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Agonias de um palhaço. (FOTO| Reprodução | WhatsApp). |
Por César Pereira, Colunista
Depois das aulas da manhã Deco foi para a horta apanhar goiabas com Dimas e seu primo Gilberto. Era de tarde quando eles caminharam pelo bananal atravessando o vau do rio e pisando as leiras de batata-doce cujas ramas se esparramavam pelo chão de areia e folhas decompostas. Dimas caminhava e parava e olhava entre as folhagens, apontava com o dedo e então eles chegavam e viam também o corrupião pousado nos galhos.
— Com
esse já são quatro — disse Dimas — estão fazendo ninho por perto, aposto que
estão.
—
Deixei meu bodoque lá em casa — disse Gil.
— Não
importa, não se deve matar corrupião — falou Dimas — é maldade, porque não se
come a carne.
—
Pensei que isso só valia pra pardal e andorinha — falou Deco.
— Mas
vale também pra lavandisca e corrupião — disse Dimas — é decreto.
—
Mandado de quem — perguntou Deco.
— Não
sei se corrupião entra nesse decreto — disse Gil.
— Você
comeria corrupião sabendo que ele canta bonito?
— Por
causa do canto dele, Dimas?
—
Pois é, Deco — disse Dimas.
—
Como você sabe sobre isso — perguntou Deco.
—
Plínio quem disse, não foi?
—
Parece que foi Gil, se não foi fica sendo isso, entre nós aqui está proibido
matar corrupião.
—
Acordo — perguntou Gil.
—
Acordo.
Tinham parado sob o pé de goiaba branca e olhavam as
frutas em cachos pendentes sob as ramagens e folhas. Ali era só esticar o braço
e pegar uma goiaba madura. Pelo chão rolavam apodrecidas ou em decomposição
goiabas meio comidas, bicadas de pássaros ou mordidas pelos saguis. Se pondo de
pernas abertas Dimas começou a urinar sobre uma fruta podre que foi se erodindo
sob o impacto do jato de mijo e espuma. Deco fez o mesmo, urinando sobre uma
moita de assa-peixe.
— Os
mijões deviam plantar um rio — disse Gil — cachoeira e cachoeirinha.
Então
ele caminhou até perto do tronco da goiabeira se desviando dos jatos e salpicos
do mijo de Dimas. Ali parou e calculou o salto. Precisaria subir ao galho que
se estendia sobre o rio para colher as melhores frutas.
—
Você sobe e nós ficamos, você tira as frutas e nós juntamos todas aqui, depois
você desce e então repartimos tudo.
—
Combinado Deco — falou Gil — vou apanhar uma goiaba especial pra Lila.
— Por
que Lila — perguntou André.
—
Pelo que sei ela não está mais na sua Deco — disse Gil — então vou investir.
—
Quem te mentiu isso Gil?
— Não
é mentira. O Gordo quem disse. Falou bem falado que a irmã dele estava era
cansada de você.
—
Pois mente o Gordo e eu vou acabar com a raça dele — falou Deco — domingo eu
compro chumbo e pólvora pra garrucha e então mato o Gordo e também mato a irmã
dele.
— Não
mate ninguém Deco. O Gordo só falou isso porque você sendo assim preto.
—
Posso não matar, mas aquele porco mentiroso — Deco se abaixou e apanhou uma
pedra — não mato ele, mas da traição não esqueço.
Assim depois de desistir de matar o Gordo, Deco
alvejou com à pedrada uma goiaba na ponta dum galho, a fruta caiu dentro do
rio, mas não afundou. Deco foi buscá-la trazendo-a para a margem com a ponta da
vara. Limpou a goiaba na camisa e guardou-a no bolso do calção.
— Não
me prendo numa mulher — disse Dimas se paroximando — por isso tenho qualquer
uma.
— Não
vejo você com nenhuma — falou Gil — nunca vi.
—
Nunca viu — disse Dimas — nunca viu?
— Eu
também nunca jamais — disse Deco.
— Lá
no circo, por acaso não era eu com a Cibele?
— Uma
dama pro Butico — perguntou Gil.
—
Butico. Butico. Nada de Butico — falou Dimas — eu disse: “Cibele você vai no
circo comigo”. Não deixei dúvidas, então ela foi.
—
Dimas, eu lhe pergunto — falou Gil — qual é a do Butico?
— Não
é nenhuma, papa todas.
—
Outro dia quase levou descarga de garrucha nos peitos — falou Deco — andou
pulando a janela da mulher do soldado.
— Tem
corpo fechado — disse Dimas.
—
Nunca ouvi dizer isso de palhaço — falou Deco.
— Uma
cigana fechou ele com selo de Salomão — disse Dimas — eu mesmo já vi a estrela
tatuada nele.
— O circo
agora vai mesmo — perguntou Gil.
— E
se eu pudesse ia também — disse Dimas — já recebi muitos convites.
— Do
palhaço Butico, aposto.
— Esse
foi quem mais me chamou sim, Gil — falou Dimas — mas a bailarina quis também
saber se eu não queria ir com a trupe.
— E
você vai — perguntou Deco — fugir com o circo?
— O
que me impede é a mãe — disse Dimas — não sendo ela ficar sozinha se eu
aceitasse o convite.
—
Podemos ir ao espetáculo hoje — perguntou André.
— Não
tenho nenhum — disse Dimas — estou sem cobres.
—
Você bem que podia pedir — “Butico põe a gente pra dentro do baixo da lona”.
— E
ele deixava — falou Dimas — mas não peço. O dinheiro das entradas é o ganho
dele. Sem a paga do público nem pro cigarro.
— Eu
muito que queria ver a última apresentação do Gran Circo Real D’Plaza —
falou Deco — não teremos outro em muitos anos.
— Mas
não será nunca a última apresentação Deco — disse Gil — já disseram isso antes.
Não se lembra? Quando a plateia rareia eles inventam que vão embora, mas acabam
ficando. Desconfio que gostaram daqui e já não querem mais ir.
—
Ninguém garante isso — falou Dimas — dessa vez eles viajam mesmo. Butico me
confirmou isso. Temos que entrar naquele circo hoje.
—
Podemos vender a garrucha do Deco — disse Gil — quanto vale?
— Não
estou vendendo minha garrucha — disse André — meu pai não deixaria.
— É
sem chance Dimas — disse Gil — se pôs a cavaleiro sobre o galho mais grosso da
goiabeira e deu impulso para se balançar sobre a correnteza do rio.
Dimas encostou-se num tronco de bananeira e de lá
contemplava um coqueiro agitado pelo vento. O sol ardia sobre o rio enquanto Deco
atirava goiabas podres nas águas atarantando os peixes que vinham comer pedaços
e sementes da fruta.
— Mas eu tenho um plano — disse Dimas — não vamos
perder o espetáculo.
Gil desceu da árvore, saltou no chão diante do
amigo, se agachou e limpou as folhas secas e as goiabas podres, então começou a
riscar um triângulo na terra limpa.
— Arranjando mulher pro Butico ele autoriza as
cortesias — falou Dimas.
— O palhaço é mesmo tarado — disse Gil — se sentirá
bem pago.
— O problema é conseguir essa novidade — falou Deco
— pelo distrito quase todas já papadas. Nem as casadas. Perdoadas apenas quem
muito séria, ou velha carcomida.
— Joaninha Freire nunca — propôs Dimas — com essa
ganhamos até a pipoca.
— Como faremos? — quis saber Deco.
— Quem amigo dela?
— Você Gil, você é.
— Eu? — Limpo o quintal, varro as folhas.
— Dimas falou certo — disse Deco — você com entrada
franca na casa da mestra. Ela até gosta muito de você. O loirinho dela.
— Vocês, dois salafrário — disse Gil.
— Entrega ela pro Butico e temos ingressos — falou
Dimas.
— Depende de mim — perguntou Gil — dona dela não sou
eu, vocês saibam disso.
— Solteirona. Se fez com você, vai querer fazer com
um homem.
— Assim você me esculhamba Dimas — falou Gil.
— Temos um plano — perguntou Dimas.
— Está nas suas mãos Gil — falou Deco.
— Último espetáculo — falou Dimas.
— Ela pode não querer com um palhaço...
— Palhaço é um homem — disse Dimas — Gilzinho,
aquela lá vai se babar quando ver a tromba.
— Depois você retoma o direito — disse Deco.
— Vamos ao circo — perguntou Dimas.
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