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Filosofo pediu "cachê mínimo" para fazer conferência no
Brasil. Arquivo - 11.05.1996 |
Se
fosse verão, com o Píer de Ipanema fazendo as vezes de cenário, a sunga usada
pelo filósofo Michel Foucault, em maio de 1973, poderia ter antecipado o
estardalhaço causado, em 1980, pela tanga de crochê do ex-deputado Fernando
Gabeira no Posto Nove. O francês, porém, chegou ao Rio no outono e escolheu as
areias do Leme para mergulhar os pés. E, assim, passou desapercebido.
Já
o ciclo de conferências que ele fez à época, na PUC-Rio, causou frisson e
produziu um valioso debate em um período de silenciamento forçado pela ditadura
militar. Quarenta anos depois, a universidade da Gávea promove um colóquio,
nestas terça e quarta-feiras, com entrada franca, para discutir os reflexos
daqueles cinco dias de troca com um dos grandes pensadores da
contemporaneidade, morto em 1984, aos 57 anos, em decorrência de complicações
causadas pela AIDS.
Então
chefe do Departamento de Letras e Artes da PUC-Rio, o escritor Affonso Romano
de Sant’Anna fez o convite ao filósofo, que o aceitou prontamente, mas lembra
que, até o último momento, não se sabia se Foucault compareceria ao evento:
—
O SNI (Serviço Nacional de Informações) e o Dops (Departamento de Ordem
Política e Social) faziam uma certa pressão. Havia muitos boatos de que,
talvez, o SNI não o deixaria falar. Vivíamos, afinal, em um regime de repressão.
E o Departamento de Letras, ainda assim, estava fazendo uma revolução, pois a
vinda de Foucault fazia parte de um programa muito amplo, por meio do qual a
PUC virou um lugar de debate. E Foucault veio para falar sobre a verdade, uma
coisa que incomodava.
Segundo
o escritor, Foucault, que, em sua extensão produção teórica, tratou, por
exemplo, da associação entre o poder e o saber nas relações sociais, analisando
os micropoderes disciplinares exercidos instituições como prisões, hospitais,
fábricas e escolas, mostrou-se muito generoso ao vir ao Brasil — país que
visitou cinco vezes, entre 1965 e 1976, para ministrar cursos e palestras em
universidades como a PUC-Rio e a USP, além de instituições de Salvador, Recife
e Belém. Apesar de já ter publicado livros como “Doença mental e psicologia”,
“As palavras e as coisas” e “A arqueologia do saber”, pediu, de acordo com
Sant’Anna, um “cachê mínimo” fazer as conferências.
Foucault,
então com 47 anos, só avisou que havia chegado ao Brasil dias depois, lembra
Sant’Anna. Antes, foi conhecer a Lapa, onde vivia um amigo que morara na
França. O bairro, na época em ritmo de decadência, era costumeiramente visitado
pelo filósofo em suas vindas ao Rio. Em 1973, além da área central da cidade,
ele circulou em jantares, como o promovido pelo próprio diretor do Departamento
de Letras da PUC-Rio, e ficou hospedado no Hotel Sol Ipanema, estadia paga com
o dinheiro arrecadado no ciclo de conferências. A cobrança de ingresso, porém,
não impediu a imensa procura.
—
Muita gente compareceu. Tanta que nem cabia no auditório. Havia uma excitação
muito grande. Ele veio falar sobre asilo, sobre o lugar do louco, num regime
ditatorial, dentro de uma universidade católica. Naquele momento, o
Departamento de Letras era muito interdisciplinar e tinha como política
discutir a cultura brasileira, não apenas a literatura — recorda Sant’Anna,
contando que a plateia assumiu uma atitude de certa referência diante do
pensador francês, classificado como um “hábil conferencista”.
O
mesmo não pode ser dito sobre o debate promovido ao fim do ciclo de
conferências, organizado por Sant’Anna e aberto apenas para convidados. O
evento reuniu gente como os psicanalistas Hélio Pellegrino — com quem ele
travou um embate sobre a questão do Édipo — e Samuel Chaim Katz, o filósofo
Roberto Machado e o crítico literário Luiz Costa Lima. Todo o material foi
gravado e virou o livro “A verdade e as formas jurídicas”, cujos direitos
autorais foram cedidos por Foucault à PUC-Rio. A obra, inúmeras vezes editada,
ganha amanhã mais uma reedição.
Hoje
responsável pelo Departamento de Letras da PUC-Rio, o professor Karl Eri
Scholhammer observa que o colóquio de hoje e amanhã objetiva discutir o impacto
causado pela visita de Foucault, que foi além dos muros da instituição e
reverberou em inúmeras áreas do conhecimento além da Filosofia, como o Direito,
a Educação, a Arquitetura e a Psicologia. Por isso, os participantes do evento
são de áreas igualmente múltiplas. Entre eles, figuram Sant’Anna, Erik, os
filósofos Mathieu Potte-Bonneville (Colégio International de Filosofia) e Peter
Pál Pelbart (PUC-SP), o doutor em Comunicação Paulo Vaz (UFRJ), a socióloga
Vera Malaguti (Uerj) e a doutora em Educação Rita Cesar (UFPR).
—Vamos
dar um relato de como tem sido a presença dos estudos de Foucault dentro de
várias disciplinas nas últimas quatro décadas. Para nós, é muito importante
comemorar uma iniciativa da PCU-Rio, que, em plena ditatura militar, foi, de
certa maneira, audaz – diz Erik, destacando que o pensamento do francês,
nascido em 1926, está no currículos básicos de quase todas as disciplinas de
Ciências Sociais e Humanas.
Para
a área de educação, avalia Erik, o filósofo francês trouxe uma contribuição
particularmente importante, ao pensar sobre as condições e possibilidades da
produção de conhecimento:
—
Ele questiona como o saber é produzido discursivamente e quais são os
condicionantes históricos, sociais e políticos para que alguma coisa seja
conhecida. A educação aproveita, em primeira instância, a contribuição de Foucault
na medida em que ela se conscientiza do seu próprio papel de produtora do conhecimento
passado aos alunos.
As
palestras proferidas no colóquio de logo mais serão disponibilizadas,
posteriormente, no portal da PUC-Rio. O evento começa às 9h, no auditório do
Departamento de Direito, no Edifício Amizade, Ala Frings, 6º andar.
Com
informações do O Globo