Em
tempos de golpe de estado, de retirada generalizada de direitos sociais, quando
velhos homens ricos e brancos assaltam o poder central sem nenhum
constrangimento, nada mais atual que explorar os sentidos da maior de todas as
permanências da história do Brasil: a característica escravocrata da sociedade,
das relações sociais e das formas em que o poder se estabelece.
Do
Blog Negro Belchior - Não seria
absurdo dizer que, se comparada à realidade da época, Temer, seus ministros e
as forças políticas que representam, se assemelham profundamente à elite
agrária resistente aos ideias liberais dos abolicionistas.
129
anos depois, a luta por liberdade continua a fazer muito sentido, bem como nos
mostra o registro histórico de Abdias do Nascimento, referência da luta negra
no Brasil, em seu discurso no Senado Federal. E mais abaixo, a lembrança mágica
de um encontro com o mestre Abujamra e o menino prodígio Gustavo Santos, no
inesquecível Provocações, da TV Cultura. O Programa foi ao ar em 13 de Maio de
2015, pouco antes da morte do apresentador. Uma honra.
Discurso proferido pelo Senador
Abdias Nascimento por ocasião dos 110 anos da Abolição no Senado Federal.
O
SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) – Sr.
Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum, inicio este meu
pronunciamento.
Na
data de hoje, 110 anos passados, a sociedade brasileira livrava-se de um problema
que se tornava mais agudo com a proximidade do século XX, ao mesmo tempo em que
criava condições para o estabelecimento das maiores questões com que
continuamos a nos defrontar às vésperas do Terceiro Milênio. Assim, a 13 de
Maio de 1888, a Princesa Isabel, então regente do trono em função do
afastamento de seu pai, D. Pedro II, assinava a lei que extinguia a escravidão
no Brasil, pondo fim a quatro séculos de exploração oficial da mão-de-obra de
africanos e afro-descendentes nesta Nação, mais que qualquer outra, por eles
construída.
Durante
muito tempo, a propaganda oficial fez desse evento histórico um de seus maiores
argumentos em defesa da suposta tolerância dos portugueses e dos brasileiros
brancos em relação aos negros, apresentando a Abolição da Escravatura como
fruto da bondade e do humanitarismo de uma princesa. Como se a história se
fizesse por desígnios individuais, e não pelas ambições coletivas dos
detentores do poder ou pela força inexorável das necessidades e aspirações de
um povo.
A
tentativa de vender a abolição como produto da benevolência de uma princesa
branca é parte de um quadro maior, que inclui outras fantasias, como a
“colonização doce” – suave apelido do massacre perpetrado pelos portugueses na
África e nas Américas – e o “lusotropicalismo”, expressão que encerra a
contribuição lusitana à construção de uma “civilização” tropical supostamente
aberta e tolerante. Talvez do tipo daquela por eles edificada em Angola,
Moçambique e Guiné-Bissau, quando a humilhação e a tortura foram amplamente
usadas como formas de manter a dominação física e psicológica de europeus sobre
africano.
Na
verdade, o processo que resultou na abolição da escravatura pouco tem a ver com
as razões humanitárias – embora essas, é claro, também se fizessem presentes. O
que de fato empurrou a Coroa imperial a libertar os escravos foram, em primeiro
lugar, as forças econômicas subjacentes à Revolução Industrial, capitaneadas
por uma Inglaterra ávida de mercados para os seus produtos manufaturados.
Explicam-se desse modo as pressões exercidas pela Grã-Bretanha sobre o Governo
brasileiro, especialmente no que tange à proibição do tráfico, que acabaria
minando os próprios alicerces da instituição escravista. Outro fator
fundamental foi o recrudescimento da resistência negra, traduzido no pipocar de
revoltas sangrentas, com a queima de engenhos e a destruição de fazendas, que
se multiplicaram nas últimas décadas do século XIX, aumentando o custo e
impossibilitando a manutenção do sistema.
Foi
assim que chegamos ao 13 de maio de 1888, quando negros de todo o País – pelo
menos nas regiões atingidas pelo telégrafo – puderam comemorar com euforia a
liberdade recém-adquirida, apenas para acordar no dia 14 com a enorme ressaca
produzida por uma dúvida atroz: o que fazer com esse tipo de liberdade? Para
muitos, a resposta seria permanecer nas mesmas fazendas, realizando o mesmo
trabalho, agora sob piores condições: não sendo mais um investimento, e sem
qualquer proteção na esfera das leis, o negro agora era livre para escolher a
ponte sob a qual preferia morrer. Sem terras para cultivar e enfrentando no
mercado de trabalho a competição dos imigrantes europeus, em geral subsidiados
por seus países de origem e incentivados pelo Governo brasileiro, preocupado em
branquear física e culturalmente a nossa população, os brasileiros descendentes
de africanos entraram numa nova etapa de sua via crucis. De escravos passaram a
favelados, meninos de rua, vítimas preferenciais da violência policial,
discriminados nas esferas da justiça e do mercado de trabalho, invisibilizados
nos meios de comunicação, negados nos seus valores, na sua religião e na sua
cultura. Cidadãos de uma curiosa “democracia racial” em que ocupam,
predominantemente, lugar de destaque em todas as estatísticas que mapeiam a
miséria e a destituição.
O
mito da “democracia racial”, que teve em Gilberto Freyre seu formulador mais
sofisticado, constitui, com efeito, o principal sustentáculo teórico da
supremacia eurocêntrica neste País. Interpretando fatos históricos de maneira
conveniente aos seus propósitos, deturpando aqui, inventando acolá, sofismando
sempre, os apóstolos da “democracia racial” conseguiram construir um sólido e
atraente edifício ideológico que até hoje engana não somente parte dos
dominados, mas também os dominadores. Estes, sob o martelar do slogan, por
vezes acreditaram sinceramente na inexistência de racismo no Brasil. Podiam,
assim, oprimir sem remorso ou sentimento de culpa. Esse mesmo mito, com
denominações variadas, como “raza cósmica” ou “café con leche”, também
contamina as relações de raça na maioria do países da chamada América Latina,
resultando, invariavelmente, na hegemonia dos brancos – ou daqueles que assim
se consideram e são considerados – sobre os negros e os índios. É assim no
México, na Colômbia, na Venezuela, no Equador, no Peru e nos países da América
Central e do Caribe. Disso não escapa sequer a Cuba socialista, que pude
visitar mais uma vez poucas semanas atrás e onde, a despeito do grande esforço
de nivelamento social realizado pela Revolução, hábitos, costumes e linguagem
continuam impregnados do perverso eurocentrismo ibérico.
Um
dos efeitos mais cruéis desse tipo de ideologia é confundir e atomizar o grupo
oprimido, impedindo-o de se organizar para defender seus interesses. Assim, por
exemplo, se denuncia a discriminação racial de que é vítima, o negro se vê
enquadrado nas categorias de “complexado”, “ressentido” ou mesmo de “perturbado
mental”. Algum tempo atrás, poderíamos acrescentar as de “subversivo” ou
“agente do comunismo internacional”, estigmas que as instituições repressoras
de nosso País tentaram imprimir em minha própria pele e que me obrigaram a
viver no exterior por mais de uma década.
Terríveis
na sua capacidade de ocultar o óbvio ostensivo, todos esses instrumentos de
coerção e imobilização não foram suficientes para impedir que parcelas da
população afro-brasileira se tenham organizado, nesses 110 anos desde a
abolição, a fim de lutar, por todos os meios possíveis, pela justiça e pela
igualdade neste País edificado por seus antepassados. Já tive ocasião de
celebrar, aqui mesmo nesta Casa, o aniversário de fundação da maior dentre
todas as organizações afro-brasileiras deste século, a Frente Negra Brasileira,
que assinalou, ainda na década de trinta, a existência de um pensamento e de
uma ação: negros comprometidos em derrubar as barreiras construídas com base na
origem africana. Transformada em partido político e fechada com o golpe do
Estado Novo, a Frente Negra, em seus acertos e equívocos, balizou o caminho a
ser percorrido pelas futuras organizações afro-brasileiras.
Em
meados da década dos quarenta, criei no Rio de Janeiro, com ajuda de outros
militantes, o Teatro Experimental do Negro, organização que fundia arte,
cultura e política na conscientização dos afro-brasileiros, e dos brasileiros
em geral, para as questões do racismo e da discriminação, assim como para a
valorização da cultura de origem africana. Apesar dos obstáculos que lhe foram
interpostos, incluindo a clássica acusação de “racismo às avessas”, o Teatro
Experimental do Negro marcou sua trajetória, pelo volume e qualidade de sua
atuação, no meio artístico e cultural daquela década e do decênio seguinte,
como também no cenário político, sendo diretamente responsável pela primeira
proposta de legislação antidiscriminatória no Brasil, mais tarde neutralizada
pela malfadada Lei Afonso Arinos.
Minha
militância acabaria me rendendo um exílio, do final dos anos sessenta ao início
da década de oitenta. Pude então travar contato em primeira mão com toda uma
liderança negra, na África, nos Estados Unidos e na Europa, em luta contra o
imperialismo, o colonialismo e o racismo. As idéias e ações dessa liderança,
que incluía Amílcar Cabral, Samora Machel, Agostinho Neto, Julius Nyerere, Jomo
Kenyatta, Léopold Senghor, Wole Soyinka e Sam Nujomo, na África; Malcolm X,
Martin Luther King, Amiri Baraka, Stokeley Carmichael e os Black Panthers, na
América do Norte – para citar apenas alguns de seus mais destacados expoentes
-, encontraram eco no Brasil, estimulando a antiga luta afro-brasileira, agora
sob o rótulo de “Movimento Negro”.
Recuperando
a tradição das antigas organizações, a exemplo da República dos Palmares, da
Frente Negra e do Teatro Experimental do Negro, o Movimento Negro logo se
espalhou pelo País, catalisando o idealismo de uma generosa juventude
afro-descendente, com grande incidência dos escassos universitários que
enfrentavam, na busca de se inserirem no mercado de trabalho, as cruéis
contradições de nossa “democracia racial”.
O
Sr. Ney Suassuna (PMDB-PB) – V. Exª me permite um aparte?
O
SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) – Ouço V. Exª com muito prazer.
O
Sr. Ney Suassuna (PMDB-PB) – Senador Abdias Nascimento, no dia 13 de maio
gostaria de me solidarizar com V. Exª e com toda a raça da qual V. Exª faz
parte, dizendo que a esta raça nós, brasileiros, devemos muito. Todos nós
devemos estar conscientes de que deve haver cada vez mais igualdade e mais
espaço para ela. Juntos haveremos de construir essa raça brasileira, que é a
miscegenação de todas elas. Muito obrigado.
O
SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) – Muito obrigado a V. Exª.
Continuo,
Sr. Presidente:
Apesar
de todas as dificuldades e resistências, o Movimento encontrava também o apoio
de alguns políticos importantes. Dentre eles se destaca Leonel Brizola,
responsável, como Governador do Rio de Janeiro, pela mais séria e ousada
experiência de enfrentamento do racismo até hoje empreendida no plano do
Estado: a criação da Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das
Populações Afro-Brasileiras, da qual tive a honra de ser o primeiro titular.
Uma
das reivindicações do Movimento Negro no plano das políticas públicas tem sido
a adoção da chamada “ação afirmativa” – que eu prefiro designar como “ação
compensatória” -, objeto, nos últimos tempos, de algumas propostas no âmbito do
Legislativo, incluindo o Projeto de Lei do Senado nº 75, de 1997, de minha
autoria, atualmente tramitando nesta Casa. Trata-se este, na verdade, de um
assunto sobre o qual muito se fala – quase sempre contra – mas do qual,
geralmente, pouco se conhece.
“Ação
afirmativa” ou “ação compensatória”, é, pois, um instrumento, ou conjunto de
instrumentos, utilizado para promover a igualdade de oportunidades no emprego,
na educação, no acesso à moradia e no mundo dos negócios. Por meio deles, o
Estado, a universidade e as empresas podem não apenas remediar a discriminação
passada e presente, mas também prevenir a discriminação futura, num esforço
para se chegar a uma sociedade inclusiva, aberta à participação igualitária de
todos os cidadãos. Ao contrário do que costumavam afirmar seus adversários, a
ação compensatória recompensa o mérito e garante que todos sejam incluídos e
considerados com justiça ao se candidatarem a empregos, matrículas ou
contratos, independentemente de raça ou de gênero. São seus propósitos
específicos: 1) aumentar a participação de pessoas qualificadas, pertencentes a
segmentos historicamente discriminados, em todos os níveis e áreas do mercado
de trabalho, reforçando suas oportunidades de serem contratadas e promovidas;
2) ampliar as oportunidades educacionais dessas pessoas, particularmente no que
se refere à educação superior, expandir seus horizontes e envolvê-las em áreas
nas quais tradicionalmente não têm sido representadas; 3) garantir a empresas
de propriedade de pessoas desses grupos oportunidades de estabelecer contratos
com o governo, em âmbito federal, estadual ou municipal, dos quais de outro
modo estariam excluídas.
A
ação compensatória na área do emprego implica o recrutamento ativo de mulheres
e membros de grupos historicamente discriminados, buscando-se candidatos além
das redes convencionais de relacionamento, tradicionalmente dominadas por
homens brancos. Ela estimula, por exemplo, o uso de anúncios públicos de
emprego para identificar candidatos em lugares em que os empregadores
geralmente não iriam procurá-los.
Na
área educacional, as medidas de ação compensatória adotadas em outros países, e
que se pretende sejam adotadas aqui, são muitas vezes acusadas de constituírem
preferências por alunos não-qualificados. Na verdade, porém, também nessa área
o objetivo é recompensar o mérito. Recentes estudos de escores obtidos em
testes e de notas tiradas no curso secundário – os padrões tradicionais e
presumivelmente “objetivos” para mensurar as qualificações de estudantes – têm
posto em questão a precisão desses instrumentos em predizer o desempenho futuro
de todos os alunos, particularmente de mulheres e de membros de grupos
discriminados. Poucos especialistas sustentariam racionalmente que, por si sós,
esses escores e médias sejam capazes de medir objetivamente a capacidade e o
potencial de um indivíduo. Qual a experiência de vida do candidato? Que
obstáculos ele teve de superar? Quais são suas ambições e esperanças? Menos
tangíveis do que números, esses padrões são mais precisos em prever o futuro
desempenho educacional do que a origem familiar, herança ou outros atributos do
privilégio.
Além
do falido argumento meritocrático, também se costuma brandir contra a ação
compensatória – como aconteceu nesta própria Casa – a tese da
inconstitucionalidade. Seria inconstitucional estabelecer qualquer espécie de
“discriminação positiva” – outro sinônimo de ação afirmativa – porque isso
feriria o princípio da igualdade de todos perante a lei. A primeira resposta a
esse argumento vai contra o seu caráter eminentemente conservador. Como se não
tivéssemos a possibilidade, o direito, o dever, eu diria, de lutar por mudanças
nos dispositivos constitucionais que não nos interessam. Ou como se a igualdade
fosse apenas um princípio abstrato, e não algo a ser implementado por meio de
medidas concretas. A verdade, porém, é que existem diversos precedentes
jurídicos que abrem as portas à implantação da ação compensatória em favor dos
afro-descendentes no Brasil. A igualdade de homens e mulheres perante a lei não
impede, por exemplo, que estas tenham direito de se aposentar com menor tempo
de serviço, nem que disponham de uma reserva de vagas nas listas de candidatura
dos partidos. Há também a proteção especial aos portadores de deficiência, a
famosa Lei dos Dois Terços – que estipulava uma preferência para trabalhadores
brasileiros no quadro funcional das empresas -, sem falar no imposto de renda
progressivo e na inversão do ônus da prova nas ações movidas por empregados
contra empregadores. Todos casos em que a igualdade formal dá lugar à promoção
da igualdade.
Vale
ressaltar, neste ponto, que pelo menos três convenções internacionais de que o
Brasil é signatário – e que portanto têm força de lei – contemplam a adoção de
medidas compensatórias. Uma delas é a Convenção Internacional sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial, da Organização das Nações Unidas,
cujo art. 1º, item 4, diz o seguinte: “Não serão consideradas discriminação
racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o
progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos (…) que necessitem da
proteção que possa ser necessária para proporcionar(…) igual gozo ou exercício
de direitos humanos e liberdades fundamentais (…).”
Teor
semelhante tem o art. 2º da Convenção 111 da OIT – Organização Internacional do
Trabalho, concernente à discriminação em matéria de emprego e profissão, pelo
qual cada signatário “compromete-se a formular e aplicar uma política nacional
que tenha por fim promover (…) a igualdade de oportunidades e de tratamento em
matéria de emprego e profissão, com o objetivo de eliminar toda discriminação
nessa matéria”. E também o art. IV da Convenção Relativa à Luta Contra a
Discriminação no Campo do Ensino, da UNESCO: “Os Estados Partes (…)
comprometem-se (…) a formular, desenvolver e aplicar uma política nacional que
vise a promover (…) a igualdade de oportunidade e tratamento me matéria de
ensino.”
Outra
postura contrária vem dos que, dando como exemplo a experiência de países
socialistas, à ação compensatória costumam contrapor as políticas públicas de
combate à pobreza e aos problemas a ela associados – as chamadas políticas
redistributivas. Esse argumento, em geral oriundo da Esquerda, é duplamente
falacioso. Primeiro porque ninguém, em sã consciência, poderia vislumbrar no
horizonte próximo uma revolução socialista no Brasil – condição indispensável à
adoção de reformas radicais como aquelas que possibilitaram a alguns daqueles
países não acabar com o racismo, mas reduzir a um nível mínimo as desigualdades
raciais (o que é diferente) nas áreas do trabalho, da educação, da saúde e da
moradia. A outra falácia desse argumento é deixar implícito que se trata de
opções mutuamente excludentes – ou ação compensatória, ou políticas
redistributivas, quando, de fato, necessita-se de ambas. Com certeza, os
afro-brasileiros seriam, por sua inserção social, os grandes beneficiários de
quaisquer ações governamentais voltadas à melhoria das condições de vida das
grandes massas destituídas. E continuariam precisando de proteção contra a
discriminação, bem como de mecanismos capazes de lhes assegurar a igualdade de
oportunidades.
Em
entrevista publicada semana passada pela revista Veja, em que se discute a
situação dos negros neste País, o Presidente Fernando Henrique Cardoso disse
não ser contrário ao sistema de quotas, forma mais incisiva de ação
compensatória, que constitui a essência do meu projeto de lei. O Presidente foi
além dessa declaração e afirmou literalmente: “Havendo duas pessoas em
condições iguais para nomear para determinado cargo, sendo uma negra, eu
nomearia a negra”. Como é curioso, para dizer o mínimo, observar
correligionários do Presidente aqui no Senado manifestando idéias e atitudes
absolutamente contrárias às de seu suposto líder e utilizando, para isso, todo
um arsenal de argumentos ou intempestivos, ou equivocados, ou desinformados –
pois não quero acreditar que sejam maliciosos.
Ao
mesmo tempo, pesquisa realizada pelo prestigioso instituto de pesquisa
Datafolha, e publicada à página 46 do livro Racismo Cordial, revela não apenas
que praticamente metade dos brasileiros de todas as origens étnicas aprova a
ação compensatória, mas que essa aprovação chega a 52% entre aqueles que
admitiram ter preconceito em relação aos negros. Muito significativo em função
da cortina de desconhecimento que cerca o tema, esse resultado indica que o
País está mudando, e mais rapidamente do que se quer admitir. E esta Casa,
cujos membros têm o dever de acompanhar e até mesmo antecipar as mudanças que o
País quer e necessita, não pode ficar se ancorando em velhos chavões para
manter um estado de coisas que a maioria da sociedade quer ver superado.
Sabemos, eu e meus companheiros de luta, que é árdua a batalha que temos pela
frente, no confronto com o reacionarismo, a ignorância e o atraso. Mas estamos
dispostos a levar nossa luta a todos os foros, nacionais e internacionais, e a
conduzi-la, como alguém já disse, “por todos os meios necessários”.
Assim,
neste 13 de Maio, fazemo-nos presentes nesta tribuna, não para comemorar, mas
para denunciar uma vez mais a mentira cívica que essa data representa, parte
central de uma estratégia mais ampla, elaborada com a finalidade de manter os
negros no lugar que eles dizem ser o nosso. A comunidade afro-brasileira,
porém, já mostrou claramente que não mais aceita a condição que nos querem
impingir. Mais uma prova disso foi dada na madrugada de hoje, quando o
Instituto do Negro Padre Batista, juntamente com dezenas de outras
organizações, realizou em São Paulo a segunda Marcha pela Democracia Racial,
desfraldando a bandeira da igualdade de oportunidades para os
afro-descendentes. Assim, ao mesmo tempo em que denuncia as injustiças de que é
vítima, nossa comunidade apresenta reivindicações consistentes e viáveis para a
solução dos seculares problemas que enfrenta. Reivindicações, como a ação
compensatória, capazes de contribuir para que venhamos a concretizar, com o
apoio de nossos aliados sinceros, a segunda e verdadeira abolição.
Sr.
Presidente, pulei vários trechos para abreviar meu pronunciamento, solicito que
a publicação seja feita na íntegra.
Muito
obrigado, Sr. Presidente.
Axé!
Fonte:
Senado | Secretaria-Geral da Mesa – Secretaria de Taquigrafia e Secretaria de
Ata | Secretaria de Informação e Documentação – Subsecretaria de Informações