O
escritor José Lins do Rego, autor de Menino de Engenho, dá nome ao amplo espaço
cultural instalado em 1983 no bairro Tambauzinho, em João Pessoa. Lá dentro,
uma sala de concertos com capacidade para 570 pessoas lotou em duas noites
seguidas, com gente do lado de fora se queixando da falta de ingressos para ver
um artista da terra. No palco escolhido por ele, esse artista brasileiro se
reencontrou com seu público, depois de tantos desencontros com seu país.
Lá
fora, no café do outro lado da rua, Afonso, um catarinense de Chapecó de mão
boa para doces, reconheceu o cliente, um senhor, que ainda pela manhã entrou
pedindo um café e bolo. Tiraram uma foto juntos, em uma das mesas, com olhares
admirados de Edjane, a fazedora de tapioca, e Jucilia.
No
mesmo lugar, uma hora antes do início do recital, o secretário estadual da
Cultura da Paraíba, Lau Siqueira, conversava com amigos. Estava prestes a
concretizar um projeto de anos, que várias vezes esteve ameaçado de não
acontecer. "Fizemos história", diria depois. Na segunda noite, o
próprio secretário assistiu sentado no chão, como muitos.
Vários
não conseguiram, nem no chão e nem em pé. O taxista João Alberto, por exemplo,
conta que não tinha como ir retirar os ingressos. Comenta que sua esposa,
professora, nascida justamente em 1968, gostaria de assistir ao recital,
intitulado Música e Poesia da Capitania de Wanmar. Com a repercussão da
primeira apresentação, muita gente ainda foi ao teatro na segunda noite na esperança
de conseguir entradas. A organização colocou cadeiras ao lado das poltronas,
para acomodar mais pessoas, e muitos ficaram pelo chão.
Morando
nas proximidades, Tito, nascido em Santo André, no ABC paulista, há 14 anos na
capital paraibana, pôde chegar cedo para conseguir os disputados ingressos
gratuitos, que se esgotaram rapidamente. Na noite da segunda apresentação, Tito
apareceu de novo, mais informal, de bermuda e camiseta. Desta vez, pretendia
ver o recital pelo telão instalado na área externa, outra alternativa
encontrada pelo governo para que mais gente pudesse ver.
"Ele
é muito inteligente", disse, comparando Vandré ao compositor Chico
Buarque, um contemporâneo e "adversário" de festivais de música.
"Mas a pessoa tem de gostar", acrescenta, falando de uma possível
"dificuldade" para acompanhar o andamento de certas composições, como
as peças para piano, compostas em meados dos anos 1980.
A
distribuição de ingressos levou não mais do que meia hora. Muitos queriam que a
apresentação fosse no Teatro Pedra do Reino, que tem capacidade para 3 mil
pessoas, mas o local foi uma escolha do artista: o paraibano Geraldo Vandré,
que cantou profissionalmente no Brasil pela última vez em 13 de dezembro de
1968, no ginásio de esportes do Clube Recreativo Anapolino, em Anápolis
(GO).
Foi
no mesmo dia do AI-5, que marcou o início do período mais violento da ditadura.
Vandré e seu grupo na época, o Quarteto Livre (Franklin da Flauta, Geraldo
Azevedo, Naná Vasconcelos e Nelson Ângelo), tinham ainda uma apresentação
marcada para Brasília, no dia 14, que obviamente não aconteceu, Desde então,
Geraldo Vandré subiu em alguns palcos, mas sem cantar, o que só aconteceu no
Paraguai, também na década de 1980.
Às
20h47 da quinta-feira (22), 17 minutos depois do horário previsto, inteiramente
de branco e aplaudido de pé, Vandré surge ao lado da cantora e pianista
paulista Beatriz Malnic, que desde 1986 mora nos Estados Unidos e é parceira do
compositor nas cantilenas interpretadas ao piano. Ele agradece Beatriz. "Suas
mãos, seu coração e seu sentimento tornaram possível que eu pudesse assim
expressar-me", diz ao público. A mesma pianista, na época com o pseudônimo
de Ismaela, dado por Vandré, havia tocado essas mesmas peças na Biblioteca
Municipal de São Paulo, em 1987, na presença do compositor.
Mas
a primeira da noite é Canta Maltina, uma parceria com Di Melo, gravada pelo
pernambucano no álbum Imorrível, de 2015. Uma letra com palavras inventadas,
com sonoridade latina, cantada por Vandré e Beatriz.
Vandré,
82 anos, cantou esta e mais três nunca gravadas, em sua voz de timbre
preservado, com arranjos de Jorge Ribbas: Fabiana, Mensageira (para a bandeira
da Paraíba) e À Minha Pátria, novo nome da canção originalmente conhecida como
Pátria Amada, Idolatrada, Salve, Salve, composta por Vandré e Manduka e
vencedora do Festival de Água Dulce, no Peru, em fevereiro de 1972, cantada por
Manduka e pela venezuelana Soledad Bravo.
Se
é pra dizer adeus
Pra
não te ver jamais
Eu,
que dos filhos teus,
Fui
te querer demais
No
verso que hoje chora
Pra
te fazer capaz
Da
dor que me devora
Quero
dizer-te mais
Que
além de adeus agora
Eu
te prometo em paz
Levar
comigo agora
O
amor demais
Com
a exclusão da emblemática Disparada, apenas uma canção é realmente conhecida do
grande público. Mais do que um canção, já chamada de Marselhesa brasileira por
Millôr Fernandes e de hino nacional por Mário Pedrosa, atravessou gerações,
mentes e corações, com versos imortalizados desde 1968, quando, depois da
cantada para uma multidão no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, ganhou as
escolas, ruas, campos e construções.
Pra
não dizer que não falei de flores (Caminhando) é interpretada pela Orquestra
Sinfônica e pelo Coro Sinfônico da Paraíba, regidos pelo maestro Luiz Carlos
Durier, que tinha 8 anos quando a canção foi composta por Vandré. No púlpito,
ressalta a força da composição, que o tornou uma pessoa "mais
politizada". A surpresa e a maior emoção da noite virão em seguida, quando
o próprio autor começa a cantar sua obra, acompanhado pelo público. É o
primeiro registro de Vandré cantando Caminhando, no Brasil, desde 1968.
O
produtor Darlan Ferreira, outro responsável pela empreitada, traz uma bandeira
brasileira, que Vandré segura, levanta e exibe ao público, sob aplausos. À
distância, nem todos podem ver, mas o pavilhão nacional não traz os dizeres
Ordem e Progresso, mas o verso Somos Todos Iguais. Logo depois, surge o
inevitável grito "Fora, Temer", presente em todos os shows da atual
temporada de Chico Buarque.
Entre
os admiradores ou curiosos, contemporâneos de Vandré, familiares – como uma tia
de 100 anos – e vários jovens, principalmente na segunda noite. Um grupo deles
fica sentado no chão, à beira do palco, tomando vinho em garrafa plástica. Um
deles confessa seu espanto com a extensão obra do compositor. "Conforme eu
fui vendo, eu falava 'ah, a música é dele', tá ligado?", diz aos colegas,
enquanto a apresentação não começa. Desta vez, o espetáculo vai se iniciar às
20h50.
Na
primeira noite, na segunda fileira, está o governador Ricardo Coutinho (PSB),
que Vandré levará ao palco para agradecer pelo convite feito há quase três
anos. Foi em 2015 que a ideia do recital começou a criar forma. Naquele ano, o
artista voltou à Paraíba, depois de duas décadas, para ser homenageado no Fest
Aruanda, tradicional festival do audiovisual organizado no estado. Ali ele
começou a cogitar um retorno definitivo à terra natal – Geraldo Pedrosa de
Araújo Dias nasceu em João Pessoa em 12 de setembro de 1935. Saiu de lá aos 17
anos.
Enquanto
Beatriz Malnic toca as peças para piano, Vandré se afasta, olha as páginas do
roteiro, senta-se, levanta, posiciona-se à esquerda da intérprete, em pé (gesto
que não repetirá na segunda noite), sai durante quase 10 minutos. Na volta,
agradece ao secretário Lau Siqueira e sua equipe, "que me cercaram de
atenções e amizade". No recital de sexta (24), acrescentará às citações o
maestro Durier, o arranjador Ribas, a Sinfônica, o Coro, o produtor Darlan e o
violinista Alquimides Daera, outro parceiro.
Na
noite de estreia, Vandré fará um agradecimento especial a uma pessoa por quem
diz ter amizade extrema: o capitão de mar e guerra Claudio José da Matta,
reformado, que viajou de Salvador para prestigiá-lo. Uma pessoa ligada à
produção conta que o militar foi consultado informalmente sobre os dizeres da
bandeira, que veio de Campina Grande. A saudação a um oficial da Marinha, os
versos de Fabiana (em homenagem à Força Aérea) e de Marina Marinheira (para a
Marinha) certamente causará mais espanto a quem vê Vandré como um opositor das
Forças Armadas. Durante anos, ele tentou várias vezes explicar que sua música
mais célebre não era um libelo contra os militares. Definiu-a como uma "crônica
da realidade".
Foi
um evento cercado de cuidados, para satisfazer as exigências do artista. Na
véspera, um apagão que atingiu grande parte da região Nordeste levou os
organizadores a arrumar dois geradores para evitar surpresas de última hora.
Durante os ensaios dos últimos três meses, por motivos diversos, não foram
poucas as vezes em que se temeu pelo cancelamento.
Mas
aconteceu, e Vandré voltou a cantar no Brasil, com sorrisos e um pouco de
humor. Logo no começo da segunda noite, o microfone falhou e, em seguida, ele
acusou a falta do roteiro, sem deixar de ir em frente. "Ninguém tem pressa
aqui. Quem tem pressa não pode voar. É desastre na certa."
Na
véspera das apresentações, ele até participou de uma entrevista coletiva –
disse ter reservas à expressão "canção de protesto", carimbo posto
pela mídia e que marcou profundamente a sua trajetória profissional, finda em
1968. Criticou o que considera falta de espaço para a música popular nos meios
de comunicação de massa. Em outras conversas, usou expressões mais duras para
referir-se à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento de 2015,
de liberar as chamadas biografias não autorizadas.
No
final da segunda apresentação, ainda mais concorrida que a primeira, houve um
incidente, justamente na interpretação de Caminhando. Vandré acaba de agradecer
ao secretário da Cultura, ao governador, à familia, "que emprestou-me,
como sempre, o seu apoio", e a todos os profissionais responsáveis pelo
evento, revelando "orgulho e felicidade deste instante único". De
repente, um grupo abre faixa de apoio à vereadora carioca Marielle Franco,
assassinada no último dia 14. O ato surpreende a produção e irrita o artista,
que retira os manifestantes e se despede. Sai do palco às 22h25, acenando. A
polêmica, um tanto comum quando se fala em Vandré, chega rapidamente às redes
sociais.
Na
entrevista coletiva, uma das perguntas foi sobre sua tendência política.
"Na mão esquerda trago uma certeza. Na mão direita, uma garantia. Atenção:
às vezes eu troco de mão."
Ele
parece feliz, jovial. Há muitos anos, disse que aqueles que cuidam da beleza
têm função secundária na sociedade, mas observou que sem a beleza não existe
"o homem feliz".
Depois
das apresentações, recebe fãs e amigos no camarim, tirando fotos e dando autógrafos.
Em sua João Pessoa, gosta de passar boa parte do tempo olhando para o oceano,
sentado diante de teu mar, como diz no poema Isso não muda. No próximo domingo
(1º), participará do relançamento de Cantos Intermediários de Benvirá, livro de
poesias publicado no Chile em julho de 1973, um mês antes de seu retorno ao
Brasil, depois de quatro anos e meio de ausência forçada, período durante o
qual andou pela América do Sul, África e Europa, com moradia, principalmente,
no Chile e na França.
E
agora? Choveram convites para levar o "show" pelo país afora. Os
companheiros de projeto se animam. Daera tem expectativa de preparar um CD.
"Uma honra e uma alegria muito grande poder contribuir e interagir
musicalmente com o filósofo Geraldo Vandré, cuja obra de rara beleza representa
um grande amor pela arte musical, pela vida e pela pátria! Que este retorno
seja estímulo para que as muitas belas canções, ainda desconhecidas, sejam
produzidas e que encantem as novas gerações. Arte sincera em importante momento
no nosso país", escreveu Jorge Ribbas.
Mas
o artista avisou que sua volta é "circunscrita à Paraíba".
Transmitido ao vivo pela Rádio Tabajara, o recital deve virar DVD.
E aos muitos amigos que aqui vão
chegar
Procurando abrigo pra continuar,
Digam, sem temores, depois de ajudar
Que um pouco adiante, em qualquer
lugar,
Tem calor da gente e amor a esperar
Que eu levei bastante pra sempre
plantar.
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Todo de branco, Vandré se apresentou ao lado da cantora, pianista e parceira Beatriz Malnic. (Foto: SECOM/PB). |