Na
cultura africana a fala ganha força, forma e sentido, significado e orientação
para a vida. A palavra é vida, é ação, é jeito de aprender e ensinar. “O poder
da palavra garante e preserva ensinamentos, uma vez que possui uma energia
vital, com capacidade criadora e transformadora do mundo. Energia que possui
diferentes denominações para as diversas civilizações, por exemplo, para os
bantus essa energia é hamba, já para o povo iorubá a energia é o axé.”
A
tradição oral pode ser vista como um cabedal de ensinamentos, saberes e
conhecimentos que veiculam e auxiliam homens e mulheres, crianças, adultos/as e
velhos/as a se integrarem no tempo e no espaço e nas tradições. Sem poder ser
esquecida ou desconsiderada, a oralidade é uma forma encarnada de registro, tão
complexa quanto a escrita, que se utiliza de gestos, da retórica, de
improvisações e de danças como modos de expressão.
Confira alguns Contos Africanos
A Lua Feiticeira e a Filha que não
sabia pilar
A
Lua tinha uma filha branca e em idade de casar. Um dia apareceu-lhe em casa um
monhé pedindo a filha em casamento.
A lua perguntou-lhe:— Como pode ser isso, se tu és monhé? Os monhés não comem ratos nem carne de porco e também não apreciam cerveja…
Além disso, ela não sabe pilar…
A lua perguntou-lhe:— Como pode ser isso, se tu és monhé? Os monhés não comem ratos nem carne de porco e também não apreciam cerveja…
Além disso, ela não sabe pilar…
O
monhé respondeu:
–
Não vejo impedimento porque, embora eu seja monhé, a menina pode continuar a
comer ratos e carne de porco e a beber cerveja… Quanto a não saber pilar, isso
também não tem importância pois as minhas irmãs podem fazê-lo.
A
lua, então, respondeu:
–
Se é como dizes, podes levar a minha filha que, quanto ao mais, é boa rapariga.
O
monhé levou consigo a menina. Ao chegar a casa foi ter com a sua mãe e fez-lhe
saber que a menina com quem tinha casado comia ratos, carne de porco e bebia
cerveja, mas que era necessário deixá-la à-vontade naqueles hábitos.
Acrescentou também que ela não sabia pilar mas que as suas irmãs teriam a paciência
de suprir essa falta.
Dias
depois, o monhé saiu para o mato à caça. Na sua ausência, as irmãs chamaram a
rapariga (sua cunhada) para ir pilar com elas para as pedras do rio e esta
desatou a chorar.
As
irmãs censuraram-na:
–
Então tu pões-te a chorar por te convidarmos a pilar?… Isso não está bem! Tens
de aprender porque é trabalho próprio das mulheres.
E,
sem mais conversas, pegaram-lhe na mão e conduziram-na ao lugar onde costumavam
pilar.
Quando chegaram ao rio puseram-lhe o pilão na
frente, entregaram-lhe um maço e ordenaram que pilasse.
A
rapariga começou a pilar mas com uma mágoa tão grande que as lágrimas não
paravam de lhe escorrer pela cara. Enquanto pilava ia-se lamentando:
–
Quando estava em casa da minha mãe não costumava pilar… Ao dizer estas
palavras, a rapariga, sempre a pilar e juntamente com o pilão, começou a
sumir-se pelo chão abaixo, por entre as pedras que, misteriosamente, se
afastavam. E foi mergulhando, mergulhando… até desaparecer.
Ao
verem aquele estranho fenómeno, as irmãs do monhé abandonaram os pilões e foram
a correr contar à mãe o que acontecera. Esta ficou assustada com a estranha
novidade e tinha o coração apertado de receio quando chegou o monhé, seu filho.
Este, ao ouvir o relato do que acontecera à
sua mulher, ralhou com as irmãs, censurando-as por não terem cumprido as suas
ordens. Apressou-se a ir ter com a lua, sua sogra, para lhe dar conta do
desaparecimento da filha.
A
lua, muito irritada, disse:
–
A minha filha desapareceu porque não cumpriste o que prometeste. Faz como
quiseres, mas a minha filha tem de aparecer!
–
Mas como posso ir ao encontro dela se desapareceu pelo chão abaixo?
A
lua mudou, então, de aspecto e, mostrando-se conciliadora, disse:
–
Bom, vou mandar chamar alguns animais para se fazer um remédio que obrigue a
minha filha a voltar… Vai para o lugar onde desapareceu a minha filha e espera
lá por mim.
O
monhé foi-se embora e a lua chamou um criado ordenando:
–
Chama o javali, a pacala, a gazela, o búfalo e o cágado e diz-lhes que
compareçam, sem demora, nas pedras do rio onde desapareceu a minha filha.
O
criado correu a cumprir as ordens e os animais convidados apressaram-se para
chegar ao lugar indicado. A lua também para lá se dirigiu com um cesto de
alpista. Quando chegou ao rio, derramou um punhado de alpista numa pedra e
ordenou ao porco que moesse.
O
porco, enquanto moía, cantou:
–
Eu sou o javali e estou a moer alpista para que tu, rapariga, apareças ao som
da minha voz!
Nesse
momento ouviu-se a voz cava da menina que, debaixo do chão, respondia:
–
Não te conheço!
O javali, despeitado, largou a pedra das mãos
e afastou-se cabisbaixo. Aproximou-se em seguida a pacala e, enquanto moía,
cantou:
–
Eu sou a pacala e estou a moer alpista para que tu, rapariga, apareças ao som
da minha voz!
Ouviu-se
novamente a voz da menina que dizia:
–
Não te conheço!
A gazela e o búfalo ajoelharam também junto do
moinho, fazendo a sua invocação, mas a menina deu a ambos a mesma resposta:
–
Não te conheço!
Por
último, tomou a pedra o cágado e, enquanto moía, cantou:
–
Eu sou o cágado e estou a moer alpista para que tu, rapariga, apareças ao som
da minha voz!
A
menina cantou, então, em voz terna e melodiosa:
–
Sim, cágado, à tua voz eu vou aparecer!…
E,
pouco a pouco, a menina começou a surgir por entre as pedras do rio, juntamente
com o pilão, mas sem pilar. Quando emergiu completamente parou e ficou
silenciosa.
Os
animais juntaram-se todos, curiosos, à volta da menina
Então, a lua disse:
–
Agora a minha filha já não pode continuar a ser mulher do monhé pois ele não
soube cumprir o que me prometeu. Ela será, daqui para o futuro, mulher do
cágado, pois só à sua voz é que ela tornou a aparecer.
Então
o cágado levantou a voz dizendo:
–
Estou muito feliz com a menina que acaba de me ser dada em casamento e, como
prova da minha satisfação, vou oferecer-lhe um vestido luxuoso que ela vestirá
uma só vez, pois durará até ao fim da sua vida. E, dizendo isto, entregou à
menina uma carapaça lindamente trabalhada, igual à sua.
Da
ligação do cágado com a filha da lua é que descendem todos os cágados do mundo…
Eduardo
Medeiros (org.).
A Menina que não Falava
Certo
dia, um rapaz viu uma rapariga muito bonita e apaixonou-se por ela. Como se
queria casar com ela, no outro dia, foi ter com os pais da rapariga para tratar
do assunto.
__
Essa nossa filha não fala. Caso consigas fazê-la falar, podes casar com ela,
responderam os pais da rapariga.
O rapaz aproximou-se da menina e começou a
fazer-lhe várias perguntas, a contar coisas engraçadas, bem como a insultá-la,
mas a miúda não chegou a rir e não pronunciou uma só palavra. O rapaz desistiu
e foi-se embora.
Após este rapaz, seguiram-se outros pretendentes, alguns com muita fortuna mas, ninguém conseguiu fazê-la falar.
O último pretendente era um rapaz sujo, pobre
e insignificante. Apareceu junto dos pais da rapariga dizendo que queria casar
com ela, ao que os pais responderam:
__ Se já várias pessoas apresentáveis e com
muito dinheiro não conseguiram fazê-la falar, tu é que vais conseguir? Nem
penses nisso!
O
rapaz insistiu e pediu que o deixassem tentar a sorte. Por fim, os pais
acederam.
O rapaz pediu à rapariga para irem à sua
machamba, para esta o ajudar a sachar. A machamba estava carregada de muito
milho e amendoim e o rapaz começou a sachá-los.
Depois
de muito trabalho, a menina ao ver que o rapaz estava a acabar com os seus
produtos, perguntou-lhe:
__ O que estás a fazer?
O
rapaz começou a rir e, por fim, disse para regressarem a casa para junto dos
pais dela e acabarem de uma vez com a questão.
Quando aí chegaram, o rapaz contou o que se
tinha passado na machamba. A questão foi discutida pelos anciãos da aldeia e
organizou-se um grande casamento.
A Gazela e o Caracol
Uma
gazela encontrou um caracol e disse-lhe:
__ Tu, caracol, és incapaz de correr, só te arrastas pelo chão.
O caracol respondeu:
__ Vem cá no Domingo e verás!
O caracol arranjou cem papéis e em cada folha
escreveu: «Quando vier a gazela e disser “caracol”, tu respondes com estas
palavras: “Eu sou o caracol”».
Dividiu
os papéis pelos seus amigos caracóis dizendo-lhes:
__ Leiam estes papéis para que saibam o que
fazer quando a gazela vier. No Domingo a gazela chegou à povoação e encontrou o
caracol.
Entretanto, este pedira aos seus amigos que se
escondessem em todos os caminhos por onde ela passasse, e eles assim fizeram.
Quando
a gazela chegou, disse:
__ Vamos correr, tu e eu, e tu vais ficar para
trás! O caracol meteu-se num arbusto, deixando a gazela correr.
Enquanto
esta corria ia chamando:
__ Caracol!
E
havia sempre um caracol que respondia:
__ Eu sou o caracol. Mas nunca era o mesmo por
causa das folhas de papel que foram distribuídas.
A
gazela, por fim, acabou por se deitar, esgotada, morrendo com falta de ar. O
caracol venceu, devido à esperteza de ter escrito cem papéis.
O
Homem chamado Namarasotha
Um dia foi à caça. Ao chegar ao mato, encontrou uma impala morta.
Quando se preparava para assar a carne do animal apareceu um passarinho que lhe
disse:
–
Namarasotha, não se deve comer essa carne. Continua até mais adiante que o que
é bom estará lá.
O
homem deixou a carne e continuou a caminhar. Um pouco mais adiante encontrou
uma gazela morta. Tentava, novamente, assar a carne quando surgiu um outro
passarinho que lhe disse:
–
Namarasotha, não se deve comer essa carne. Vai sempre andando que encontrarás
coisa melhor do que isso.
Ele
obedeceu e continuou a andar até que viu uma casa junto ao caminho. Parou e uma
mulher que estava junto da casa chamou-o, mas ele teve medo de se aproximar
pois estava muito esfarrapado.
–
Chega aqui!, insistiu a mulher.
Namarasotha aproximou-se então.
–
Entra, disse ela.
Ele não queria entrar porque era pobre. Mas a
mulher insistiu e Namarasotha entrou, finalmente.
–
Vai te lavar e veste estas roupas, disse a mulher.
E ele lavou-se e vestiu as calças novas. Em
seguida, a mulher declarou:
–
A partir deste momento esta casa é tua. Tu és o meu marido e passas a ser tu a
mandar.
E
Namarasotha ficou, deixando de ser pobre.
Um certo dia havia uma festa a que tinham de
ir. Antes de partirem para a festa, a mulher disse a Namarasotha:
–
Na festa a que vamos quando dançares não deverás virar-te para trás.
Namarasotha concordou e lá foram os dois. Na festa bebeu muita cerveja de farinha de mandioca e embriagou-se. Começou a dançar ao ritmo do batuque. A certa altura a música tornou-se tão animada que ele acabou por se virar.
E
no momento em que se virou, ficou como estava antes de chegar à casa da mulher:
pobre e esfarrapado.
NOTA:
Todo o homem adulto deve casar-se com uma
mulher de outra linhagem. Só assim é respeitado como homem e tido como «bem
vestido». O adulto sem mulher é «esfarrapado e pobre». A verdadeira riqueza
para um homem é a esposa, os filhos e o lar. Os animais que Namarasotha
encontrou mortos simbolizam mulheres casadas e se comesse dessa carne estaria a
cometer adultério. Os passarinhos representam os mais velhos, que o aconselham
a casar com uma mulher livre. Nas sociedades matrilineares do Norte de
Moçambique (donde provém este conto), são os homens que se integram nos espaços
familiares das esposas. Nestas sociedades, o chefe de cada um destes espaços é
o tio materno da esposa. O homem casado tem de sujeitar-se às normas e regras
que este traça. Se se revolta e impõe as suas, perde o seu estatuto de marido e
é expulso, ficando cada cônjuge com o que levou para o lar. Cumprindo sempre o
que os passarinhos lhe iam dizendo durante a sua viagem em busca de «riqueza»,
Namarasotha acabou por encontrá-la: casou com uma mulher livre e obteve um lar.
Mas por não ter seguido o conselho da mulher, perdeu o estatuto dignificante de
homem adulto e casado.
Com
Informações do Portal Geledés
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