A educação das relações étnico-raciais e o ensino escolar no Ceará

 

Cartaz criado pelo CONSED para celebrar os 20 anos da criação da Lei n° 10.639/2003. (FOTO | Divulgação). 


Por César Pereira, Colunista

No ano de 2008, três anos após a criação da Lei n° 10.639/2003 esta passaria por modificações importantes, pois a sua abrangência seria ampliada com a introdução da obrigatoriedade de estudar a História e Cultura Indígena nas escolas.

No dia 11 de março de 2008, o Diário Oficial da União publicou a Lei n° 11.645 que modificava mais uma vez a LDBN/1996 que já havia sido modificada cinco anos antes com por meio da Lei n° 10.639/2003 que criou a necessidade de mudanças nas diretrizes e bases da educação nacional para se instituir nas escolas o ensino da História e da Cultura Africana e Afro-brasileira.

Leiamos o texto da nova lei:

LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008.
Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o  O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 26-A.  Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1o  O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o  Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR)
Art. 2o  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília,  10  de  março  de 2008; 187o da Independência e 120o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Fernando Haddad (Texto da Lei n° 11.6345/2008, Disponível em http://www.planalto.gov.br, acesso em 13 de junho de 2021).

O objetivo da nova lei não era substituir a de 09 de janeiro de 2003 que instituiu o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira, seu principal objetivo como fica bem claro no corpo do texto é o de estender aos indígenas o direito de ter sua história e cultura igualmente abordadas no currículo escolar das instituições de ensino básico brasileiras.

No entanto ao fim do primeiro lustro da Lei n° 10.639/2003 não havia nenhum sinal de que a Secretaria de Educação do Estado do Ceará estivesse interessada em promover a sua efetivação, pois até o ano de 2007 as da ERER (Educação para as relações étnico-raciais) ainda eram desconhecidas como políticas antirracistas pelos docentes cearenses.

A Lei n° 10.639/2003 obtivera das autoridades cearenses em educação pouquíssima atenção institucional, os órgãos estaduais responsáveis pela estrutura e funcionamento da educação no estado pouco sabiam sobre políticas educacionais antirracistas. O papel da SEDUC até aquele momento se limitara a enviar orientações às CREDE’s/SEFOR, que por sua vez deveriam enviar orientações para as coordenadorias escolares a fim de incluir a ERER nos estudos das semanas pedagógicas de 2007 ou 2008.

Tais orientações eram vagas e chegaram às escolas apenas como sugestões de trabalho e não como projetos de estudos obrigatórios para serem desenvolvidos ao longo do ano letivo. Muitas escolas ignoraram as orientações, ignoraram principalmente porque desconheciam a Lei 10.639/2003 e a nova Lei 11.645/2008 era igualmente ignorada pelos educadores, gestores e coordenadores das escolas.

Outro fator que contribuiu para que entre os anos de 2008 a 2012 a ERER ficasse praticamente desconhecida das escolas cearenses foi à falta de preparo dos professores e coordenadores pedagógicos para desenvolver currículos e aulas voltadas para o ensino de História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena. Como praticamente não houve formações realizadas pelas secretarias municipais de educação e pela secretaria estadual de educação para compor bancos de formadores escolares sobre a ERER, o negro e o indígena continuaram a margem do cotidiano das salas de aula cearenses.

Apesar de o Movimento Negro atuar intensamente desde o ano de 2005 na busca de efetivação da Lei n° 10.639/2003 na rede de ensino cearense, as ações desenvolvidas no período de 2005 a 2010 seriam pontuais. Tais ações não chegaram a atingir o corpo docente da rede de enino do estado e dos municípios o que ocasionou um enorme vácuo nas práticas de ERER na cultura escolar cearense por quase uma década após a sanção da lei em 09 de janeiro de 2003.

Ao final da primeira década do século XXI o negro continuava invisível nos currículos da escola cearense e nos materiais didáticos sobre a história do Ceará os relatos tradicionais onde a história dos afrocearenses aparece apenas limitada ao projeto de abolição no Ceará predominam.

O mesmo discurso que permeavam as produções didáticas de Batista Aragão nas décadas de 1980 e 1990 quando ao abordar a histórias dos pretos cearenses restringe-se sua participação na historiografia do Ceará ao breve capítulo sobre a abolição em 1884 e aos relatos sobre a suposta escassa mão-de-obra escravizada utilizada pelos proprietários de terra cearenses.

Um exemplo de material tradicional sobre a história do Ceará e que mantém o negro e o indígena invisibilizados na história do nosso estado é o manual didático Ceará, história para a construção da cidadania de Marlene Corrêa, editora FTD, primeira edição publicada em 2004, livro aprovado pelo PNLD/2004 e posteriormente muito utilizado no ensino de História Regional no ensino fundamental das escolas cearenses.

O livro foi amplamente aceito e suas sucessivas edições e reedições mostram que ele se tornou uma referência didática para os professores de História no Ceará durante uma década. O livro possui uma estrutura tradicional dividida da seguinte forma: Introdução; Vivendo e aprendendo; 1. O estudo da História; 2. O Ceará colonial; 3. No tempo dos imperadores; 4. O Ceará republicano; 5. Nossa cultura, nossas tradições. O indígena aparece no capítulo 2 e desaparece nos seguintes, o negro aparece nas páginas finais do capítulo 3 e não é mais citado no livro.

A representação do negro que a autora faz é estereotipada na figura do escravo que se submete a escravidão e aguarda pacientemente a redenção através das mãos dos abolicionistas brancos, o único negro citado no livro como personalidade história é Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar que é nomeado esporadicamente quando da greve dos jangadeiros de 1881.

Narrativa estereotipada, tais narrativas ao serem usadas pelo professor através manual didático no espaço das salas de aula em nada contribui para promover uma educação antirracista e nem tampouco incluir o negro e o indígena no cotidiano do ensino de história das salas de aula das escolas públicas do Ceará.

Assim mesmo após as DCN’s/2004 a educação cearense continuava a margem de um projeto efetivo de ERER e mesmo com a atuação do Movimento Negro a resistência daqueles que procuravam sustentar a crença de que no Ceará não havia negro e que não havendo negro era desnecessário uma lei cujo objetivo era promover uma educação antirracista continuava sendo eficaz e travando a efetivação da Lei n° 10.639/2003 no estado.

Sem nenhum preparo para abordar questões étnico-raciais os professores continuavam dando aulas a partir da perspectiva de uma história exclusiva da branquitude. Mesmo os conflitos escolares, isto é, os episódios de flagrantes práticas racistas no cotidiano escolar eram tratados apenas como indisciplina escolar.

Pois segundo Munanga:

(...) alguns professores por falta de preparo ou por preconceitos neles introjetados não sabem lançar mão das situações flagrantes de discriminação no espaço escolar e na sala de aula como um momento pedagógico privilegiado para discutir a diversidade e conscientizar seus alunos sobre a importância e a riqueza que ela traz a nossa cultura e na nossa identidade nacional. (MUNANGA, 2001, p. 7-8).                                                          

Assim, de acordo com Munanga, é praticamente impossível promover uma educação antirracista se não há uma formação de professores que atuem na sala de aula como promotores de um ensino que construa uma mentalidade antirracista nos estudantes. Professores sem formação apenas repetirão os discursos segregacionistas da mídia e dos livros didáticos escritos pela branquitude.

O descaso da SEDUC-CE com a efetivação da Lei n° 10.639/2003 na rede de ensino cearense, a precariedade dos materiais didáticos disponíveis e o despreparo dos professores e gestores das escolas para atuar de forma direcionada sobre a questão ERER Se tornarão ao logo das décadas de 2000 e 2010 empecilhos significativos que impedirão a introdução de uma prática de educação antirracista nas escolas cearense.

Em 2008 a historiadora Simone Souza reuniu vários outros historiadores cearenses para um projeto de fôlego editado pela Fundação Demócrito Rocha. Esse grupo de novos historiadores cearenses produziu o livro Uma Nova História do Ceará, nesse importante trabalho há um capítulo do historiador Eurípedes Funes intitulado Negros no Ceará, (Página 103 a 134). Ocorre nesse livro uma importante mudança de perspectiva com relação à presença do negro na história do Ceará, pois já não vemos mais a narrativa do negro passivo, da escravidão sem traumas, do branco escravocrata amigo do negro, do negro escravizado tratado como pessoa da família, narrativa que prevalecera na historiografia cearense do século XX.

Infelizmente o livro não chegou às escolas cearenses, não chegou aos professores da rede pública cearense e sua leitura ficou praticamente restrita aos professores universitários e aos interessados na história do Ceará. Mesmo assim as mudanças de perspectiva com relação à história do negro em nosso estado se intensificavam e vários pesquisadores instigados pela possiblidade de propor uma nova abordagem da questão da escravidão, da abolição e pós-abolição no Ceará, bem como da participação decisiva e o protagonismo evidente dos afro-cearenses na cultura e na história do estado começaram todo um processo de reescrita dessa história.

Ao longo da década de 2010 presenciaremos o aumento das pesquisas sobre a história do negro no Ceará. Em 2010 haveria um ganho importante para a população Cearense e em especial a população negra, seria instalada em Redenção, município da Zona Norte do estado à sede da UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira).

A escolha de Redenção foi proposital, pois segundo uma tradição historiográfica do Ceará teria sido a primeira cidade do estado a abolir o trabalho escravo em 01 de janeiro de 1883. A partir desse momento começará a ocorrer um importante intercâmbio cultural e epistêmico entre o Movimento Negro Cearense, Movimento Negro Brasileiro e principalmente com os países africanos, pois vários estudantes das nações lusófonas da África vêm estudar no Ceará.

O número de pesquisadores sobre o negro, sua história e cultura no Ceará cresce em decorrência não somente dos estudos realizados na UNILAB, pois vários pesquisadores da Universidade Regional do Cariri (URCA) passam a dedicar sua atenção e pesquisas ao estudo da escravidão no sul do estado, dedicam também suas pesquisas ao estudo do protagonismo negro na cultura caririense.

A atenção das universidades volta-se também para a efetivação da Lei n° 10.639/2003 nas escolas cearenses. Durante a década de 2010 a SEDUC-CE e as secretarias municipais de educação serão cobradas para realizarem seminários, fóruns e formações pedagógicas voltadas para as ERER.

Incluir a História e a Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena nos currículos das escolas do Ceará exige necessariamente uma reescrita da história do Ceará, pois a crença geral é a de que no estado quase ou não existem negros e nem tampouco índios. Logo a pergunta que os professores se fazem é esta – por que ensinar sobre um conteúdo que não interessa aos cearenses?

O absurdo dessa crença está no fato de ela haver se incrustado de tal modo na mentalidade cearense que vigora a falta percepção de uma população cearense amplamente miscigenada onde brancos, negros, pardos, índios, vivem harmonicamente, numa sociedade com pleno equilíbrio étnico, cujo alicerce é a aceitação mútua e a plena participação de todos os cearenses na estrutura social, econômica e política do estado.

Não há racismo no Ceará porque não há negro no Ceará, essa é a crença geral. Foi esse tipo de pensamento que sempre buscou travar as lutas negras em nosso estado, foi esse tipo de ideologia racista que procurou insistentemente impedir a efetivação da Lei n° 10.639/2003 nas escolas cearenses.

Procurando manter uma celebração do projeto de abolição da escravidão forjado pela branquitude a intelectualidade cearense invisibilizou o negro da história do estado, criou uma versão onde a população afro-cearense nunca está presente, uma história que ensina sobre negros passivos diante da escravidão, sobre intelectuais brancos que se revoltam contra a escravidão que envergonhava o Brasil perante as nações civilizadas, uma história que inventa heróis brancos para serem cultuado nas salas de aula.

A ausência do negro, sua história e cultura no cotidiano das salas de aula cearenses atravessou a primeira década do século XXI e foi pela década de 2010 adentro. Somente em meados dessa segunda década do século e devido às pressões do Movimento Negro, dos professores egressos das licenciaturas que a partir de 2008 passaram a ter na grade curricular de seus cursos a disciplina de História e Cultura Africana e Afro-brasileira e Didática do Ensino da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, tudo isto foi importante para impulsionar o caminho para a efetivação da Lei n° 10.639/2003 na rede de ensino cearense.

É neste momento que se desenvolve um mal-entendido sobre educação para as relações-étnico raciais nas escolas cearenses. Tal mal-entendido está no fato de que gestores e professores passam a comemorar o dia 20 de novembro, dia da consciência negra como sendo uma prática pedagógica inclusiva na escola. O dia 20 de novembro passa a ser estereotipado como o dia do negro e de sua cultura exótica.

Essa prática pedagógica que consiste em escolher o dia 20 de novembro para realizar algumas atividades escolares sobre a questão da escravidão no Brasil, geralmente atividades sobre a abolição da escravidão, composta de eventos ou aulas sobre o Quilombo dos Palmares, a capoeira, as danças folclóricas, as comidas baianas. Mas depois de passado o dia 20 de novembro a história do negro volta a cair no esquecimento para ser lembrada de forma apenas pontual e sempre voltada para a questão da escravidão ao longo do ano letivo;

Adotar ações pontuais ligadas exclusivamente ao dia 20 de novembro como sendo uma forma de cumprir a Lei 10.639/2003 é um engano e um autoengano a qual os professores e as escolas em geral se impõem. A lei como vimos instrui os docentes e autoridades em educação sobre a necessidade de que a História e a Cultura Africana e Afro-brasileira devem fazer parte do currículo escolar e principalmente estarem devidamente distribuídas ao longo do ano letivo no ensino das disciplinas escolares. Nenhuma ação pontual satisfaz a lei e não a torna eficaz no seu maior objetivo que é o de criar uma prática de educação antirracista nas escolas brasileiras.

A programação dessas ações pontuais desenvolvidas nas escolas não somente do Ceará, mas da maioria das escolas brasileiras, restritas ao dia 20 de novembro ou a semana em que está inserida a data, é uma programação de carácter meramente expositivo e quase sempre apenas repete os estereótipos do senso comum sobre o negro na sociedade brasileira escravocrata do século XIX ou os estereótipos da sexualização dos corpos negros, principalmente do corpo da mulher negra.

Na rede social Youtube é possível encontrar registros dessas comemorações alusivas ao dia 20 de novembro nas escolas. Analisamos cinco desses vídeos para refletir sobre os procedimentos pedagógicos adotados nas escolas com relação à questão das ERER e como professores e gestores escolares interpretaram a necessidade de trabalhar a História e a Cultura Africana e Afro-brasileira restringindo a efetivação da Lei n° 10.639/2003 e as DCN’s/2004 aos eventos esporádicos em uma semana de novembro.

No vídeo intitulado Thiago participando da coreografia da C.E. Prefeito Luiz Guimarães - Consciência Negra (escravos), publicado no endereço https://www.youtube.com/watch?v=NLHivoDNn1E, fotos capturadas abaixo nas figuras 4 e 5 adolescentes fantasiados de escravos encenam uma coreografia da escravidão. Vestidos com calças brancas de algodão, meninos negros fazem mímicas de negros acorrentados que de repente quebram os grilhões da escravidão enquanto uma banda marcial toca músicas para que eles desfilem seminus no centro da cidade logo atrás de meninos brancos vestidos de colonizadores.

Para a mentalidade da branquitude o negro não tem história além da história da escravidão narrada nos livros didáticos aos próprios estudantes negros, ela é responsável pela mentalidade que ver nos pretos apenas coadjuvantes de uma História predominantemente branca. Conforme podemos observar na Figura 3 ensinamos nas escolas que o preto só aparece como trabalhador escravizado na história nacional. Conforme (MUNANGA, 2008), a elite que sustenta esse tipo de ensino de história impõe a ideologia de que o Brasil não é branco, nem tampouco negro, o país é miscigenado e o negro e o índio contribuíram para a formação dessa nação. É ainda segundo (MUNANGA, 2008) o discurso racista que atribuí ao banco o protagonismo na nossa História e ainda uma vez mais afirma que negros e indígenas tiveram papel político relevante nela. A ideia de um Brasil miscigenado mais uma vez tranquiliza a consciência racista da nossa elite e da nossa intelectualidade branca, pois garante algum lugar do escravo passivo para o negro na História e permite a crença de que o problema do país não é racial, mas unicamente social. Observemos as Figuras 4 e 5 que mostra a exposição pública de estudantes fantasiados de escravos e indaguemos: se não há racismo no Brasil, então por que as narrativas da branquitude sobre a história do negro no país se restringe a escravidão?

Segundo Prescyla de Fátima Vieira Venâncio:

Quando falamos em representatividade negra percebermos o quanto atualmente se vem falando sobre o tema, más muitas pessoas desconhecem o real significado e o efeito que trás na construção da identidade negra. Infelizmente a história da escravatura é abordada de forma a minimizar o impacto que a escravidão causou no negro “escravo”, no negro “escravo liberto” e o impacto que causa no negro “descendente de escravos”. (Representatividade como construção de identidade, Disponível em: https://www.geledes.org.br/representatividade-como-construcao-da-identidade/, acesso em 22 de jul. de 2021).

Atuando como mostra a Figura 4, a escola fortalece a imagem da escravidão ligada ao negro em vez de propor um amplo debate sobre essa parte nefanda da história do Brasil. As Figuras 4 e 5 mostram que não há nenhuma disposição de reflexão a intensão do desfile foi apenas mostrar o negro como escravo. A comunidade escolar não tendo compreendido o objetivo proposto pela Lei n° 10.639/2003, apenas reproduziu o discurso corrente de que a história do negro no Brasil se restringe basicamente aos anos de escravidão e as suas contribuições (na linguagem racista) com algumas danças e costumes para a cultura brasileira.

Figura 4. Desfile cívico-escolar C.E. Prefeito Luiz Guimarães.  (FONTE | Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=NLHivoDNn1E, acesso em 13 de julho de 2021).

A imagem reproduz com evidência notória todos os estereótipos sobre o negro no Brasil. Através desse vídeo vemos que a associação entre negros e escravidão ainda prevalece, isto é, para os professores das escolas brasileiras, falar do negro é naturalmente falar sobre os escravos e o sofrimento da escravidão. Não há um posicionamento crítico ou reflexivo. A opção da escola em questão foi expor em via pública crianças e adolescentes fantasiados de escravos para abordar a história do negro.

Ao fazer essa exposição pública de seus estudantes vestidos como negros escravizados estereotipados o corpo docente da escola sustentou e manteve a narrativa tradicional, expôs uma história fictícia sobre a população negra brasileira e em vez de aproveitar o evento para problematizar o racismo estrutural e a negação da razão negra, trabalhou no sentido oposto, favoreceu ainda mais o discurso racista e fortaleceu o racismo estrutural do qual a própria escola comunga como instituição inserida dentro de uma sociedade racista.

A exposição pública de crianças e adolescentes fantasiados de escravos em nada contribui para a reflexão sobre a escravidão e as lutas contra ela no Brasil, observemos na Figura 5 como o desfile cívico apenas reproduz os estereótipos sobre o negro brasileiro.

Figura 5. Estudantes do C.E. Prefeito Luiz Guimarães participando do Desfile Cívico de 13/09/2008. (FONTE | Foto do Youtube, capturada em 19 de abril de 2021).

Este desfile ocorreu no ano de 2008, data em que o vídeo foi publicado, portanto em plena a vigência da Lei n° 10.639/2003 e quatro anos após a construção do documento das DCN’s/2004. O desfile é uma remontagem dos estereótipos das telenovelas sobre a população negra e sua função é evidentemente fortalecer a ideologia racista brasileira que sempre representa o negro na história nacional como escravo, nunca como protagonista de uma história de lutas políticas, culturais e de transformação social e econômica do país. O menino que protagoniza o vídeo é um adolescente negro que juntamente com outros foram expostos na rua diante da população da cidade e do palanque das autoridades como representações de uma história branca numa sociedade racista.

Os vídeos Escola em Pacajus comemora o dia da Consciência negra publicado em https://www.youtube.com/watch?v=9aF3XftKbCc, como também o vídeo Dia da Consciência Negra na Escola no Município de Potengi disponível no endereço https://www.youtube.com/watch?v=_2XLbLmZoyk, são ambos de 2015 e repetem os mesmos estereótipos, pois são ações pontuais que elegeram o dia 20 de novembro para festejar alguns traços da cultura negra e expor publicamente as narrativas tradicionais sobre a história do negro no Brasil e no Ceará.

Figura 6. Comemoração do Dia da Consciência negra em Escola Municipal de Pacajus. (FONTE | Foto capturada pelo autor https://www.youtube.com/watch?v=9aF3XftKbCc, acesso em 13 de julho de 2021).


No caso das escolas de Pacajus, Figura 6, município da região metropolitana de Fortaleza, a secretaria de educação da cidade optou por uma programação voltada principalmente para exposição de elementos da cultura afro-brasileira e africana. Na fala dos professores engajados no projeto há alusão à produção de máscaras africanas, oficina de pintura corporal, danças como zumba e funk, além disso, um dos professores entrevistados pela reportagem informa que cada turma teria ficado com um aspecto da história dos negros ou da cultura africana.

Quando prestamos atenção nas falas dos docentes entrevistados no vídeo compreendemos que eles apenas criaram uma exposição do que os alunos produziram durante a preparação para o Dia da Consciência Negra, isto é, não houve um trabalho durante o ano letivo de 2015 para criar uma consciência antirracista na escola, trata-se apenas de mais uma ação pontual que foi proposta pela secretaria municipal de educação para o dia 20 de novembro.

E como observamos na figura 6, houve um equívoco na oficina de pintura corporal, pois as pinturas não reproduzem as pinturas corporais africanas, os adolescentes foram pintados com máscaras do cinema, no caso do estudante entrevistado que aparece no vídeo, ele diz que escolheu uma máscara de zumbi, provavelmente confundiu o líder quilombola Zambi dos Palmares com um personagem dos filmes de terror e ficção.

No município de Potengi localizado no sul do Estado do Ceará a Escola Antônio de Figueiredo Taveira escolheu uma programação também voltada mais para a arte do que para a história. No vídeo vemos os pré-adolescentes vestidos casualmente coreografando uma dança do ritmo baiano conhecido como axé. As meninas vestem-se com shorts curtos e elas dançam sensualmente para os meninos que as acompanham também com bermudas, a coreografia sugere uma sensualidade dos meninos e meninas negras que participam da dança.

Observamos que o espaço onde ocorre a coreografia está tematizado com cartazes sobre a história da escravidão e há toalhas com estampas africanas sobre as mesas. Mas apesar do esforço dos professores podemos compreender pela coreografia que mais uma vez houve um equívoco no entendimento sobre a efetivação da Lei 10.639/2003 e como aplicar as DCN’s/2004 no cotidiano da sala de aula.

Pelos materiais publicados nas redes sociais entre 2008 a 2019 que nós analisamos pudemos observar o despreparo dos professores e das escolas para trabalhar com as ERER. A falta de formações de professores promovida pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará e pelas secretarias municipais de educação inviabiliza a introdução do negro, da sua história e de sua cultura nos currículos das escolas cearenses. É importante destacar que Potengi é um município cearense que possui uma comunidade quilombola e um patrimônio histórico e cultural afro-brasileiro reconhecido institucionalmente pela SECULT (Secretaria de Cultura do Estado do Ceará), a saber, o Reisado e os Ferreiros de Potengi. As Figuras 7 e 8 mostradas abaixo mostram as escolhas feitas pela escola para comemorar o dia da Consciência Negra. São estudantes pré-adolescentes reproduzindo uma dança do carnaval baiano, mais especificamente o que eles fazem é reproduzir os passos criados pelo cantor Léo Santana e seus bailarinos de axé music.

Figura 7. Adolescentes de Escola de Potengi- CE coreografam dança baiana em 2015. (FONTE | Foto capturada pelo autor em 19 de abril de 2021). 

 

Observemos que na Figura 7 adolescentes fantasiados de escravos e índios e aparecem ao lado dos colegas que coreografam a suposta dança afro. Vemos que o equívoco da escola ao trabalhar os pontos da Lei 10.639/2003 foram muitos. Tal como já ocorrera nas encenações mostardas nas figuras 5 e 6 aqui as contradições e interpretações erradas sobre a cultura afro-brasileira ainda predomina. Isto acontece por causa da pouca preparação dada aos professores para trabalhar com educação antirracista nas redes estaduais, municipais e privadas.

Figura 8. Adolescentes de Escola de Potengi- CE coreografam dança afro em 2015. (FONTE | Foto capturada pelo autor em 19 de abril de 2021).

Até o ano de 2015 as formações de professores em ERER no Ceará foram escassas. Mesmo diante da necessidade de promover um amplo debate sobre a reorganização curricular e a criação de um projeto de educação antirracista na rede de ensino do Estado do Ceará e mesmo perante a obrigação de fomentar a adoção de projetos municipais de educação étnico-racial os envolvidos na criação de ações que dessem aos professores da rede estadual e municipal condições de abordar a História e a Cultura Africana e Afro-brasileira a partir de uma perspectiva crítica e reflexiva permaneceram à margem de um compromisso profundamente engajado na efetivação da Lei n° 10.639/2003 no Ceará.

Sem preparação quase nenhuma para cumprir as diretrizes para uma educação antirracista estabelecida em 2004, os professores cearenses não têm como incluir uma prática efetiva de ensino antirracista nas suas aulas e as escolas não compreendem como criar um currículo antirracista. Diante dessas falhas das autoridades de educação do Estado do Ceará as ações pontuais se multiplicaram dentro das escolas e a ausência de uma proposta clara de educação antirracista no Ceará atravessou a década de 2010 mantendo assim o negro fora do currículo das escolas da rede de ensino de nosso estado.

Em 2015 finalmente a SEDUC-CE estruturou a realização de uma formação intensiva de professores da rede estadual e municipal sobre a ERER. A formação foi realizada na cidade de Fortaleza na modalidade presencial e semipresencial e contou com a participação do CEFOP (Célula de Formação Programas e Projetos).[1] O processo de formação de professores ocorreu entre agosto de 2015 a janeiro de 2016 e o objetivo era criar uma equipe de replicadores que levariam para os munícipios do interior do estado e para as CREDE, as orientações necessárias para viabilizar o ensino de Historia e Cultura Africana e Afro-brasileira na rede pública de ensino do estado.[2]

Para o curso foram disponibilizadas 150 vagas nas quais poderiam se inscrever os professores das escolas estaduais independente da disciplina que lecionassem. Do total de vagas ofertadas somente 125 foram preenchidas. Concluídas as inscrições os participantes foram redistribuídos em cinco turmas cada uma delas sob a responsabilidade de um tutor. Os dados do curso que estão disponíveis no site http://ead.seduc.ce.gov.br/course/index.php?categoryid=74, informam que os tutores responsáveis pelas turmas foram Jenilson Sousa Nogueira (CEFOP), Rosilene Aires (E. E.F. M Senador Osires Pontes), Viviana Cavalcante Pinheiro de Lima (CEFOP), Anna Maria de Lira Pontes (E. E. F. M Jáder Moreira de Carvalho), Antônio Alex Pereira de Sousa (E.E.F.M Polivalente Modelo de Fortaleza), portanto professores pertencentes ao CEFOP e também à rede estadual de ensino.

O curso de História e Cultura Afro e Indígena Cearense teve duração de 120 horas e foi dividido em dois módulos. A primeira etapa na modalidade presencial ocorreu em Fortaleza no dia 18 de setembro de 2015 e contou com a colaboração de professores convidados das universidades cearenses que realizaram seminários e oficinas visando preparar os participantes do curso para promoverem nas suas escolas e municípios a efetivação da Lei n° 10.639/2003 e a Lei n° 11.645/2008.

A etapa seguinte correu na modalidade a distância através da Plataforma da Secretaria de Educação do Estado do Ceará entre o período de 27 de setembro de 2015 a 31 de janeiro de 2016. Os conteúdos trabalhados no curso foram: 1) Percebendo a Identidade; 2) Reconhecendo o contexto; 3) Pensando o cotidiano; 4) Refletindo o currículo escolar e 5) Vivências e Práticas. Depois de mais de uma década de vigência da Lei n° 10.639/2003 essa foi à primeira formação contínua e não esporádica realizada pela SEDUC-CE com o objetivo de preparar os professores da rede de ensino de nosso estado para trabalhar as ERER no cotidiano da sala de aula e viabilizar as possibilidades de um currículo escolar antirracista nas escolas cearenses.

A realização de atividades escolares tematizando a educação para as relações étnico-raciais apenas de forma pontual, restritas apenas ao dia 20 de novembro, o silêncio das escolas do estado sobre a história e acultura dos afrocearenses e a falta de formações para os professores preparando-os para ensinar a História e a Cultura Africana e Afro-brasileira no cotidiano de suas aulas revela que as escolas cearenses refletem os principais aspectos da sociedade do Estado do Ceará.

Assim percebemos que a escola é o espelho da sociedade brasileira estruturalmente racista, a escola cearense é igualmente um espelho da sociedade cearense igualmente racista. Como historicamente o negro foi invisibilizado e extirpado da história e da historiografia do Ceará, mesmo com o advento da Lei n° 10.639/2003 sua presença no Ceará continuou sendo negada durante mais de uma década após a promulgação da lei em 09 de janeiro de 2003. Foi preciso uma atuação política e pedagógica do Movimento Negro Cearense para que o negro passasse a ser visível na História do Ceará e dentro das escolas do estado.

O censo de 2010 mostrou que o Ceará possui uma população composta por aproximadamente 63% de negros (Pardos 61,84% e pretos 1,24%), isto significa que apesar do discurso da branquitude tentar impor a falsa narrativa de que no Estado do Ceará não havia negros, estes resistiram e compõem hoje a maior parcela da população cearense.[3]

Mesmo com uma população majoritariamente negra e com as escolas públicas frequentadas principalmente por crianças e adolescentes negros os currículos escolares no Ceará continuaram eurocentrados e promovendo a história e a cultura da branquitude como sendo o padrão epistêmico e estético natural.

REFERÊNCIAS

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra, Belo Horizonte, Autêntica 2009.

VENÂNCIO, Prescila de Fátima Vieira. Representatividade como Construção da identidade, Disponível em https://www.geledes.org.br/representatividade-como-construcao-da-identidade/, Acesso em 23 de jul. de 2021.



[1] Esta célula integra a estrutura organizacional da Superintendência das Escolas Estaduais de Fortaleza – SEFOR. É constituída por uma equipe técnico-pedagógica que oferta assessoria aos profissionais da educação, ficando responsável por realizar encontros formativos, orientações e acompanhamento de ações pedagógicas nas escolas.

[2] Na sua dissertação de mestrado a professora Antônia Valdênia Araújo estudou as formações promovidas pela SEDUC-CE, para garantir a efetivação da Lei 10.639/2003 na rede pública cearense.

[3] Dados disponíveis em https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/ce.html , acesso em 14 de junho de 2021.


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