Não foi fácil para Portugal retirar milhares de pessoas da África para servirem como escravos na América. Longas lutas de resistência foram travadas contra a colonização, que contava com altos investimentos militares e uma política que combinava opressão, violência e alianças com chefes locais.
![]() |
A rainha com seu séquito de guardas e músicos, em desenho de 1622 do frei capuchinho Giovanni Antonio Cavazzi de Montecuccolo, contemporâneo de Nzinga. |
A
trajetória de Nzinga Mbandi é um exemplo de como os chefes centro-africanos
enfrentaram o avanço português. Hábil guerreira, estrategista política e
militar, Nzinga foi uma líder carismática, uma rainha que passou a vida
combatendo e morreu sem nunca ter sido capturada.
Nasceu
em 1582, filha do oitavo Ngola (do qual derivaria o nome Angola), título do
principal régulo do reino do Ndongo. Os portugueses haviam iniciado a
colonização a partir de Luanda sete anos antes, e foram ganhando o interior com
a construção de “presídios” – fortificações militares no curso do Rio Kwanza,
que abrigavam os comerciantes de escravos – e a organização de feiras em que a
principal mercadoria eram as pessoas escravizadas. Criaram também um sistema de
avassalamento de sobas, os chefes locais autônomos que pagavam tributos ao
Ngola em troca de proteção militar e espiritual. Após a invasão portuguesa,
eles eram batizados e se declaravam fieis à Coroa. Essa condição incluía
diversos compromissos: fornecer baculamentos (tributos pagos geralmente em
escravos), dar passagem às tropas do governo, permitir kitandas (feiras e
mercados) em seu território e contribuir com escravos para serem soldados da
“guerra preta” – o pelotão que lutava junto aos portugueses.
A
guerra se generalizava, e com ela o clima de instabilidade. Os sobados
intensificavam ataques a povoados vizinhos para saldar suas dívidas com os
portugueses, pois os prisioneiros capturados em guerra eram escravizados. Ao
sinal de qualquer atitude considerada infiel, o governo português invadia os
sobados e matava seus líderes, substituindo-os por chefes aliados.
Foi
nesse contexto de penetração portuguesa no reino do Ndongo, movido pelo tráfico
negreiro, que Nzinga Mbandi cresceu. No reinado de seu irmão Ngola Mbandi,
agravou-se a tensão entre os locais e os conquistadores. Em 1617, o governador
de Angola, Luis Mendes de Vasconcelos, invadiu o reino do Ndongo para construir
o presídio de Mbaka, a poucas milhas da Cabaça, a moradia do Ngola. O resultado
foi uma guerra intensa, ao fim da qual Ngola, vencido, refugiou-se na ilha de
Kindonga, no Rio Kwanza. Em 1622, João Correia de Sousa assumiu o governo e
decidiu procurar o Ngola para restabelecer a paz, uma vez que o cenário de
guerra paralisara os mercados de escravos. Foi quando Nzinga entrou em cena.
Ngola
Mbandi mandou sua irmã mais velha como embaixadora para negociar a paz com os
portugueses. Na audiência com o governador, ela impressionou a todos por sua
inteligência e habilidade diplomática. Defendeu a manutenção da independência
do Ndongo e o não pagamento de qualquer tributo à Coroa portuguesa, mas se
mostrou aberta ao comércio. Entendendo que a paz com os portugueses passava
pelo batismo cristão, aceitou o sacramento: recebeu o nome de D. Anna de Sousa,
tendo como padrinho o próprio governador. De sua parte, os portugueses se
comprometeram a efetivar a retirada do presídio de Mbaka.
![]() |
Estratégia política em nome da resistência africana ou conversão ao catolicismo, o batismo de Nzinga Mbandi gera controvérsia entre os estudiosos até hoje. |
O
acordo, porém, não foi cumprido nem por aquele governador nem pelos sucessores.
A situação levou ao enfraquecimento político de Ngola Mbandi, que morreu na
ilha de Kindonga, em 1624, em circunstâncias que continuam sendo uma incógnita
para a historiografia de Angola. Nzinga se apoderou das insígnias reais e
assumiu o trono do Ndongo.
A
nova rainha foi associada à possibilidade de libertação do povo Mbundo, etnia
predominante no reino Ndongo. As crescentes fugas de kimbares – escravos que
guarneciam os presídios ou eram dados pelos sobas para comporem a “guerra
preta” – enfraqueciam as tropas lusas, enquanto fortaleciam o exército de
Nzinga. Aproveitando-se desse contexto favorável, a rainha lançou uma campanha
antilusitana, formando e liderando uma confederação de descontentes com a
colonização. Conquistou o apoio de sobas que já haviam se avassalado, além de
poderosos chefes que não pertenciam ao Ndongo, como o Ndembo Mbwila (Ambuíla).
Capturar
Nzinga e reduzi-la à obediência passou a ser um dos objetivos principais do
governo português. Em 1626, o governador de Angola, Fernão de Sousa, arquitetou
um golpe político para que Are a Kiluanje, um vassalo dos portugueses,
assumisse o trono. Nzinga se refugiou na ilha de Kindonga e conseguiu se livrar
do cerco usando sabiamente a geografia do local, deslocando-se pelas diversas
ilhas do Rio Kwanza. Quando as tropas lusas enfim a encurralaram em Kindonga,
ela mandou seus embaixadores informarem que estava disposta a se render e se
avassalar. Para isso, no entanto, pediu uma trégua de três dias. Passado o
prazo, os portugueses perceberam que tinham caído em um golpe: Nzinga já estava
longe dali.
A
rainha foi então buscar proteção junto aos temidos jagas, guerreiros nômades
que se organizavam em kilombos – acampamentos que se deslocavam conforme as
necessidades de guerra, com rígida hierarquia e severa disciplina militar.
Nzinga recebeu o título feminino mais importante no kilombo – Tembanza –,
assumindo funções rituais essenciais. Imprimiu consciência política aos bandos,
que até então viviam errantes, praticando roubos e sem se prenderem a linhagens.
Sob o comando de Nzinga, os kilombos passaram a compor a frente de resistência
contra a ameaça estrangeira. O incrível poderio bélico que Nzinga conseguiu
mobilizar junto aos jagas foi crucial para se manterem livres e vencer os
portugueses por várias vezes.
Por
volta de 1630, Nzinga ocupou o reino de Matamba (Ndongo Oriental), terra
evocativa de seus ancestrais e tradicionalmente governada por mulheres. Foi na
condição de rainha de Matamba que ela soube da invasão holandesa em Angola, em
1641. Ali estava uma oportunidade de estabelecer nova aliança para minar a
presença portuguesa na região. Nzinga aproximou-se dos invasores, e juntos
criaram uma importante rota comercial que conectava Luanda (agora de posse
holandesa) a Matamba, trocando escravos por mercadorias europeias, sobretudo
armas de fogo.
Era
fundamental para a oligarquia do Rio de Janeiro restabelecer o domínio do
mercado de escravos em Angola. Isso foi conseguido em 1648 por iniciativa de
Salvador de Sá, que organizou tropas formadas por índios e bandeirantes para
expulsar os holandeses. A vitória lusa teve o efeito direto de enfraquecer a
rainha Nzinga. Suas duas irmãs foram capturadas e mantidas como reféns pelos
portugueses. Kifunge acabou assassinada em Massangano, acusada de espionagem.
Mocambo ficou presa em Luanda, utilizada como arma política a fim de forçar a
rendição de Nzinga.
O
papa Gregório XV, com o objetivo de diminuir o poder que as coroas ibéricas
tinham acumulado com as colonizações, criara em 1622 a Propaganda Fide – a “propagação
da fé” –, que permitiu a ida à África Central de missionários que não tinham
relações com a Coroa portuguesa. Entre eles estavam os capuchinhos, que
chegaram à região na década de 1640. Nzinga enxergou nesses religiosos outra
possibilidade de fazer novos aliados europeus que não fossem ligados ao governo
português. Por meio do capuchinho italiano Antonio de Gaeta, Nzinga retornou ao
catolicismo em 1656, renegando os ritos gentílicos e aceitando a fé de Cristo.
A conversão ao cristianismo foi uma saída estratégica, pois, já idosa, ela
sabia que a cruz seria o caminho mais rápido para a paz e para conseguir o
retorno de Mocambo, sua irmã indicada à sucessão de Matamba, enfim libertada
pelos portugueses em 1657.
A
líder de Matamba morreu em dezembro de 1663, com mais de 80 anos, sepultada de
acordo com os ritos cristãos. O povo Mbundo a venerou como “rainha imortal”,
que nunca se entregou e que jamais aceitou a submissão aos invasores. Sua fama
atravessou o Atlântico e chegou ao Brasil. Aqui, o nome Ginga, ou Jinga, é
evocado em rodas de capoeira, em congados e maracatus de múltiplas formas: como
guerreira que engana os adversários, inimiga da corte cristã, venerável
ancestral de Angola.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!