Toda
vez que um assunto polêmico surge na mídia, viraliza nas redes sociais e chega às
rodas de amigos, reuniões de família e mesas de bar, começam a pipocar, por
toda parte, juízos de valor genéricos a respeito “do Brasil” e “do povo
brasileiro”.
Essas
“análises”, que estão em alta no atual momento pré-Copa, costumam ser, mais
especificamente, materializadas na forma de chavões babacas mais antigos que a
minha avó: são os famosos “só no Brasil”,
“isso é Brasil!”, e, ainda, o
clássico e meu preferido “o problema é a cabeça do brasileiro” (que também pode
aparecer na carinhosa versão “o povo
brasileiro é burro”).
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Charge: Vitor Teixeira. |
Que
a internet e os círculos sociais estão recheados de ideias idiotas,
preconceituosas e desprovidas de qualquer senso lógico ou nexo com a realidade
não é novidade. O problema aqui é que as pérolas pertencentes à categoria “Brasil é uma merda porque é uma merda, e eu
não tenho nada a ver com isso” não vêm sendo enquadradas como apatia
mental, como deveriam, mas como demonstração de revolta consciente e politizada
“contra tudo que está aí”. Um quarto
dos brasileiros acha que uma mulher de shortinho merece ser estuprada? “Isso é Brasil!”. A Petrobrás fez um mau
negócio em Pasadena? “Brasil, né?”.
Algumas obras da Copa do Mundo atrasaram? “Só
no Brasil mesmo!”.
Não.
Não. E não. Na verdade, esse tipo de pensamento vazio, reducionista e arrogante
empobrece o debate dos problemas que estão por detrás dos acontecimentos (que
acabam sendo levianamente rotulados como “coisa
do Brasil”), além de estimular e legitimar uma atitude resignada e egoísta
ao melhor (ou pior) estilo Pôncio Pilatos (“lavo
minhas mãos, porque a merda já estava feita quando eu cheguei aqui”).
“Só no Brasil”? Não.
Em
primeiro lugar, vale uma pesquisa prévia a respeito do assunto sobre o qual se
está emitindo opinião: será mesmo que o Brasil é o único país a enfrentar esse problema
específico que você conheceu superficialmente através do link que seu amigo
compartilhou no Facebook? Pode ter certeza que, em 99% dos casos, a gente
carrega o fardo junto com mais algumas dezenas de países (se não com todas as
nações do planeta), ainda que ele pese mais ou menos conforme o caso.
E
não estamos falando apenas de países considerados “mais atrasados” e “menos
civilizados” que o Brasil. Tem corrupção na Europa, os Estados Unidos mal
possuem um sistema público de saúde, o racismo segue forte em diversos países “desenvolvidos”, e a Inglaterra é
descaradamente sexista. Por isso, antes de iniciar um festival de ignorância,
babar ovo de gringo gratuitamente e resumir seu discurso a uma frase
despolitizada como essa, lembre-se que o Google está a apenas um clique. Caso
contrário, você corre o risco de continuar contribuindo para que 40% dos
nascidos no Brasil prefiram ter outra nacionalidade (apesar de o Brasil ser
sonho de consumo internacionalmente).
Se “isso é Brasil”, então “isso” é
você também.
Dou
a qualquer um o direito de achar o Brasil uma merda monumental e sem
precedentes, desde que admita ser uma merda de pessoa também. Assim, quando
alguém disser “o Brasil é um lixo” ou
“o povo brasileiro é burro”, na
verdade estará dizendo “eu sou um lixo”
e “eu sou burro”. Combinado? Porque,
caros amigos niilistas radicais, é estranhamente conveniente excluir-se,
deliberadamente, do conjunto de brasileiros, negando a própria cultura e
origem, bem na hora em que “a coisa
aperta”, não é?
As
expressões “isso é Brasil” ou “esse é o povo brasileiro” não são,
portanto, apenas generalizantes e reducionistas, mas também um tanto
arrogantes. Quem as profere se julga acima dos defeitos da sociedade
brasileira, e é incapaz de perceber que suas próprias convicções, ideias e
preconceitos são na verdade um reflexo das características e problemas da
sociedade brasileira como um todo.
Nem
é preciso nem dizer que esse tipo de perspectiva segregatória, em que o locutor
se coloca em posição imparcial e de superioridade em relação ao restante da
população, gera verdadeiros fenômenos de cegueira coletiva. Um exemplo clássico
é a inabilidade de algumas pessoas em enxergar o próprio racismo, o que
popularizou expressões como “não sou
racista, mas…”, culminando com a negação da existência de racismo no Brasil
por determinadas “correntes ideológicas”.
Então,
antes que comecemos a negar outros “ismos” por aí (o que, a bem da verdade, já
acontece), vamos parar de subir em pedestais imaginários e nos colocar em
nossos devidos lugares: na arquibancada junto com o resto do povão e toda a
torcida do Flamengo.
Se “isso é Brasil”, repetir esse
chavão não vai mudar nada (talvez só pra pior).
Imagine
a seguinte situação hipotética: um sujeito dito “politizado” está surfando na rede, checando o feed de notícias do
Facebook, dando um rolê pelo Twitter e teclando no WhatsApp, quando,
casualmente, se depara com uma notícia revoltante (sabemos que a internet está
cheia delas). Indignado com a situação ultrajante da qual acaba de tomar conhecimento,
nosso amigo resolve mostrar toda a sua revolta por meio de um comentário
impactante no perfil de quem, muito sagazmente, compartilhou aquela notícia
chocante com ele. “Fazer o que, né,
colega? Isso é o país em que vivemos. Viva o Bra-ziu!”.
Satisfeito
com sua contribuição, o internauta bem informado segue para os próximos “hits
do dia” nas redes sociais, afinal, “isso
é Brasil” — não tem jeito. E ele, pessoa politizada e, portanto, ciente do
“beco sem saída” que é o nosso país, nem vai se dar ao trabalho de pensar sobre
o assunto (e muito menos fazer algo a respeito), uma vez que essa nação é feita
de pessoas naturalmente incompetentes e políticos naturalmente corruptos.
Confere? Não confere. Na verdade, cidadão politizado, o problema, neste cenário,
não é o Brasil. É você.
Quando
um indivíduo, ao deparar-se com determinado problema que considera sério,
resume seu pensamento e manifestação à depreciação verbal genérica e gratuita
de seu país, só podemos concluir que ele atingiu um nível sobre-humano de
apatia mental e social. Além de não agir para mudar a situação que o indignou,
contribui para difundir um clima negativo, conformista e preguiçoso por onde
passa, contagiando outras pessoas com a ideia deturpada de que é impossível
mudar as coisas para melhor (ou que simplesmente não vale a pena), porque “o povo brasileiro é assim mesmo”.
Resumo
da ópera: quem não quiser realmente tentar entender o problema, trocar ideias
sobre como solucioná-lo, contribuir com organizações e movimentos sociais
envolvidos no assunto, criar ou participar de campanhas de conscientização, e
procurar votar em políticos empenhados na causa em questão, que pelo menos pare
de encher o saco com reducionismos pessimistas e burros. A esfera pública
agradece.
“Isso é Brasil” agora, mas pode mudar.
E depende de você também.
Imaginem
se, há 30, 40 anos atrás, quando ainda vivíamos uma ditadura, todos pensassem
que o “Brasil é assim mesmo”, que
“somos um povo submisso que só funciona na ‘base da porrada’”? Imaginem se a
população tivesse desistido de exigir a redemocratização, e se resignado,
limitando-se a comentar com seus conhecidos, em cafés e restaurantes, que “aquilo era o Brasil”. Foi porque as
pessoas não se conformaram com o que o Brasil era ou parecia ser que hoje nós
vivemos uma democracia plena, onde todos podem se manifestar da forma que
julgam melhor (até de forma superficial e não construtiva, como a que estamos
tratando neste texto).
O
direito à liberdade de pensamento e expressão é indiscutível, e o que deixo
aqui é apenas um humilde conselho: vamos usar essas prerrogativas de verdade.
Para debater, e não para cair em chavões limitados e vazios de que o país é uma
porcaria generalizada, pior que qualquer outro, que nosso povo é burro e
corrupto, que estamos no fundo poço e nunca sairemos dele, e que é impossível mudar
a realidade em que vivemos. Isso não quer dizer, de forma alguma, que devemos
fugir dos problemas ou nos conformarmos com o que já foi conquistado, pois
ainda existem inúmeros desafios a serem superados nesse Brasil continental. Se
“isso” é mesmo o Brasil, a mudança só depende de nós.
A
análise é de Priscila Silva e foi publicado originalmente no Pragmatismo
Político
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