Para
responder esta pergunta, a primeira frase que me ocorre é a resposta clássica
dada pelo grande Marc Bloch a seu neto, quando o menino lhe perguntou para que
servia a História e ele disse que, pelo menos, servia para divertir. Após 35
anos de vida profissional efetiva, como pesquisadora durante seis anos e, desde
então – 29 anos – também como docente na Universidade de São Paulo, considero
que a diversão é essencial, entendida no sentido de prazer pessoal: a melhor
coisa do mundo é fazer algo que gostamos de fato, e eu sempre adorei História,
sempre foi minha matéria preferida na escola, junto com as línguas em geral,
sobretudo italiano e português, e sempre mais a literatura que a gramática.
Mas
a História é, tenho certeza disso, uma forma de conhecimento essencial para o
entendimento de tudo quanto diz respeito ao que somos, aos homens. Os
humanistas do renascimento diziam que tudo o que era humano lhes interessava. A
História é a essência de um conhecimento secularizado, toda reflexão sobre o
destino humano passa, de uma forma ou de outra, pela História. Sociologia,
Antropologia, Psicologia, Política, todas essas disciplinas têm de se reportar
à História incessantemente, e com tal intensidade que o historiador francês
Paul Veyne afirmou, com boa dose de provocação, que como tudo era História, a
História não existia (em Como escrever a História). Quando os homens da
primeira Época Moderna começaram a enfrentar para valer a questão de uma
história secular, que pudesse reconstruir o passado humano independente da
história da criação – dos livros sagrados, sobretudo da Bíblia – eles
desenvolveram a erudição e a preocupação com os detalhes, os fatos, os
vestígios humanos – as escavações arqueológicas, por exemplo – e criaram as
bases dos procedimentos que até hoje norteiam os historiadores. Mesmo que hoje
os historiadores sejam descrentes quanto à possibilidade de reconstruir o
passado tal como ele foi, qualquer historiador responsável procura compreender
o passado do modo mais cuidadoso e acurado possível, prestando atenção aos
filtros que se interpõem entre ele, historiador, e o passado. Qualquer
historiador digno do nome busca, como aprendi com meu mestre Fernando Novais,
compreender, mesmo se por meio de aproximações. Compreender importa muito mais
do que arquitetar explicações engenhosas ou espetaculares, e que podem ser
datadas, pois cada geração almeja se afirmar com relação às anteriores
ancorando-se numa pseudo-originalidade.
Sem
querer provocar meus companheiros das outras humanidades, eu diria que a Antropologia
nasce a partir da História, e porque os homens dos séculos XVI, XVII e XVIII
começaram a perceber que os povos tinham costumes diferentes uns dos outros, e
que esses costumes deviam ser entendidos nas suas peculiaridades sem serem
julgados aprioristicamente. É justamente a partir desse conhecimento específico
que os observadores podem estabelecer relações gerais comparativas e tecer
considerações, enveredar por reflexões mais abstratas. Portanto, a História
permite lidar com as duas pontas do fio que possibilita a compreensão do que é
humano: o particular e o geral.
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Professora titular de História Moderna da Universidade de São Paulo. É autora de O Diabo e a Terra de Santa Cruz (1986) e O Sol e a Sombra (2006), entre outros livros. Organizou e foi co-autora do 1º volume de A História da Vida Privada no Brasil. |
A
História é fundamental para o pleno exercício da cidadania. Se conhecermos
nosso passado, remoto e recente, teremos melhores condições de refletir sobre
nosso destino coletivo e de tomar decisões. Quando dizemos que tal povo não tem
memória – dizemos isso frequentemente de nós mesmos, brasileiros – estamos, a
meu ver, querendo dizer que não nos lembramos da nossa história, do que
aconteceu, por que aconteceu, e daí escolhermos nossos representantes de modo
um tanto irrefletido – na história recente do país, o caso de meu estado e de
minha cidade são patéticos - de nos sentirmos livres para demolirmos monumentos
significativos, fazermos uma avenida suspensa que atravessa um dos trechos mais
eloquentes, em termos históricos, da cidade do Rio de Janeiro, o coração da
administração colonial a partir de 1763, o palácio dos vice-reis. Quando olho
para a cidade onde nasci, onde vivo e que amo profundamente fico perplexa com a
destruição sistemática do passado histórico dela, que foi fundada em 1554 e é
dos mais antigos centros urbanos da América: refiro-me a São Paulo. Se
administradores e elites econômicas tivessem maior consciência histórica talvez
São Paulo pudesse ter um centro antigo como o de cidades mais recentes que ela
– Boston, Quebec, até Washington, para falar das cidades grandes, que são mais
difíceis de preservar.
Não
acho que se toda a humanidade fosse alimentada desde o berço com doses maciças
de conhecimento histórico o mundo poderia estar muito melhor do que está. Mas a
falta do conhecimento histórico é, a meu ver, uma limitação grave e, no limite,
desumanizadora. Acho interessante o fato de muitas pesquisas indicarem que,
excluindo os historiadores, obviamente, o segmento profissional mais
interessado em História é o dos médicos. Justamente os médicos, que lidam com
pessoas doentes, frágeis e amedrontadas diante da falibilidade de seu corpo e
da inexorabilidade do destino humano. E que têm que reconstituir a história da
vida daquelas pessoas, com base na anamnese, para poder ajudá-las a enfrentar
seus percalços. Carlo Ginzburg escreveu um ensaio verdadeiramente genial, sobre
as afinidades do conhecimento médico e do conhecimento histórico, ambos
assentados num paradigma indiciário (refiro-me ao ensaio “Sinais – raízes de um
paradigma indiciário”, que faz parte do livro Mitos – emblemas – sinais).
Portanto, volto ao início, à diversão, e acrescento: o conhecimento histórico
humaniza no sentido mais amplo, porque ajuda a enxergar os outros homens, a
enfrentar a própria condição humana.