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O arcebispo Desmond Tutu durante ato de comemoração dos 60 anos da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. (FOTO/ Mike Hutchings/Reuters). |
O
falecimento do arcebispo anglicano sul-africano Desmond Tutu, em 26 de dezembro
de 2021, nos faz recordar o pouco interesse latino-americano em temas
africanos. O fato mereceu um espaço reduzido nos diários e noticiários
televisivos da região.
Noticiou-se
um tanto vagamente o falecimento de um “símbolo da luta contra o apartheid ao
lado de Nelson Mandela e ganhador do Prêmio Nobel da Paz”. No dia seguinte,
vida que segue. Não parecia que havíamos perdido um dos maiores lutadores,
pensadores e líderes religiosos de nossa época.
Estamos
longe de entender e se interessar pela África. Isto ocorre mesmo no Brasil,
país de maioria negra e com o maior contingente populacional com raízes
negro-africanas fora do continente. Que dizer de outros países da nossa região?
As
relações entre Brasil e África vêm se desfazendo nos últimos anos, enquanto os
contatos dos outros países latino-americanos com aquele continente nunca se
aprofundaram – com a notável exceção de Cuba.
Celebrar
o legado de Tutu seria um caminho simples para informar e ir além de temas como
apartheid, guerra civil, fome, novas variantes do coronavírus e golpes
militares – basicamente o que se notícia sobre o continente na imprensa
latino-americana. Em particular, seria uma forma de destacar a importância do
pensamento africano e seu impacto global.
FUNDADOR DA TEOLOGIA NEGRA AFRICANA
Tutu
foi muito mais que companheiro de Mandela na luta contra o apartheid. Trata-se
de um dos fundadores da Teologia Negra Africana, com inspiração na Teologia
Negra norte-americana, que teve como principal expoente o reverendo Martin
Luther King Jr.
Também
na Teologia da Libertação Latino-Americana, iniciada em 1968 na Conferência
Episcopal de Medellín e desenvolvida por Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff,
entre outros. O arcebispo sul-africano foi mais um a demonstrar que é possível construir
uma igreja ombro a ombro com os oprimidos.
Sobre
estas filiações, Tutu afirmou que a igreja na África deve se comprometer com a
causa da libertação. Para ele, Deus era o grande Libertador, o Deus do Êxodo
que conduziu uma turba de escravos para fora do cativeiro e os libertou.
Daí
derivou sua defesa da libertação total dos “filhos de Deus”, em nível político,
social e econômico. Enfatizando sua inspiração em fontes latino-americanas,
apontou que a teologia negra é a teologia do oprimido, uma teologia de
libertação. E foi baseado em sua teologia que o arcebispo se posicionou contra
o apartheid. Segundo ele, “a Bíblia acabou sendo o livro mais subversivo
imaginável numa situação de injustiça e opressão”.
INSPIRADOR DA MODERNA IDENTIDADE
SUL-AFRICANA
Para
o bem e para o mal, Tutu foi um dos fundadores da identidade da África do Sul
pós-apartheid, com a Comissão da Verdade e Reconciliação que ele presidiu e com
sua ideia de uma “Nação Arco-íris”.
O
que ele chamou de “justiça restaurativa” foi a base da comissão da verdade
sul-africana, pensada como elemento central da pacificação, reconstrução e
unificação do país.
Funcionando
de 1995 a 1998, ela constituiu-se numa das principais experiências mundiais de
comissões da verdade, ao condicionar a anistia a um depoimento público do
requerente, no qual a principal exigência deveria ser “contar a verdade” sobre
os crimes para os quais solicitava anistia.
O
elemento mais elogiado naquele processo foi sua condicionalidade, evitando a
oferta indiscriminada de anistia (e esquecimento) característica de casos como
o brasileiro. O ponto mais contestado foi a limitada reparação dos crimes (ao
contrário do que ocorreu em casos como o argentino), na medida em que enfatizou
a exposição pública dos violadores de direitos humanos e o registro e construção
de uma memória coletiva.
Neste
contexto, Tutu insistiu na necessidade de “perdão, mas não de esquecimento”.
Para justificá-lo, lançou mão de dois argumentos. Um se baseou em sua já
mencionada leitura de esquerda do cristianismo: a necessidade de libertação
tanto do opressor quanto do oprimido.
Outro
argumento foi apresentar a justiça restaurativa como uma “jurisprudência
tradicional africana”. Sua preocupação não passaria por retribuição ou punição,
mas por curar violações, corrigir desequilíbrios, restaurar relações rompidas.
Ela buscaria reabilitar tanto a vítima quanto o perpetrador, a quem deve ser
dada a oportunidade de ser reintegrado à comunidade que ele feriu com sua
ofensa.
A
esta necessidade de reconciliação, Tutu conectou sua ideia da África do Sul
como a “Nação Arco-Íris”, proposta associada ao multiculturalismo tão em voga
naquele momento. Esta ideia de uma nação que englobaria todas as cores sem
necessidade de que elas se diluíssem assumiu um papel importante na nova
identidade nacional, penetrando fundo na autoimagem da África do Sul dos
primeiros anos pós-apartheid.
O
pluralismo social e étnico herdado pelo país não seria um entrave para seu
desenvolvimento, mas sua maior riqueza. Tutu defendia que aquele Estado podia
se viabilizar como nação.
FORMULADOR DO UBUNTU
Outra
proposta defendida por Tutu era o ubuntu, do qual se tornou o principal
divulgador global – conectando-o a outros valores que defendeu nas últimas
décadas ao lado de personalidades como o Dalai Lama, como o ecumenismo e a
cultura de paz. Ubuntu seria uma forma de garantir a coesão de uma sociedade
profundamente dividida e desigual, marcada pela violência e pela opressão,
constituindo-se na possibilidade de convivência dos antigos opressores e
oprimidos.
Como
dito, se um dos pilares de Tutu era o cristianismo de libertação, o outro era a
herança africana na qual o ubuntu se insere. Para o arcebispo, ubuntu é um
elemento central da visão de mundo africana. Nesta concepção, a vida de todas
as pessoas é interligada, bem como a humanidade se integra à natureza e cada
geração se integra às anteriores e às que virão.
Tutu
definia o conceito através do provérbio “uma pessoa é uma pessoa através de
outras pessoas”. Para ele, “uma pessoa com ubuntu se afirma pelos outros, não
se sente ameaçada se os outros são capazes e bons; ela tem uma garantia que vem
de saber que ela pertence a um todo maior e é diminuída quando outros são
humilhados ou diminuídos, quando outros são torturados ou oprimidos, ou
tratados como se fossem menos do que são. O que desumaniza você inexoravelmente
me desumaniza”.
Tutu
entendia ubuntu também como expressão de uma nostalgia universal por um paraíso
perdido, originada na nossa expulsão do Jardim do Éden. Se a humanidade
vivencia um processo centrífugo de alienação, haveria em contrapartida uma
divina força centrípeta que impele à comunidade, à reconciliação, à justiça,
que viria desde o “princípio dos tempos”.
Tutu
levou o ubuntu para o mundo, contribuindo para sua transformação num conceito
da moda. Ubuntu inspirou sistema computacional, literatura de autoajuda,
prática de coaching e lições de empreendedorismo. Aliás, nisto se aproxima de
outro conceito original do Sul Global, o “bem viver” latino-americano. Mas,
para além de estranhas reapropriações, o sucesso global do ubuntu é mais um
indicativo da importância do pensamento de Tutu para a contemporaneidade.
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Por
Fabricio Pereira, na Folha de São Paulo e reproduzido no Geledés.