Quando
comecei a pensar que estudar história poderia ser uma boa opção para o meu
futuro profissional – em vez de economia, educação física ou medicina;
acreditem, considerei todas essas possibilidades –, um colega de turma na
escola não escondeu sua perplexidade. “Mas,
em que você vai trabalhar?”, perguntou ele. Ao que respondi com a maior
naturalidade: “Vou ser professora e
pesquisadora”.
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Regulamentação da profissão de historiador não significa que só quem tiver graduação na área poderá escrever sobre história. Montagem: Marcelo Garcia. |
Era
a menção à pesquisa que ele não entendia: “Como
assim, pesquisar o passado? O passado a gente conhece. Aprende na escola.
Pesquisa é para o futuro, para os cientistas descobrirem, por exemplo, a cura
do câncer.” Não havia jeito de convencê-lo de que o passado também se
pesquisa, e de que aquilo que aprendemos na escola muda com o tempo – o que
nossos pais aprenderam é diferente do que nós estudamos, que, por sua vez, será
diverso do que ensinarão a nossos filhos.
Provavelmente,
naquela época, eu também não sabia explicar isso direito. E meu amigo
continuava a balançar a cabeça, meio penalizado por eu fazer uma escolha que
lhe parecia estapafúrdia.
O
tempo passou e lembrei dessa história a propósito da polêmica sobre a
regulamentação da profissão de historiador, recém-aprovada pelo Senado Federal
(mais informações no site da Associação Nacional de História).
O
projeto de lei n° 368/09 prevê que a profissão seja exercida por diplomados em
cursos de graduação, mestrado ou doutorado em história. Por exercício da
profissão, entende-se a atuação como professores de história nos ensinos básico
e superior e o “planejamento,
organização, implantação e direção de serviços de pesquisa histórica”, além do “assessoramento voltado à avaliação
e seleção de documentos para fins de preservação”.
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Projeto de Lei aprovado pelo senado prevê que a profissão de historiador seja exercida por diplomados em cursos de graduação, mestrado ou doutorado em história. Foto: Wikimédia Commons. |
As
discussões sobre os objetivos da regulamentação têm sido intensas. Em um país
com tradição corporativa como o nosso – basta lembrar a tentativa de
desregulamentação da profissão de jornalista –, aqueles que defendem a
regulamentação entendem que é preciso garantir mercado de trabalho para
atividades que são geralmente, mas nem sempre, exercidas por historiadores.
Entre
os contrários à regulamentação, há dois tipos de argumento: os que são contra
toda e qualquer regulação profissional, e os que se opõem especificamente à
criação da profissão de historiador, uma vez que esse conhecimento específico
poderia ser adquirido de outras maneiras que não a formação universitária.
Quando
penso no assunto, oscilo. A princípio, sou contra regulamentações, amarras,
prescrições. Ao mesmo tempo, sobretudo em um país em que o Estado é o grande
empregador, resistir à regulamentação é perder oportunidades de ter
historiadores trabalhando em instituições como arquivos e museus. O problema
parece insolúvel: se não podemos acabar com as regulamentações das profissões,
então regulemos a nossa. Mas, quanto mais regulamos, mais longe estamos de nos
livrar das regulamentações.
Equívocos na mídia
Chama
a atenção nessa discussão o fato de o debate na mídia não ter relação com a
polêmica real. Os boatos que andam circulando – e que, se bobear, rapidamente
ganham status de verdade – afirmam que o projeto de lei impede que
não-historiadores escrevam história. Nada disso.
O
projeto não versa sobre a escrita da disciplina; nem poderia. A história é de
ninguém. E de todo mundo. Claro que um pouquinho de conhecimento ajuda, o que
não acontece com todos os que se arvoram a escrever livros na área. Mas isso
não vem ao caso. Quanto mais gente escrever sobre história, quanto mais filmes
e novelas de época houver, melhor.
Mas
existe aí um ponto importante para reflexão. Por trás da defesa da ideia de que
não é preciso ser historiador para se escrever história, nem mesmo ser formado
na área para lecionar a disciplina nas escolas, talvez haja um total
desconhecimento sobre o que se aprende nos cursos de graduação em história –
considerando que a maioria dos assim chamados historiadores serão os graduados
na área – e que seria tão importante para o exercício da profissão.
Isso
me remete de novo às ponderações de meu amigo de escola. Será que as pessoas
acham – como ele achava – que nos cursos de história estudam-se fatos, datas e
nomes relacionados a processos históricos? Para aprender isso, certamente, não
é preciso cursar uma graduação na área. A leitura de uma boa enciclopédia
basta. E, se for para ensinar isso nas escolas, também não há necessidade de
ser formado em história.
Mas
não é isso o que aprendemos e ensinamos nos cursos de graduação na área.
Aprendemos, e ensinamos, que existe um ‘olhar do historiador’, ao qual Benito
Schmidt, presidente da Associação Nacional de História, faz referência ao
defender a presença de historiadores em diversos espaços sociais.
E
esse olhar, que nada mais é do que a compreensão da natureza do conhecimento
histórico, é fundamental tanto para quem vive de pesquisar e escrever história
quanto para quem vive de ensiná-la, em qualquer nível. Sem entender que o
conhecimento histórico é por essência mutável e incompleto, sem perceber que o que
se sabe sobre determinado período ou processo muda com o tempo, com novas
pesquisas, novas reflexões, não se faz história. É isso o que o futuro
profissional de história aprende na universidade.
Esse
‘olhar do historiador’ pode até ser aprendido por quem não faz um curso
superior de história. Mas não será bom historiador quem não apurar essa mirada,
quem não observar através do objeto estudado, quem não souber enxergar.
* Keila
Grinberg, do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro
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