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Kmet era
uma civilização negra (Imagem disponível em:
https://afrokut.com.br/blog) |
Por
César Pereira, Colunista
No
ano de 2014 o diretor de cinema Ridley
Scott
lançou o filme Êxodo: deuses e reis cujo roteiro baseia-se no
Midrash, conjunto de textos exegéticos sobre a Torá hebraica e no
próprio livro do Êxodo da Bíblia cristã. O filme reconta a
história da liderança de Moisés enquanto luta para retirar o povo
Hebreu da escravidão no Egito do século XIV a.C.
Logo
após seu lançamento o filme se tornou alvo de críticas tanto por
parte dos cinéfilos mais inveterados que não gostaram do ritmo da
ação, pois o filme procura centrar sua atenção na história de
vida do patriarca Moisés e adota para isto a perspectiva
cinematográfica da jornada do herói, que consiste em acompanhar ao
longo do filme o amadurecimento do protagonista que deverá ter um
papel decisivo até o final deste.
Os
críticos de cinema analisaram o filme como uma obra irregular, pois
propõe-se a fazer-se um épico, mas não desenvolve os elementos
míticos que o enredo sugere, nem tampouco os fatos históricos que o
roteiro levanta. Do ponto de vista histórico segundo esses críticos
Ridley
Scott contenta-se em ser declaradamente parcial representando os
egípcios como seres humanos cruéis que massacraram e escravizaram
os hebreus (a comparação com o holocausto nazista é inevitável
segundo os críticos de cinema), e do ponto de vista religioso o
filme procura esvaziar o invólucro mitológico que fundamenta a
narrativa bíblica da história de Moisés.
Um
dos motivos pelos quais o governo da República Árabe do Egito
proibiu a exibição do filme no país foi precisamente esta
inexatidão histórica, isto é, a representação do Egito Antigo
como um estado nazista que perseguia e escravizava os hebreus para
obrigá-los a erguer seus monumentos. O outro motivo foi
especificamente religioso, pois o filme procura impor uma imagem
estereotipada de Moisés que é considerado um importante profeta de
Allah, chamado de Musa no Alcorão. Nos demais países mulçumanos
onde proibiu-se Êxodo: deuses e reis os argumentos foram
semelhantes, como no Marrocos onde se questionou a representação da
voz de Deus através de uma criança e na Arábia Saudita que proibiu
o filme pelo sionismo exagerado em que se fundamenta em detrimento
dos egípcios representados como homens cruéis e antissemitas.
Alguns
críticos de cinema e historiadores em geral chamaram a atenção
para o profundo anacronismo do filme, pois além da evidente
comparação dos egípcios antigos com os governantes nazistas da
década de 1930 e 1940 o elenco é todo composto por atores brancos e
logo percebeu-se o quanto é falsa essa representação do Egito
Antigo como uma civilização branca:
Um
problema marcante, porém, já começa a se estabelecer: não vemos
sequer um negro em cena, sequer pessoas com pele mais escurecida.
Estamos sim, no Norte da África, mas o “embranquecimento” dessa
classe dominante só ocorreria posteriormente no período Ptolomaico,
cuja linhagem real passa a ser, verdadeiramente, de origem grega.
Esse exagero do caucasiano gerou, é claro, acusações de uma
discriminação por parte da produção, mas, além disso, quebra o
já citado realismo que o longa-metragem almeja. Por mais que
John Turturro desempenhe em satisfatório papel como o Faraó, não
conseguimos acreditar que ele realmente possa ser de naturalidade
egípcia. (CORAL, 2014, disponível em:
https://www.planocritico.com/critica-exodo-deuses-e-reis/).
Esse
embranquecimento do Egito Antigo comum no cinema, séries e
telenovelas não é gratuito, isto é, não é destituído de
intensões políticas e de objetivos de dominação cultural. Um
Egito Antigo branco agrada a elite intelectual do mundo todo,
principalmente a europeia e norte-americana. Embranquecer o Egito
Antigo se tornou prática cultural comum na Europa a partir do século
XVIII e se intensificou no XIX ganhado contornos definitivos através
da literatura, teatro, historiografia, pintura e nos séculos XX e
XXI através da arqueologia, do cinema e da televisão.
O
Egito Antigo branco foi uma exigência ideológica da
intelectualidade ocidental eurocentrista para aceitar a grandeza e
profundidade daquela civilização que é uma das mais antigas da
bacia do Mediterrâneo e que influenciou outras grandes sociedades
que nesta região também se desenvolveu como a dos hebreus, gregos,
macedônios, romanos.
A
partir do século XVIII o discurso sobre as raças que antes
pertencia principalmente a religião cristã que desde a Idade Média
o utilizava para separar a cristandade europeia dos outros povos
(mulçumanos do norte da África e Oriente Médio, negros do
continente africano e indígenas da América), transfere-se para o
campo filosófico e aí começa a se desenvolver o conceito das três
raças: branca, negra e indígena (amarela). Os filósofos
iluministas preocuparam-se em estabelecer quais as qualidades
essenciais desses grupos étnicos, definir quais características
tornavam os europeus brancos diferentes dos outros povos e como tais
caracteres tornavam os brancos superiores aos africanos, asiáticos e
ameríndios.
Estabeleceu-se
então a ideia de uma superioridade europeia com base no ideal da
racionalidade superior do branco. A razão passa a ser um
qualificativo essencial para distinguir o homem civilizado, para o
filósofo Emanuel Kant essa razão impõe ao ser humano a necessidade
de separar-se da natureza e buscar o esclarecimento, no entanto esse
homem do esclarecimento não é qualquer homem, este é um europeu
branco educado nas academias científicas, de artes e filosofia da
Europa.
Segundo
este filósofo o homem branco aprendeu através do uso da razão a
controlar o ambiente e a utilizar a natureza a seu favor, sendo
assim, este homem do esclarecimento é o único capaz de protagonizar
a história universal e constituir uma civilização. Os outros povos
e em especial os negros eram incapazes de se desvencilharem do
ambiente e vivendo nele imersos não possuíam uma razão esclarecida
e, portanto, era-lhes impossível criar uma civilização o que os
impedia de ter uma história.
Para
Kant as outras raças viviam imersas no ambiente e raça negra
segundo ele:
Os
negros da África, por natureza, não têm nenhum sentimento que se
eleve acima do pueril. O senhor Hume desafia quem quer que seja a
citar um único exemplo de um negro demonstrando talento e afirma que
dentre as centenas de milhares de negros que são transportados de
seus países para outros, mesmo dentre um grande número deles que
foram libertados, ele nunca encontrou um só que, seja em arte, seja
nas ciências, ou em qualquer outra louvável qualidade, tenha tido
um papel importante, enquanto que dentre os brancos, constantemente
ele constata que, mesmo se nascidos das camadas mais baixas do povo,
estes sempre se elevam socialmente, graças a seus dons superiores,
merecendo a consideração de todos. Tanta é a diferença essencial
entre estas duas raças; ela parece também tão grande no que
concerne às capacidades quanto segundo a cor. A religião
fetichista, largamente difundida entre eles, talvez seja uma espécie
de idolatria que se enraíza tanto na puerilidade quanto parece
possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, um chifre de
uma vaca, um búzio, ou qualquer outra coisa ordinária, desde o
instante em que esta coisa seja consagrada por certas palavras, é um
objeto de veneração e invocada em juramentos. Os negros são muito
vaidosos, mas à maneira negra, e tão tagarelas que é preciso
dispersá-los a golpes de porrete. (KANT,2014).
Nesta
concepção o filósofo iluminista já constrói parte do argumento
que nos séculos será utilizado pelo neocolonialismo europeu para
justificar sua ação dominadora sobre a África. Ao argumentar que o
ambiente onde vivem os negros oblitera suas capacidades intelectuais,
mas desenvolve exclusivamente seu porte físico, Kant aproxima os
povos de pele escura dos animais irracionais. Para Kant o que se
sobressai em negro é sua corporeidade, assim por não ter uma
racionalidade desenvolvida ele é indolente e desocupado, incapaz de
construir uma sociedade organizada e racionalizada, e essencialmente
privado de natureza humana, isto é as características fundamentais
de um ser humano (razão, história e civilidade).
Com
estes argumentos a intelectualidade europeia subtrai a história e a
civilização da África. Para os filósofos do século XIX e os
historiadores deste século o continente africano não possuía
história porque nessa época a história era o progresso da
civilização e os povos africanos eram incapazes de produzir uma
civilização, pois não possuíam a capacidade de raciocínio claro,
uma vez que seu pensamento estava envolto no misticismo, fetichismo e
irracionalidade.
Ao
se deparar com as maravilhas e grandezas da civilização egípcia
antiga, (monumentos, riquezas, escrita, literatura, filosofia,
medicina, ciência, arte, arquitetura, sistema político e
religioso), essa intelectualidade europeia se impôs um dilema: se
aceitasse o Egito Antigo como uma civilização negra teria que
admitir a racionalidade dos grupos étnicos não-brancos e dos povos
não-europeus; se admitissem haver razão, história e civilização
nos negros teriam que estender o conceito de humanidade e natureza
humana a todos os indivíduos em todos os continentes e isto tornaria
as conquistas coloniais europeias injustificadas.
Sendo
assim, as academias, a ciência, a elite, os filósofos,
antropólogos, sociólogos, historiadores, políticos, escritores,
passaram a construir um vastíssimo arcabouço discursivo para impor
ao continente africano uma não-história e a impossibilidade dos
seus povos criarem civilizações:
a
África propriamente dita, tão longe quanto a história registra,
conservou-se fechada, sem laços com o resto do mundo; é a
terra do ouro, debruçado sobre si mesma, terra da infância que além
do surgimento da história consciente, está envolvida na cor negra
da noite...[...] O que caracteriza os negros, é precisamente o fato
de que sua consciência não tenha ainda chegado à intuição de
nenhuma objetividade firme, como por exemplo Deus, a Lei, onde
o homem se sustentasse na sua vontade, possibilitando assim a
intuição do seu ser... Como já dito, o negro representa o homem
natural, em toda sua selvageria e sua petulância; é preciso fazer
abstração de qualquer respeito e qualquer moralidade, do que se
chama sentimento, se se deseja de fato conhecê-lo; não se pode
encontrar nada nesse caráter que possa lembrar o homem. (HEGEL,
1987).
Na
prática o que está expresso acima é uma corroboração apressada
do pensamento de Emanuel Kant acima citado. Para Hegel assim como
para Kant é impossível encontrar a civilização no continente
africano, afirma-se assim a superioridade do homem europeu e o
destino dos negros é aceitarem a dominação branca, pois a Europa é
o berço da lei, da religião, da filosofia, é onde a razão
universal habita e onde se realiza o movimento da história,
Foram
ideias como esta que levaram ao embranquecimento do Egito Antigo a
partir do Iluminismo, passando pelo Positivismo, o historicismo, o
darwinismo social, o imperialismo, as concepções eugenista do final
do século XIX e primeira metade do século XX.
Ao
longo do século XIX a historiografia, a filosofia, a literatura e
arte foram subtraindo a negritude do Egito Antigo. Através da arte a
representação dos egípcios da antiguidade foi se embranquecendo, a
pele cada vez mais pálida dos faraós e da nobreza egípcia se
impunha como característica fenotípica essencial daquele povo
antigo. Rapidamente a historiografia foi racializando a história do
Egito Antigo, e essa sociedade passou a ser compreendida como uma
extensão do mundo semítico (hebreu e mesopotâmico) como também
grego (macedônico e ptolomaico) e finalmente romano.
Segundo
Paula (2013, p. 26), é possível verificar que, na Antiguidade, os
povos não eram categorizados coo raças, mas sim por sua origem
tribal, isto quer dizer que não se levava em conta a cor da pele dos
indivíduos que compunham um reino, um império, uma cidade-estado,
uma sociedade. Partindo disso, Paula (2013, p. 26) passa a argumentar
que a aplicação da cor da pele para classificar os povos aparece na
Idade Média, com o objetivo dos católicos em reafirmar a
cristandade a partir uma matriz ocidental e branca. Desse modo, Paula
(2013, p. 27) aponta que é a partir desse período depois de alguns
séculos seguintes que passa a se rotular um viés teológico
procurando esclarecer a condição do não-europeu, especialmente dos
negros e dos indígenas. Como já dissemos foi com o iluminismo no
século XVIII, que a questão vai deslocar-se para o campo da
filosofia e aí a concepção de raça passa a ser utilizada na
separação da humanidade em três, o que Paula (2013, p. 27)
ressalta como o fator que viabilizará uma hierarquização racial.
Essa hierarquização, no século XIX, adquire um valor científico
ratificando o racismo estrutural.
A
civilização egípcia que brota das páginas dessa historiografia
racializada é a de um Egito Antigo branco e semítico. De fato, como
sugere Paula (2013) não podemos definir o Egito Antigo como uma
civilização negra partindo das nossas perspectivas de raça e etnia
atuais, mas não se pode adotar uma suposta neutralidade sobre as
características fenotípicas dos antigos egípcios.
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Figura 1: Love's
Labour Lost (Edwin Long)
- Fonte:
Imagem elaborada pelo autor. |
Sabemos
pela autorrepresentação que os próprios egípcios antigos faziam
de si que eles não tinham a pele clara tal como aparece nas
representações europeias dos séculos XVIII e XIX, como também nas
imagens veiculadas no cinema e na televisão nos séculos XX e XXI.
Se não podemos classificar os egípcios antigos como negros, uma vez
que esta categoria só nasceu com os discursos raciais do Iluminismo,
mas certamente é possível concluir que estes tivessem a pele
escura, preta.
Contra
o embranquecimento do Egito Antigo e a invenção de uma civilização
egípcia semítica levantou-se o historiador do século XX Cheikh
Anta Diop. Foi graças as suas pesquisas, debates e textos que a
partir da década de 1950 começou-se a questionar a visão
eurocêntrica sobre o antigo Egito. No seu livro Nações
negras e cultura: Da antiguidade negra egípcia aos problemas
culturais da África negra de hoje
cuja publicação foi feita em 1954 o historiador sustenta a origem
africana dos egípcios e cor preta de suas peles.
Com
base em fontes históricas e diversos textos da Antiguidade
(incluindo autores bíblicos e documentos gregos antigos), como
também as obras de arte egípcias compreendendo variados períodos,
fazendo uso de análises comparativas (totemismo, circuncisão,
realeza, cosmogonia, organização social, matriarcado), Diop vai
desconstruindo a perspectiva eurocêntrica de um Egito Antigo branco
cujas origens históricas remontava aos povos semitas da Mesopotâmia.
O
historiador e filósofo senegalês baseia-se também em argumentos
linguísticos para sustentar as características fenotípicas da pele
preta, tais argumentos são por exemplo, a existência de um conceito
pelo qual os próprios egípcios se representavam, KMT, que
significaria na interpretação paleolinguística de Diop preto/do
carvão.
Ele
também faz uso de estudos históricos e antropológicos sobre o
povoamento da África a partir do vale do Nilo contrapondo-se assim a
tese criada no século XIX segundo a qual os egípcios da antiguidade
descendiam de povos semitas que teriam migrado do Oriente Médio para
o Vale do Rio Nilo.
Os
questionamento e argumentos utilizados por Diop no seu livro e
posteriormente incluídos na coletânea História Geral da África,
livro editado pela Unesco e traduzido em dezenas de línguas levaram
vários historiadores a despertarem sua atenção para a questão do
embranquecimento proposital e ideológico do Egito Antigo. Mesmo
embasado em sólidos argumentos científicos e filosófico, bem como
em uma vasta documentação histórica a tese de Cheik Anta Diop não
deixou de ser deliberadamente sabotada pelas academias eurocêntricas,
pela historiografia e a arqueologia racista.
Segundo
estes estudiosos brancos as pesquisas de Diop não podem ser
admitidas como contendo verdades históricas porque a sua tática de
afirmar uma civilização egípcia negra é incorreta uma que segundo
eles os egípcios antigos não podem ser classificados como
pertencendo a uma raça. Evidentemente que este não é o objetivo de
Diop, pois ele não afirma serem os egípcios da Antiguidade um povo
de raça negra, mas acima este historiador propõe a localização do
Egito Antigo e dos povos que habitaram este território na África.
Para
Cheik Anta Diop, bem como para outros historiadores negros que
definem o Egito Antigo como uma civilização africana não é
possível que as terras do Vale do Rio Nilo tenham sido povoadas,
habitadas, cultivadas, por povos não-africanos, isto é, a origem
dos povos que habitaram o Egito na Antiguidade é o próprio
continente africano e como tal, sendo as populações deste
continente negras, isto é, pretas, necessariamente a pele dos
antigos egípcios teria de ser definida como sendo preta.
De
acordo com os estudos de Diop era como pretos que os egípcios se
viam, pois, a palavra Kṃt com
a qual se identificavam na Idade Antiga significando preto/do carvão
referia-se a cor de sua pele:
Portanto,
se a humanidade teve origem nos trópicos, em tomo da latitude dos
Grandes Lagos, ela certamente apresentava, no início, pigmentação
escura, e foi pela diferenciação em outros climas que a matriz
original se dividiu, mais tarde, em diferentes raças; havia apenas
duas rotas através das quais esses primeiros homens poderiam se
deslocar, indo povoar os outros continentes: o Saara e o vale do
Nilo. (DIOP, 2012).
Ainda
na Antiguidade o historiador grego Heródoto ao descrever os egípcios
o fez em termos que é impossível não deixarmos de estar de acordo
com Diop “De minha parte considero os Kolchu uma colônia do Egito,
porque como os egípcios eles têm a pele negra e cabelo crespo”.
Já o filósofo Aristóteles refere-se aos egípcios antigos nesses
termos:
Aqueles
que são muito negros são covardes como, por exemplo, os egípcios e
os etíopes. Mas os excessivamente brancos também são covardes, com
podemos ver pelo exemplo das mulheres; a coloração da coragem está
entre negro e o branco. (ARISTÓTELES, 2011)
Se
não bastasse a descrição que os textos antigos fazem dos egípcios
como pretos também temos as obras de arte que eles próprios criaram
representando a si mesmos.
Nessas
imagens a pele dos camponeses, soldados, da realeza, do faraó,
sacerdotes, nunca aparece representada como pálida. Os pintores
procuravam pigmentos escuros, marrons, tons que jamais demonstram
proximidade com a pele clara. Os cabelos são crespos, lábios e
narizes grossos, maçãs do rosto volumosas, todas elas são
caracteres predominantes em pessoas negras.
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Figura 2: Cena
de banquete da capela do tumulo de Nebamun, Egito, 1350 a. C. Fonte:
Imagem elaborada pelo autor. |
Entre
a figura 1 que é uma representação europeia da corte egípcia e a
figura 2 que é uma pintura de um artista do Egito Antigo da corte de
uma rainha egípcia podemos observar diferenças radicais. Enquanto
as mulheres que aparecem na figura 1 são pálidas, delicadas,
lânguidas, simulando uma sensualidade idealizada pelos europeus no
Oriente, as mulheres que foram pintadas na figura 2 têm os cabelos
crespos, a pele escura, os traços do rosto são semelhantes aos das
mulheres pretas da África e estas aparecem em pleno seu vigor
feminino, são mulheres ativas e jamais passivas como sugere a figura
1.
Estamos
aqui nesta figura 2 evidentemente diante de pessoas pretas, esta
imagem foi produzida por um artista do Egito Antigo e como tal fica
evidente que ele não representou as nobres egípcias, suas servas e
servos como pessoas brancas, escolheu tons escuros e traços
negroides para representá-las.
Assim
como observamos as características da negritude na pintura dos
egípcios antigos também podemos observá-la nas esculturas e
máscaras mortuárias.
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Máscara funerária
de Tutancâmon,
ouro, pedras semipreciosas e pasta de vidro colorido, 54 cm de
altura, cerca de 1350 a. C. Conservada no Museu Egípcio, Cairo,
Egito. (Fonte: Reprodução da Internet). |
Lábios
grossos, nariz volumoso, maçãs do rosto salientes, esta é a
representação artística do faraó Tutancâmon feita em por volta
do século XIV a.C., por um artista da XVIII dinastia. Todas essas
representações bem como os textos da antiguidade e os estudos
realizados nas décadas de 1950 e 1960 por Cheik Anta Diop nos levam
a acreditar que os antigos egípcios eram pessoas de pele preta e que
a civilização egípcia foi erguida e sustentada por pessoas negras.
Foi
essa certeza que levou ao embranquecimento do Antigo Egito. Com o
objetivo de dominar culturalmente, politicamente e economicamente os
outros povos os europeus negaram a estes uma história, negaram que
eles possuíssem humanidade ou mesmo natureza humana. Procurando se
impor como dominadores os europeus estabeleceram que somente pessoas
brancas poderiam construir civilizações e participar da história,
testemunhando a grandeza do Egito Antigo não podiam admitir que
pessoas de pele preta, que homens e mulheres negros tivessem a
capacidade de erguer um império tão poderoso e estável, uma
sociedade tão bem estruturada quanto a deles ou até mesmo mais que
aquelas que existiram na Europa.
Embranquecer
o Egito Antigo foi uma estratégia política e ideológica, funcional
tão bem que hoje até mesmo a elite intelectual da própria
República Árabe do Egito se recusa a aceitar a negritude dos
antigos habitantes do seu território.
Essa
negação ficou expressa na polêmica causada pela série Rainhas
Africanas disponibilizada em 2023 pela plataforma de streaming
Netflix. Um dos episódios da série foi sobre Cleópatra e a
produtora do programa Jada
Pinkett Smith escolheu a atriz Adele James, negra, para interpretar a
rainha do período Ptolomaico. Bastou apenas isto para uma enorme
controvérsia erguer-se, intelectuais das universidades egípcias e
fora do Egito apressaram-se em ir a público afirmar que a série
estava sendo anacrônica pois segundo eles Cleópatra era uma grega
e, portanto, branca.
A
imagem de Cleópatra como rainha branca do Egito ficou gravada no
imaginário popular graças o cinema. Na década de 1960 a atriz
Elizabeth Taylor interpretou a rainha no filme Cleópatra, a rainha
do Nilo e foi esta representação que consolidou definitivamente a
imagem da rainha grega, da rainha branca e voluntariosa que governou
o Egito.
As
representações do Egito Antigo como habitado por pessoas brancas e
até mesmo dos deuses egípcios como entidades brancas prolifera-se
no cinema, na literatura, nas artes em geral, jogos de RPG,
videogames e na internet. Os livros didáticos de história
distribuídos vendidos pelas editoras ou distribuídos nas escolas
também repercutem este estereótipo ideológico e falacioso.
Um
filme de grande sucesso de público que arrecadou milhões de dólares
no mundo inteiro foi Os deuses do
Egito do diretor Alex Proyas,
lançado em 2016, o roteiro narra um episódio da mitologia egípcia,
a guerra entre o deus Set (deus da guerra e do caos), seu irmão
Osíris (deus da fertilidade) e Hórus (deus do sol, da luz).
Narra-se neste mito como Set matou Osíris e se apropriou do governo
do mundo e como Hórus passou a combater o mal Set para restituir a
ordem na terra.
Mais
uma vez o diretor optou por um elenco de atores brancos que empobrece
o filme e reforça os estereótipos de embranquecimento do Egito
Antigo que vem sendo alimentado e retroalimentado desde o século
XVIII.
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Figura 3: Cena
do
Filme
Deuses do Egito – Fonte: Criação do autor. |
A
manutenção desses estereótipos reforça o racismo estrutural, pois
ao subtrair dos pretos a possiblidade de possuírem uma história de
terem protagonismo histórico, reforça o poder do branco através de
discursos e narrativas que se estabelecem como práticas culturais de
controle social, econômico, político e ideológico.
Um
filme como Deuses do Egito não
é somente um produto da indústria cultural ele veicula para milhões
de pessoas o discurso de poder hegemônico da branquitude. O Egito
Antigo negro é um conceito é uma categoria histórica que ainda
incomoda toda uma elite intelectual eurocêntrica.
REFERÊNCIAS
Aristóteles,
Da fisionomia,
São Paulo, Edipro, 2020.
DIOP,
Cheikh Anta. Contribuciones
culturales de África y sus perspectivas . IN:KOHN, Hans; SOKOLSKY,
Wallace. El nacionalismo africano em el siglo XX.
Buenos Aires: Editorial Paidos, 1968. em: 01 de maio de 2020.
Heródoto,
História,
São Paulo, Iluminuras, 2002.
Kant,
Emmanuel. Observações
a respeito do belo e do sublime,
Petrópolis, Vozes, 2012.
PAULA,
Benjamin Xavier de. A educação
para as relações etnico-raciais e o estudo de história e cultura
da áfrica e afro brasileira: formação, saberes e práticas
educativas. 2013. 346 f.
Tese (Doutorado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia, 2013. Disponível em:
http://clyde.dr.ufu.br/handle/123456789/13652.