Por
que Cristo e não John Lennon? questionou Robson Sabino, presidente da Comissão
de Liberdade Religiosa da OAB, quando debatemos sobre a polêmica em torno do
uso do Cristo Crucificado no espetáculo Histórias Compartilhadas. Já passado
algum tempo, agora inquirido pelo Ministério Público Federal para responder
sobre a questão, me interrogo: por que Cristo? O que tem Cristo a ver com a
nudez e com o sangue de um ator gay em um espetáculo sobre transexualidade
masculina?
Publicado
originalmente no O Povo
Cristo
era marginal, andarilho, pedinte, criminoso (condenado), defendia prostituta,
era arruaceiro, opunha-se ao Governo e estava sentenciado à morte mesmo antes
de nascer. Este era Cristo, figura histórica muito mais próxima de mim do que
do jovem advogado da OAB ou de tantos religiosos que me ameaçaram. Por que
Cristo? O homem que Cristo foi ainda não é resposta suficiente. Ele era odiado
pela sociedade de seu tempo, como são LGBTs pela nossa, e não há dúvida que
exista uma inter-relação simbólica, mas isso não é ainda resposta satisfatória.
Durante
todo o espetáculo, lá está Cristo, num cantinho, olhando os relatos de
exclusão, de luta pela modificação corporal e a dor que as pessoas trans
enfrentam na tentativa de serem o que elas são. Muito dessa dor é causado pelo
olhar moralista das famílias cristãs e da ética dos corpos cristãos. A presença
de Cristo é a presença do símbolo que, enquanto humano, produziu amor e viveu
como marginal, mas, enquanto divindade, simboliza o ódio, o controle, a
biopolítica que se abre às interpretações fundamentalistas mais violentas.
Por
que Cristo? Porque ele não é propriedade cristã, é um símbolo da cultura
ocidental. Para alguns, o homem crucificado é uma divindade; para outros,
lembra a possibilidade da injustiça. E o sangue derramado sobre Cristo na peça
é a representação do sangue das pessoas trans vertido nas ruas, nos motéis, nas
calçadas (após o salto da janela). Se há um símbolo que devia estar lá, é o
Cristo. O Cristo de braços abertos em seu máximo martírio, figura tão próxima
de nós, como irmão e como carrasco.
Cristo,
certamente, se importaria menos com o uso de sua imagem neste espetáculo do que
com o uso do seu nome para motivos eleitoreiros e de movimentações financeiras
escusas.
Ari Areia - autor do outro grupo de teatro. Foto: Ana Branco/Agência Globo. |