em 2022, analfabetismo cai, mas continua mais alto entre pretos e pardos e no Nordeste

 

Pela primeira vez, mais da metade (53,2%) da população de 25 anos ou mais tinham pelo menos o Ensino Básico Obrigatório. (FOTO | Renato Araújo/Agência Brasília).


A taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais recuou de 6,1% em 2019 para 5,6% em 2022, uma redução de pouco mais de 490 mil analfabetos no país, chegando a menor taxa da série, iniciada em 2016. No total, eram 9,6 milhões de pessoas que não sabiam ler e escrever, sendo que 55,3% (5,3 milhões) delas viviam no Nordeste e 54,2% (5,2 milhões) tinham 60 anos ou mais.

Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua: Educação 2022, divulgada hoje pelo IBGE. Essa é a primeira divulgação do módulo após a pandemia. Devido à redução na taxa de aproveitamento da amostra, causada pela mudança na forma de coleta implementada emergencialmente durante o período de distanciamento social, a divulgação do suplemento foi suspensa em 2020 e 2021, retornando agora com os resultados para 2022.

O analfabetismo segue em trajetória de queda, mas mantém uma característica estrutural: quanto mais velho o grupo populacional, maior a proporção de analfabetos. Isso indica que as gerações mais novas estão tendo maior acesso à educação e sendo alfabetizadas ainda crianças, enquanto permanece um contingente de analfabetos, formado principalmente, por pessoas idosas que não acessaram à alfabetização na infância/juventude e permanecem analfabetas na vida adulta”, observa a coordenadora Pesquisas por Amostra de Domicílios do IBGE, Adriana Beringuy.

As taxas ficaram em 16,0% entre as pessoas de 60 anos ou mais, 9,8% entre as pessoas com 40 anos ou mais, 6,8% entre aquelas com 25 anos ou mais e 5,6% entre a população de 15 anos ou mais. Por outro lado, a taxa de analfabetismo das pessoas de 60 anos ou mais foi a que mais caiu, reduzindo-se em 2,1 p.p frente a 2019 e 4,5 p.p. ante 2016.

Taxa de analfabetismo de pretos e pardos é duas vezes maior que a dos brancos

Em 2022, entre as pessoas pretas ou pardas com 15 anos ou mais de idade, 7,4% eram analfabetas, mais que o dobro da taxa encontrada entre as pessoas brancas (3,4%). No grupo etário de 60 anos ou mais, a taxa de analfabetismo dos brancos alcançou 9,3%, enquanto entre pretos ou pardos ela chegava a 23,3%.

Na análise por sexo, a taxa de analfabetismo das mulheres de 15 anos ou mais, em 2022, foi de 5,4%, enquanto a dos homens foi de 5,9%. Entre os idosos, a taxa das mulheres foi de 16,3%, ficando acima da dos homens (15,7%).

Beringuy destaca que “a tendência de queda do analfabetismo se verifica nos grupos onde ele é maior: população mais velha e pessoas de cor preta ou parda. É como se tivesse mais espaço para queda nesses grupos, uma vez que a população jovem já está mais escolarizada. De todo modo, temos um panorama no qual persiste mais de 20% da população de 60 anos ou mais de cor preta ou parda na condição de analfabeta”.

Taxa de analfabetismo do Nordeste é quatro vezes maior que a do Sudeste

A taxa de analfabetismo para as pessoas de 15 anos ou mais também reflete desigualdades regionais: o Nordeste tem a taxa mais alta (11,7%) e o Sudeste, a mais baixa (2,9%). No grupo dos idosos (60 anos ou mais) a diferença é maior: 32,5% para o Nordeste e 8,8% para o Sudeste.

A taxa de analfabetismo é uma das metas do atual Plano Nacional de Educação (PNE), que tem vigência até 2024. Um dos itens seria a redução da taxa da população de 15 anos ou mais para 6,5% em 2015 e a erradicação em 2024. A meta intermediária foi alcançada em 2017 na média Brasil, porém, no Nordeste e para a população preta ou parda, ainda não foi alcançada”, ressalta a coordenadora.

Entre as 27 unidades da federação, as que mostraram as três maiores taxas de analfabetismo foram Piauí (14,8%), Alagoas (14,4%) e Paraíba (13,6%). Já as três menores taxas foram as do Distrito Federal (1,9%), Rio de Janeiro (2,1%) e de São Paulo e Santa Catarina (ambos com 2,2%).

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Com informações do IBGE.

Povo Tabajara teme novo extermínio com possível aprovação do marco temporal

 

Mulheres tabajara reivindicam demarcação no ATL 2023 - Niaras Tabajara.

No site da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), as terras dos povos Tabajara na Paraíba ainda se encontram no status "em estudo". Mas após o Ministério Público Federal ajuizar no ano passado uma liminar para que a Justiça e a Funai concluam a demarcação, o processo andou. E segundo as lideranças, seria finalizado até agosto deste ano. A aprovação da tese do marco temporal, no entanto, pode interromper a conquista.

"O marco temporal é a catástrofe dos povos indígenas. Tanto daqueles que já lutavam antes da constituição, tanto daqueles que só reivindicaram depois, por todo um processo de silenciamento, por todo um processo de exclusão da sociedade. Ele vem trazer para cada um de nós a perda de direitos já garantidos", pontua Natália Tabajara, liderança do Niaras Tabajara, grupo de mulheres da Aldeia Vitória.

Nesta quarta-feira (7), o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou a votação para definir se é constitucional ou inconstitucional a tese jurídica que considera o dia 5 de outubro de 1988 - data da promulgação da Constituição - como o marco temporal de demarcação de terras indígenas.

Caso a Suprema Corte julgue constitucional a tese defendida pelo agronegócio brasileiro, centenas de grupos indígenas que foram expulsos de forma violenta de seus territórios perderão o direito à terra, como é o caso do povo Tabajara.

"A nossa cultura foi arrancada de nós. A gente foi proibido de falar a nossa língua, a gente foi proibido de pintar o nosso rosto. A gente foi proibido de colocar o nosso cocar para que não acontecesse o extermínio total. E hoje eu tenho dois filhos, Cauã e Cauê, eles já aprenderam sobre a cultura dos povos indígenas. Nós estamos aqui revitalizando", completa a indígena.

A luta pela terra

A luta dos Tabajara pela terra começou há séculos, em 1641. Foi quando a etnia recebeu dos portugueses a concessão das antigas sesmarias da Jacoca e Aratagui, no sul da Paraíba, zona de ocupação colonial mais antiga do estado. É o que consta nos estudos coordenados pelo antropólogo Fábio Mura, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Com o tempo, após serem expulsos de suas terras por usineiros e grandes latifundiários, as famílias do Povo Tabajara no estado se espalharam pelas periferias de João Pessoa ou em lotes da reforma agrária nos municípios de Conde, Pitimbu e Alhandra.

"Nossa maior luta hoje perante a sociedade brasileira é que a sociedade nos entenda como Tabajara, que foi um povo tão importante nos séculos passados. Nossos caciques, Piragibe, Arakem, Arapuã, Arcoverde, esses caciques que fundaram Nossa Senhora das Neves, que hoje é João Pessoa, e em troca recebemos três seis Marias, que é o Conde, a metade de Alhandra, e a metade de Pitimbu, e também a Ilha do Bispo. E de uma hora para outra esse povo desaparece", pontua o Cacique Ednaldo Tabajara.

O início da retomada

Em 2006, sob liderança de Ednaldo, os indígenas iniciaram a retomada do território. É neste ano que o cacique, através de um tio, passa a conhecer o Mito da Profecia, herdado dos anciãos tabajara, que dizia que um jovem iria novamente reunir o seu povo para conquistar o seu território.

Na época, o Cacique Tabajara era um jovem de 19 anos que pretendia deixar a Paraíba e partir para a Europa, para ser jogador profissional de futebol.

"Deixei de lutar meu direito pessoal para lutar no direito coletivo e não me arrependo porque através disso nós conseguimos respeito no município, no estado, no Nordeste, no Brasil . O cacique Ednaldo fundou uma aldeia, duas aldeias e três aldeias. Ele está revitalizando a língua do povo Tabajara. Ele está revitalizando a cerâmica, a cultura do povo de Tabajara e garantindo o território pro seu povo viver", relembra.

Antes da retomada, o cacique passou um longo período percorrendo as sedes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Funai e se reunindo com advogados, indigenistas e outras lideranças indígenas para tratar do reconhecimento oficial dos Tabajara como etnia.

Foi nesse contexto que o cacique liderou a entrada em uma área Tabajara onde seria construída uma fábrica de cimento pela empresa Elizabeth Cimentos. A concessão do território para o surgimento da primeira das três aldeias da etnia surge de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado entre a empresa e os indígenas.

"Nós Tabajara éramos muito presentes do século XV até o finalzinho do século XVI. Depois houve o silenciamento da gente. E depois vem o nosso ressurgimento. No nosso silenciamento, os coronéis, latifúndios que vêm de fora do Brasil, começam a tomar o território nosso. Hoje o marco temporal é muito isso. Como não vale mais nós ter língua cortada, pescoço cortado, cabeça cortada, óleo queimado e jogado em cima do nosso corpo, casa queimada, agora eles estão legalizando da forma que podem no Congresso Nacional. É uma covardia com toda a memória do ser humano dentro do Estado brasileiro", explica o cacique.

"Nós vamos voltar para a favela"

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Com informações do Brasil de Fato.