8 de setembro de 2025

Agonias de um palhaço

 

Agonias de um palhaço. (FOTO| Reprodução | WhatsApp).

Por César Pereira, Colunista 

Depois das aulas da manhã Deco foi para a horta apanhar goiabas com Dimas e seu primo Gilberto. Era de tarde quando eles caminharam pelo bananal atravessando o vau do rio e pisando as leiras de batata-doce cujas ramas se esparramavam pelo chão de areia e folhas decompostas.  Dimas caminhava e parava e olhava entre as folhagens, apontava com o dedo e então eles chegavam e viam também o corrupião pousado nos galhos.

          — Com esse já são quatro — disse Dimas — estão fazendo ninho por perto, aposto que estão.

          — Deixei meu bodoque lá em casa — disse Gil.

          — Não importa, não se deve matar corrupião — falou Dimas — é maldade, porque não se come a carne.

          — Pensei que isso só valia pra pardal e andorinha — falou Deco.

          — Mas vale também pra lavandisca e corrupião — disse Dimas — é decreto.

          — Mandado de quem — perguntou Deco.

          — Não sei se corrupião entra nesse decreto — disse Gil.

          — Você comeria corrupião sabendo que ele canta bonito?

          — Por causa do canto dele, Dimas?

          — Pois é, Deco — disse Dimas.

          — Como você sabe sobre isso — perguntou Deco.

          — Plínio quem disse, não foi?

          — Parece que foi Gil, se não foi fica sendo isso, entre nós aqui está proibido matar corrupião.

          — Acordo — perguntou Gil.

          — Acordo.

Tinham parado sob o pé de goiaba branca e olhavam as frutas em cachos pendentes sob as ramagens e folhas. Ali era só esticar o braço e pegar uma goiaba madura. Pelo chão rolavam apodrecidas ou em decomposição goiabas meio comidas, bicadas de pássaros ou mordidas pelos saguis. Se pondo de pernas abertas Dimas começou a urinar sobre uma fruta podre que foi se erodindo sob o impacto do jato de mijo e espuma. Deco fez o mesmo, urinando sobre uma moita de assa-peixe.

          — Os mijões deviam plantar um rio — disse Gil — cachoeira e cachoeirinha.

          Então ele caminhou até perto do tronco da goiabeira se desviando dos jatos e salpicos do mijo de Dimas. Ali parou e calculou o salto. Precisaria subir ao galho que se estendia sobre o rio para colher as melhores frutas.

          — Você sobe e nós ficamos, você tira as frutas e nós juntamos todas aqui, depois você desce e então repartimos tudo.

          — Combinado Deco — falou Gil — vou apanhar uma goiaba especial pra Lila.

          — Por que Lila — perguntou André.

          — Pelo que sei ela não está mais na sua Deco — disse Gil — então vou investir.

          — Quem te mentiu isso Gil?

          — Não é mentira. O Gordo quem disse. Falou bem falado que a irmã dele estava era cansada de você.

          — Pois mente o Gordo e eu vou acabar com a raça dele — falou Deco — domingo eu compro chumbo e pólvora pra garrucha e então mato o Gordo e também mato a irmã dele.

          — Não mate ninguém Deco. O Gordo só falou isso porque você sendo assim preto.

          — Posso não matar, mas aquele porco mentiroso — Deco se abaixou e apanhou uma pedra — não mato ele, mas da traição não esqueço.

Assim depois de desistir de matar o Gordo, Deco alvejou com à pedrada uma goiaba na ponta dum galho, a fruta caiu dentro do rio, mas não afundou. Deco foi buscá-la trazendo-a para a margem com a ponta da vara. Limpou a goiaba na camisa e guardou-a no bolso do calção.

          — Não me prendo numa mulher — disse Dimas se paroximando — por isso tenho qualquer uma.

          — Não vejo você com nenhuma — falou Gil — nunca vi.

          — Nunca viu — disse Dimas — nunca viu?

          — Eu também nunca jamais — disse Deco.

          — Lá no circo, por acaso não era eu com a Cibele?

          — Uma dama pro Butico — perguntou Gil.

          — Butico. Butico. Nada de Butico — falou Dimas — eu disse: “Cibele você vai no circo comigo”. Não deixei dúvidas, então ela foi.

          — Dimas, eu lhe pergunto — falou Gil — qual é a do Butico?

          — Não é nenhuma, papa todas.

          — Outro dia quase levou descarga de garrucha nos peitos — falou Deco — andou pulando a janela da mulher do soldado.

          — Tem corpo fechado — disse Dimas.

          — Nunca ouvi dizer isso de palhaço — falou Deco.

          — Uma cigana fechou ele com selo de Salomão — disse Dimas — eu mesmo já vi a estrela tatuada nele.

          — O circo agora vai mesmo — perguntou Gil.

          — E se eu pudesse ia também — disse Dimas — já recebi muitos convites.

          — Do palhaço Butico, aposto.

          — Esse foi quem mais me chamou sim, Gil — falou Dimas — mas a bailarina quis também saber se eu não queria ir com a trupe.

          — E você vai — perguntou Deco — fugir com o circo?

          — O que me impede é a mãe — disse Dimas — não sendo ela ficar sozinha se eu aceitasse o convite.

          — Podemos ir ao espetáculo hoje — perguntou André.

          — Não tenho nenhum — disse Dimas — estou sem cobres.

          — Você bem que podia pedir — “Butico põe a gente pra dentro do baixo da lona”.

          — E ele deixava — falou Dimas — mas não peço. O dinheiro das entradas é o ganho dele. Sem a paga do público nem pro cigarro.

          — Eu muito que queria ver a última apresentação do Gran Circo Real D’Plaza — falou Deco — não teremos outro em muitos anos.

          — Mas não será nunca a última apresentação Deco — disse Gil — já disseram isso antes. Não se lembra? Quando a plateia rareia eles inventam que vão embora, mas acabam ficando. Desconfio que gostaram daqui e já não querem mais ir.

          — Ninguém garante isso — falou Dimas — dessa vez eles viajam mesmo. Butico me confirmou isso. Temos que entrar naquele circo hoje.

          — Podemos vender a garrucha do Deco — disse Gil — quanto vale?

          — Não estou vendendo minha garrucha — disse André — meu pai não deixaria.

          — É sem chance Dimas — disse Gil — se pôs a cavaleiro sobre o galho mais grosso da goiabeira e deu impulso para se balançar sobre a correnteza do rio.

Dimas encostou-se num tronco de bananeira e de lá contemplava um coqueiro agitado pelo vento. O sol ardia sobre o rio enquanto Deco atirava goiabas podres nas águas atarantando os peixes que vinham comer pedaços e sementes da fruta.

— Mas eu tenho um plano — disse Dimas — não vamos perder o espetáculo.

Gil desceu da árvore, saltou no chão diante do amigo, se agachou e limpou as folhas secas e as goiabas podres, então começou a riscar um triângulo na terra limpa.

— Arranjando mulher pro Butico ele autoriza as cortesias — falou Dimas.

— O palhaço é mesmo tarado — disse Gil — se sentirá bem pago.

— O problema é conseguir essa novidade — falou Deco — pelo distrito quase todas já papadas. Nem as casadas. Perdoadas apenas quem muito séria, ou velha carcomida.

— Joaninha Freire nunca — propôs Dimas — com essa ganhamos até a pipoca.

— Como faremos? — quis saber Deco.

— Quem amigo dela?

— Você Gil, você é.

— Eu? — Limpo o quintal, varro as folhas.

— Dimas falou certo — disse Deco — você com entrada franca na casa da mestra. Ela até gosta muito de você. O loirinho dela.

— Vocês, dois salafrário — disse Gil.

— Entrega ela pro Butico e temos ingressos — falou Dimas.

— Depende de mim — perguntou Gil — dona dela não sou eu, vocês saibam disso.

— Solteirona. Se fez com você, vai querer fazer com um homem.

— Assim você me esculhamba Dimas — falou Gil.

— Temos um plano — perguntou Dimas.

— Está nas suas mãos Gil — falou Deco.

— Último espetáculo — falou Dimas.

— Ela pode não querer com um palhaço...

— Palhaço é um homem — disse Dimas — Gilzinho, aquela lá vai se babar quando ver a tromba.

— Depois você retoma o direito — disse Deco.

— Vamos ao circo — perguntou Dimas.

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