O
futebol, como todos os demais esportes de caráter popular e massivo depois do
início do século XX, foi alvo, e palco, de manifestações racistas. Nos
primeiros tempos, na época da fundação dos grandes clubes e associações (ainda
no final do século XIX), eram as elites que dominavam as instituições
esportivas, que mantinham um férreo controle sobre o mundo dos esportes,
considerado um privilégio – o ócio – das classes superiores. Na Inglaterra, ou
no Brasil, as associações e ligas de futebol impunham regras que excluíam
pobres e estrangeiros – das áreas coloniais na Inglaterra, é claro – e negros e
pardos – no caso do Brasil – da participação efetiva nos esportes. Regras que
impunham o “desinteresse” e o “amadorismo” aos esportistas, quer dizer, não
poderiam ter remuneração de qualquer dito, afastava todos aqueles que não
tinham rendas elevadas da prática regular de esportes.
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Daniel Alves, lateral do Barcelona, foi alvo recentemente de Racismo. |
No
dizer de Peter Gay, um historiador que se debruçou sobre a chamada “Era
Vitoriana”, as elites das “public school” (escolas das classes superiores
inglesas) não queriam seus filhos sofrendo caneladas de operários, caixeiros,
ou taverneiros. Assim, durante sua época “heroica”, o futebol foi placo de um
amplo espaço de exclusão e discriminação social. Ao mesmo tempo, outras
modalidades esportivas, como tênis, hipismo, iatismo, críquete e polo eram
considerados esportes mais nobres, menos “suados” e que evitavam as “paixões”
das multidões.
No
entanto, a força do próprio futebol, sua capacidade de empolgação e seu caráter
democrático – afinal todos podem jogar futebol, posto que o “equipamento” (ao
contrário do polo, do críquete, do iatismo, por exemplo) é mínimo e barato, e
tudo pode ser uma bola e uma baliza – acabou por se impor como um esporte de
multidões.
As ligas e associações britânicas procuraram,
ainda, ter o cuidado de separar os filhos de sua aristocracia da massa de
trabalhadores, providenciando campos e equipes que não deveriam ser
frequentadas indiscriminada ou mutuamente, originando equipes elitistas e
outras, excluídas, de caráter “popular”. Os trajes e o comportamento do público
eram vigiados e serviam como elemento de “separação”, além da criação de
camarotes e lugares “VIPs” para as elites no interior dos estádios. Contudo,
desde cedo, os clubes de futebol “operários”, como foi o caso Arsenal, acabaram
conquistando os corações e a fidelidade das massas de esportistas ingleses,
rompendo com a pretensa hegemonia aristocrata nos esportes. Desde sua origem,
obra de um grupo de trabalhadores da “Woolwich Arsenal Armament Factory”, que
decidiram ter seu próprio time em 1886, o Arsenal pode facilmemnte superar as
agremiações da elite universitária das grandes “school” e, em seguida, superar
o criquete, o pólo e o hoipismo como um esporte de massas.
Na Alemanha, onde o futebol tornou-se popular
desde o final da Grande Guerra, superando os esportes de tipo ginástica
coletiva, as associações tentaram afastar estrangeiros e trabalhadores dos
gramados oficiais (inclusive os católicos), o que ocasionou uma longa disputa,
em especial em torno de uma equipe de jogadores do Schalke 04, que nos anos de
1920, colocou em campo um time de trabalhadores ( eram mineiros ) e com alguns
jogadores de origens polonesa e católica, chocando a elite “ariana” das ligas
esportivas alemã. Contudo, a firmeza do Schalke 04, o “azulão”, tornou-o,
então, o papel de clube socialmente integrador.
Na
Alemanha, até 1919, antipatia com o futebol era bastante grande, em particular
entre os adeptos do “Turn”, a ginástica coletiva e praticada ao ar livre.
Somente o “Turn” era considerado um esporte tipicamente alemão, ligado bem mais
ao aperfeiçoamento físico e a disciplina do que a competição (esta seria a
noção de “esporte”, competição regrada, tipicamente britânica e contrária a uma
“Kultur” germânica). Somente depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a
com a morte de milhares de atletas do “Turn” – quase todos voluntários no
conflito – que o futebol se generaliza na Alemanha, passando dos campos de rua
nas cidades da Renânia para as fábricas. Assim, surgem clubes de feição
“operária”, que terão forte oposição e das elites locais, em especial no
tocante ao tema do amadorismo – ou seja, o monopólio daqueles que tinham rendas
e podiam se dedicar aos esportes “desinteressadamente”. O Schalke 04 (fundado em 1904, daí o “04”),
com uma equipe de jogadores-operários (a maioria mineradores), nos anos ´20 –
contemporaneamente ao enfrentamento do Vasco da Gama com a Associação carioca –
será punido e desliga da Liga de Futebol por incorporar operários ao time. Na
Alemanha como no Brasil a história do futebol é uma história da luta pela
inclusão social e pela construção da identidade nacional.
No
Brasil, após a experiência notável de Francisco Carregal, o primeiro jogador
negro no Brasil, que brilhou entre 1905 e 1910, pelo time do Bangu A. C. –
afastado, contudo, dos gramados por insistência da AMEA, a Associação
Metropolitana de Esportes Amadores ( uma associação monopolizada então pela
elite carioca, com os Guinle à frente ) , coube o Vasco da Gama, no memorável
torneio de 1923, trazer negros, pardos e populares para o interior de time de
primeira grandeza, mesmo tendo como consequências o rompimento com as
instituições dirigentes – divisão essa só sanada com o Jogo da Amizade (América
versus Vasco, nos anos de 1930), já sob insistência do Governo de Getúlio
Vargas. Destacou-se aí o jogador “Bolão” (que viria a ser treinador do clube, o
primeiro negro nesta posição).
Assim,
mesmo, em várias equipes, muitas vinculadas a clubes de perfil elitista, o
público e, principalmente, o jogador negro (também árbitros) foram, ainda,
durante bastante tempo alvo de discriminação, como nas famosas histórias do
encobrimento das características étnicas de negros com o uso da “boina” e do
“pó de arroz” em pleno gramado, como construiu-se a imagem do Fluminense
carioca. Talvez tenha sido o grande jogador “Tesourinha”, já em 1952, no
Grêmio, o último grande nome do futebol brasileiro a enfrentar de forma clara
as agruras da discriminação racial.
Porém,
o preconceito ainda imperou, e atrapalhou, o futebol por bom tempo. O caso
clássico foi em 1925, quando o presidente da CBD, Oscar Costa, impediu que
jogadores negros ou mestiços fossem escalados para a seleção brasileira que
jogaria o Campeonato Sul-Americano em Buenos Aires. Suas razões eram claras:
“era necessário preservar a boa imagem do país!”. Venceram os argentinos, em
cuja seleção jogava o genial De Los Santos, um herói negro, artilheiro do
campeonato!
A
popularização do futebol, irresistível depois da popularização do rádio, do
jornal da tela (o inesquecível “Canal 100”) e, enfim, com televisão, acabou por
tornar o fenômeno esportivo massivo, popular e dar ao mesmo a cara do povo
brasileiro: mestiço, empolgado, participativo. Neste sentido, as manifestações
de racismo e de má educação, e de ausência de espírito esportivo tornaram-se
raras nos nossos estádios até frequentemente. Alguns clubes escolheriam, mesmo,
símbolos da negritude, como o “Urubu” flamenguista, como símbolo identitário.
Da mesma forma, a Legislação brasileira, desde da Lei Afonso Arinos, de 1951,
até a Constituição “cidadã” de 1988, passaram a punir com rigor manifestações
racistas, reduzindo a casos esporádicos e, de qualquer forma, chocantes os atos
de ofensa racial.
A
globalização e a multiplicação de equipes em campos – com clubes jogando em
áreas socialmente homogêneas e muitas vezes de mentalidade provinciana -, nos
grandes campeonatos nacionais e internacionais, colocando face à face equipes
de culturas e tradições diferentes, num momento que o fenômeno de massificação
cultural assoma aos meios de comunicação, acentuou, por paradoxo, manifestações
de estranheza, inconformismo e, no limite, de ódio étnico e recusa à diferença.
A globalização pasteurizadora e, mesmo, a crise econômica mundial depois de
2008 – criando nichos de xenofobia e de desconfiança frente ao diferente e ao
estrangeiro até o limite de manifestações fascistas em torcidas como do Lazio
ou do Borrusia - pode, infelizmente,
trazer de volta aos nossos estádios – na Itália, Espanha, Inglaterra e também
na América do Sul, incluindo o Brasil – manifestações de racismo contra
jogadores e juízes, em especial negros e pardos.
Infelizmente,
quando os casos começaram a se multiplicar, as associações e federações
esportivas, foram lenientes e evasivas. Trataram de tapar o sol com a peneira
da miopia. Tal ausência de resposta pronta e direta, incentivou a transformação
de manifestações de frustração social e de decepção perante as atuais condições
de crise social e desemprego, em ódio racial. Em especial na Europa, em países
atingidos por um brutal desemprego (na Espanha cerca de 45% entre os jovens), a
força, o sucesso e a boa remuneração de outros jovens, estes jogadores de
sucesso e de origens etnicamente diversas, constitui-se em alva de ódio. O
combate a este ódio, originado na frustração no atual ambiente de crise, deve
ser, claro, enfrentado pela educação e pelo esclarecimento. Mas, tais medidas,
de longo prazo, não podem justificar a ausência de uma ação direta das
associações, a busca de direitos junto à justiça por parte dos ofendidos.
O
racismo é a raiva de uns que causa dor em outros. Assim, além da educação e do
uso da lei, importa também, e muito, a corajosa e inteligente reação dos
próprios jogadores, negando-se a aceitar a regra do silêncio e do
desconhecimento “olímpico” do ódio gratuito. O racismo se responde com educação
e ao racista com a força da lei.
A
análise é de Francisco Carlos Teixeira, professor da UFRJ e, foi publicado
originalmente no Carta Maior
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