3 de fevereiro de 2023

Anielle defende mudança em livros didáticos e oportunidade para negros

 

Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, concede entrevista exclusiva à Agência Brasil - José Cruz/Agência Brasil.

A criação de um banco de currículos para profissionais negros e a indicação de alguns desses nomes para trabalhar no governo federal tem uma motivação pessoal para a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco.

Podemos mostrar para o país inteiro o quanto as pessoas negras têm se preparado e são preparadas para adentrar em espaços que historicamente nos negam e dizem que não devemos entrar ou não nos pertence”, destaca.

Jornalista de formação, ela conta que já foi excluída de algumas vagas por ser negra.

Essa iniciativa é importante para mim, principalmente por ser jornalista, por ter estado do outro lado e terem me negado a possibilidade de ser âncora [apresentadora de TV], trabalhar como jornalista, por dizerem que eu não tinha rosto [adequado] para aquilo”, afirma a ministra em entrevista exclusiva à Agência Brasil.

Despachando na Esplanada dos Ministérios desde o início de janeiro, Anielle tem trabalhado para conscientizar a sociedade sobre a importância de uma educação antirracista. Fruto da política de cotas no ensino superior, ela adiantou, durante a entrevista, a criação de um grupo de trabalho junto com o Ministério da Educação (MEC) para pensar em mudanças no material didático. “As crianças negras não se encontram no livro didático, ele não tem representatividade.”

A falta de orçamento para construção de políticas públicas de igualdade racial, uma das consequências do abandono da temática pelo governo anterior, é outro tema que preocupa a ministra.

“CHEGAMOS A TER UM ORÇAMENTO DE R$ 77 MILHÕES E AGORA A SECRETARIA DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL [SEPPIR] VAI VIRAR UM MINISTÉRIO COM ORÇAMENTO PREVISTO [AO FINAL DA GESTÃO DE JAIR BOLSONARO] DE R$ 4 MILHÕES”, DESTACA.

Se conseguirmos atingir 50% do orçamento que tínhamos em 2003, já estaremos dando passos importantes”, afirma Anielle.

A violência contra a população negra também é uma das principais frentes de trabalho da ministra, que teve sua irmã, a vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada. Até hoje, o caso permanece sem punição e sem informação sobre os mandantes do crime.

Mãe de duas meninas, Anielle Franco é uma das fundadoras e ex-diretora-executiva do Instituto Marielle Franco. Nascida na comunidade da Maré, na zona norte do Rio, a ministra é formada em Inglês pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em jornalismo pela Universidade Central da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, e é mestre em Relações Étnico-Raciais pelo Cefet/RJ.

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Com informações do Geledés.

Julgada

 

Alexandre Lucas. (FOTO/ Acervo Pessoal).

Por Alexandre Lucas, Colunista

O corpo estava desenhado de dor, camuflado entre terra e mato, a pele parecia brotar do chão, a tatuagem dava nome: cova rasa. Era o suficiente sabe disso para revirar os olhos, coçar a cabeça e remoer o estômago.

Para alguns isso não era satisfatório, se fazia necessário panfletar a brutalidade como se estivesse espalhando flores.

Não era cinema com violência, mas a violência sem dramaturgia. A mão na cabeça já não pedia consciência. Os gritos desesperados para parar aumentavam a dosagem de selvageria. A faca fez vala como se fizesse rede de pesca.

Na arena romana, a festa se fazia da morte dos bichos.  Na arena de hoje, os bichos estão salvos, com algumas exceções. O tribunal da morte dava a sua sentença acompanhado de aplausos e filmagens.

A vida é real, apesar das ilusões que nos jogam para arena das flores artificiais e dos leões famintos. Seus olhos estão fechados: ela foi julgada infinitas vezes, nunca escutada. Agora é tarde. Corpos não brotam da terra.

2 de fevereiro de 2023

Primeira repórter negra a se destacar na TV, Glória Maria abriu portas e deixou grande legado

 

Glória Maria posa para retrato no restaurante do Copacabana Palace, no Rio - Ricardo Borges-3.abr.2018/Folhapress.

Até a década de 1970, os negros eram raríssimos na televisão brasileira. Nas novelas, atores do calibre de Ruth de Souza eram relegados a papéis secundários. No jornalismo, então, o cenário era ainda mais desolador.

Pretos e pardos ainda são sub-representados na nossa TV, mas é inquestionável que suas presenças aumentaram muito nos últimos anos. Nos noticiários, hoje temos figuras de peso como Maju Coutinho, Heraldo Pereira, Aline Midlej, Zileide Silva, Joyce Ribeiro, Flávia Oliveira, Márcio Bonfim, Abel Neto, Adriana Couto e tantos outros. E todos têm uma espécie de dívida com a pioneira Glória Maria.

Natural do bairro carioca de Vila Isabel, ela já era formada em jornalismo pela PUC quando apareceu na tela da Globo pela primeira vez. Mas de uma maneira inusitada: Glória era princesa do bloco carnavalesco Cacique de Ramos, que se apresentou no programa Discoteca do Chacrinha. O apresentador foi com a cara dela, e a indicou para um estágio na emissora.

Já contratada, Glória Maria fez sua primeira grande reportagem em novembro de 1971, cobrindo o trágico desabamento do elevado Paulo de Frontin. Não demorou para cair nas graças do público. Fez entrevistas históricas nos anos seguintes, de Freddie Mercury, durante o primeiro Rock in Rio, em 1985, ao general João Baptista Figueiredo, o último ditador do regime militar.

Ele não me suportava”, contou ela a Pedro Bial numa entrevista de 2020. “Passei todo o governo Figueiredo ouvindo ‘tira aquela neguinha da Globo daqui’.”

Foram vários os episódios de racismo que a jornalista enfrentou ao longo da carreira. Num Roda Viva exibido em 2022, ela conta que até mesmo suas filhas, adotadas em Salvador em 2009, sofriam ataques racistas no colégio. “Nada blinda uma mulher preta do racismo, nem mesmo a fama”, afirmou.

Mesmo com tantos obstáculos, Glória Maria chegou a ancorar programas importantes como o RJTV (noticiário local do Rio de Janeiro), o Jornal Hoje e o Fantástico, onde permaneceu de 1998 a 2007. Tirou então um período sabático e se afastou do vídeo por dois anos. Retornou apresentando o Globo Repórter, primeiro ao lado de Sérgio Chapelin e, depois, de Sandra Anneberg. Comandou in loco diversos episódios do programa, até ser diagnosticada com um câncer no cérebro em 2019.

Glória percorreu o mundo fazendo reportagens. Esteve na Palestina, na Nigéria e no sultanato de Brunei. Gabava-se de ter conhecido mais de 200 países –seus colegas brincavam que ela deveria ter ido a algum outro planeta, já que não chegam a 200 as nações e territórios da Terra.

Sua vida amorosa sempre foi agitada, com muitos namorados –muitos deles, estrangeiros. No final da década de 970, teve um relacionamento com João Roberto Marinho, filho do fundador da Globo, Roberto Marinho. Mas a grande paixão de sua vida eram mesmo as filhas adotivas, as irmãs biológicas Maria, atualmente com 14 anos, e Laura, com 13.

Durante muito tempo, Glória Maria recusou-se a revelar sua idade, o que alimentou um vasto folclore ao seu redor. Chegou a jurar que havia nascido em 1959, mas a informação não se sustentava: se fosse correta, teria estreado na Globo com apenas 12 anos de idade. Na verdade, nasceu em 15 de agosto de 1949. Mas sua genética privilegiada sempre lhe deu a aparência de alguém muito mais jovem.

Glória Maria removeu um tumor maligno no cérebro em 2019 e, desde então, diminuiu o ritmo de trabalho. Teve Covid-19 em 2022, e sua última aparição no Globo Repórter foi em agosto passado. Uma metástase no pulmão fez com que fosse internada no dia 5 de janeiro.

Morreu aos 73 anos de idade, e deixa uma enorme lacuna. Afinal, foram mais de 50 anos no ar, na emissora de maior audiência do país. Suas entrevistas em tom descontraído geravam imediata empatia com o público. Seu pioneirismo também abriu portas para várias gerações de jornalistas negros. E sua carreira admirável é um exemplo de dedicação e coragem para todos os profissionais da área.

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Com informações do Geledés.

1 de fevereiro de 2023

Nzinga Mbandi: quem é a rainha que terá a vida contada em documentário da Netflix

 

Cena do documentário - Divulgação/Netflix.

Em mais uma grande estreia para os amantes de temas e personagens históricos, a Netflix preparou um lançamento surpreendente para o mês de fevereiro: uma série documental sobre a ascensão da rainha Nzinga, de Angola. A produção retrará a vida de importantes e importantes rainhas africanas.

Através da mistura de dramatização e documentário, 'Rainhas Africanas: Nzinga' narra não só como a rainha chegou ao poder, mas também as traições familiares e rivalidades na vida pública que Nzinga encontrou. Com produção executiva de Jada Pinkett Smith, a série será lançada no dia 15 de fevereiro.

"Com produção executiva de Jada Pinkett Smith, chega uma nova série documental que retrata a vida de importantes e icônicas rainhas africanas. A primeira temporada será sobre Jinga, a cativante e destemida rainha guerreira de Dongo e Matamba, hoje Angola. No século 17, ela foi a primeira governante feminina do país. Jinga conquistou sua reputação por misturar habilidades políticas e diplomáticas com conhecimento militar, tornando-se um símbolo de resistência", diz a sinopse da Netflix.

E quem foi Nzinga?

Durante a colonização portuguesa na África, os africanos de língua bantu que viviam em Ndongo tinham mais preocupações, além dos lusitanos que chegavam. Eles tinham de se proteger dos jagas, um povo composto por guerreiros saqueadores.

Nesse meio tempo, o rei Jinga Mbandi criava sua filha, Nzinga Mbandi, para dominar as terras e, quando estivesse pronta, guiar seu povo pelo caminho correto. Em 1617, entretanto, o governante morreu e outra história foi escrita.

No lugar de Nzinga, quem assumiu o trono foi o segundo filho de Jinga, Kia Mbamdi. O novo rei, então, ordenou que o único filho de sua irmã fosse morto. Assim, sua coroa não seria ameaçada pelo concorrente, conforme repercutido pela SuperInteressante em reportagem.

Em 1624, todavia, uma grande crise atingiu o governo de Kia. Desesperado, ele pediu ajuda da irmã, que era uma grande estrategista militar, além de ótima diplomata. Mais do que capacitada, ela viajou para Luanda, a fim de negociar com os portugueses.

Nzinga Mbandi, em ilustração da UNESCO / Crédito:  Pat Masioni

Feitas as negociações, a mulher voltou ao seu povo. Em Ndongo, ela percebeu que a diplomacia não fora de todo eficaz e que seu irmão estava perdendo terreno para os portugueses. Em pouco tempo, durante a mesma crise, Kia foi assassinado.

Assim, Nzinga se tornou rainha de Ndongo, a atual Angola. Em seus anos de trono, a rainha conseguiu superar toda e qualquer oposição, mostrando-se mais do que capaz de governar. Nzinga até garantiu a paz com os jagas, unindo-se a eles em uma inédita e bem-sucedida manobra política.

Diante do avanço da colonização dos portugueses, encarou a guerra e não abaixou a cabeça. A rainha liderou grupos de guerreiros e chamou atenção ao atuar como negociadora e estrategista. Também usou táticas de conflito e espionagem, conforme repercutido pela Fundação Palmares.

Nzinga foi uma das maiores governantes que a África já viu e manteve a independência de seu povo por décadas. Resistente e constante, a rainha morreu pacificamente, de forma natural, em 1663. Ela tinha 81 anos. Tamanha era a influência da rainha que foi apenas depois de sua morte que os portugueses dominaram as terras de Ndongo.

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Com informações do Aventuras na História.

Como funciona e qual a importância da eleição para a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados?

 

Deputados eleitos em outubro tomam posse e elegem a nova Mesa Diretora da Câmara - Ilustração Thiago Fagundes/Agência Câmara. 

Os 513 deputados federais eleitos em outubro do ano passado tomaram posse nesta quarta-feira (1º) em sessão realizada às 10 horas, no Plenário Ulysses Guimarães. Mais tarde, às 16h30, elegem o novo presidente e a Mesa Diretora para o biênio 2023/2024.

Os blocos partidários determinam a composição da Mesa. Quanto maior o bloco, maior o número de cargos. Os cargos são distribuídos entre os partidos integrantes de cada bloco. Se preferirem, os partidos podem atuar sozinhos, sem integrar nenhum bloco.

Os blocos valem também para a distribuição das presidências e da composição das comissões pelos quatro anos da legislatura. Já para a eleição da Mesa Diretora, que é feita a cada dois anos, podem ser formados novos blocos.

A Mesa Diretora é formada por 11 integrantes: o presidente da Câmara dos Deputados, dois vice-presidentes e quatro secretários titulares. Além disso, os parlamentares elegem quatro suplentes.

Como funciona a eleição para a Mesa Diretora?

Os 513 deputados federais têm direito a votar em candidatos para todos os cargos em disputa. Os 11 votos são feitos ao mesmo tempo, mas o primeiro cargo a ser definido é o de presidente da Câmara. As eleições para as demais posições não são apuradas até que o ocupante do posto esteja sacramentado.

Para conquistar o cargo em disputa, o deputado deve receber os votos favoráveis de mais da metade da Casa. Caso nenhum postulante consiga maioria, um segundo turno entre os dois mais votados é realizado. Entre estes, aquele que tiver melhor desempenho é eleito.

O que faz cada integrante da Mesa Diretora?

Presidente da Câmara: supervisão dos trabalhos e definição da pauta de votações do plenário;

Vice-presidente da Câmara: análise dos requerimentos de informação a outros órgãos do Poder Público;

Segundo vice-presidente: interação institucional com órgãos do Poder Legislativo nos estados, no Distrito Federal e nos municípios.

Primeiro-secretário: serviços administrativos e ratificação de despesas da Câmara;

Segundo-secretário: relações internacionais da Casa;

Terceiro-secretário: exame de requerimentos de licença e justificativas de falta apresentados por parlamentares;

Quarto-secretário: supervisão do sistema habitacional da Câmara.

Conheça o novo perfil da Câmara

 

Bancadas partidárias da nova legislatura da Câmara dos Deputados / Agência Câmara.


Perfil dos eleitos para a nova legislatura da Câmara dos Deputados / Agência Câmara.

Conheça o site do Negrer

 

Página do site do Negrer.

Por Nicolau Neto, editor

O Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais (NEGRER), vinculado à Universidade Regional do Cariri (URCA), está presente também por meio do seu site. Esta nova ferramenta irá servirá para armazenamento  e divulgação de informações relacionadas atividades e encontros. O site foi desenvolvido com a plataforma WIX, uma das melhores construtoras desse ramo e líder na atualidade.

O NEGRER que é composto por estudantes e professores/as de graduação e pós-graduação da URCA e de outras instituições, além de professores/as da educação básica e de ativistas de movimentos sociais da região do Cariri, está cadastrado junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e na Rede Nacional de Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Consórcio NEABs, junto à Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN).

Segundo informações constantes já no próprio site, o NEGRER tem seis linhas de pesquisas, a saber: Cultura de Base Africana e Educação; História Africana e Afro-brasileira; Gênero, Diversidade, e Relações Étnico-Raciais; Infâncias, Arte e Diversidade Étnico-Racial; Populações Indígenas: História, Cultura e Educação e Educação Quilombola.

Ao acessar o site, leitores podem ser direcionados para páginas que contem os eventos realizados e a serem promovidos; uma biblioteca digital que contém materiais didáticos, artigos, livros, dissertações e teses, além de dossiês e anais.

Clique aqui e conheça o site.

31 de janeiro de 2023

Áudio de Bolsonaro defendendo massacre indígena desaparece na câmara

 

Bolsonaro elogiou Cavalaria dos Estados Unidos por ter dizimado povos indígenas durante discurso quando era deputado em 1998. Foto: Alan Santos/PR. 

Na manhã de 15 de abril de 1998, o então deputado Jair Bolsonaro (RJ) subiu à tribuna da Câmara para repercutir a declaração de um general das Forças Armadas dos Estados Unidos que defendia a intervenção norte-americana na Amazônia. Bolsonaro aproveitou o gancho para criticar a “Cavalaria brasileira” por não ter dizimado os indígenas, tal como haviam feito os Estados Unidos.

Até vale uma observação neste momento: realmente, a Cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema”, discursou o então deputado do chamado baixo clero, grupo de parlamentares sem expressão política e apegado a questões mais corporativas e paroquiais.

O discurso pode ser encontrado no site da Câmara, tanto no Diário da Câmara quanto no registro das notas taquigráficas. Mas o áudio, com a voz de Bolsonaro, desapareceu dos registros da Casa. O pronunciamento está nos arquivos sonoros, mas o trecho em que o então deputado elogia a cavalaria norte-americana pelo massacre indígena desapareceu. Foram, ao todo, quatro parágrafos e meio suprimidos. O corte é claramente perceptível.

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Com informações do Congresso em Foco.

29 de janeiro de 2023

Lula: uma mão pesada contra o golpismo; e outra estendida à esperança

 

Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Autor, entre outros livros, de O fim do império cognitivo (Autêntica) e do recém-lançado Descolonizar – Abrindo a História do Presente (Boitempo).

Dificilmente se encontrará na política internacional um começo tão turbulento de um mandato democrático como o que caracterizou o do presidente Lula.

A democracia esteve por um fio e está salva (por agora), devido a uma combinação contingente de fatores excepcionais: o talento de estadista do presidente, a atuação certa no momento certo de um ministro no lugar certo, Flávio Dino, logo secundado pelo apoio ativo do STF.

As instituições especificamente encarregadas de defender a paz e a ordem pública estiveram ausentes, e algumas delas foram mesmo coniventes com a arruaça depredadora de bens públicos.

Quando uma democracia prevalece nestas condições, dá simultaneamente uma afirmação de força e de fraqueza. Mostra que tem mais ânimo para sobreviver do que para florescer. A verdade é que, a prazo, só sobreviverá se florescer e para isso são necessárias políticas com lógicas diferentes, suscetíveis de criarem conflitos entre si. E tudo tem de ser feito sob pressão. Ou seja, o futuro chegou depressa e com pressa.

O Brasil não volta a ser o que era antes de Jair Bolsonaro, pelo menos durante alguns anos. O Brasil tinha duas feridas históricas mal curadas: o colonialismo português e a ditadura. A ferida do colonialismo estava mal curada, porque nem a questão da terra, nem a do racismo antinegro, anti-indígena e anticigano (as duas heranças malditas) estavam solucionadas. A última só o primeiro governo de Lula começou a enfrentar (ações afirmativas etc.).

A ferida da ditadura estava mal curada devido ao pacto com os militares antidemocráticos na transição democrática de que resultou a não punição dos crimes cometidos pelos militares. Estas duas feridas explodiram com toda a purulência na figura de Jair Bolsonaro.

O pus misturou-se no sangue das relações sociais por via das redes sociais e aí vai ficar por muito tempo por ação de um lúmpen-capitalismo legal e ilegal, racial e sexista, que persiste na base da economia, uma base ressentida em relação ao topo da pirâmide, o capital financeiro, devido à usura deste.

Esta ferida mal curada e agora mais exposta vai envenenar toda política democrática nos próximos anos. A convivência democrática vai ter de viver em paralelo com uma pulsão antidemocrática sob a forma de um golpe de Estado continuado, ora dormente ora ativo. Assim será até 2024, data das eleições norte-americanas, devido ao pacto de sangue entre a extrema direita brasileira e a norte-americana.

A tentativa de golpe de 8 de janeiro alterou profundamente as prioridades do presidente Lula. Dado o agravamento da crise social, a agenda de Lula estava destinada a privilegiar a área social. De repente, a política de segurança impôs-se com total urgência. Prevejo que ela vá continuar a ocupar a atenção do Presidente durante todo o tempo em que o subterrâneo golpista mostrar ter aliados nas Forças Armadas, nas forças de segurança e no capital antiamazônico.

Este capital está apostado na destruição da Amazônia e na solução final dos povos indígenas. A fotos dos Yanomami que circularam no mundo só têm paralelo com as fotos das vítimas do holocausto nazista dos anos de 1940.

Como poderia eu imaginar que, oito anos depois de dar as boas-vindas na Universidade de Coimbra aos líderes indígenas de Roraima (comitiva em que se integrava a agora ministra Sônia Guajajara) e de receber deles o cocar e o bastão da chuva – uma grande honra para mim – assistiria à conversão do seu território, por cuja demarcação lutamos, num campo de concentração, um Auschwitz tropical?

O Brasil precisa da cooperação internacional para obter a condenação internacional por genocídio do ex-presidente e alguns dos seus ex-ministros, nomeadamente Sergio Moro e Damares Alves.

Quando o futuro chega depressa, faz exigências que frequentemente se atropelam.

O drama midiático causado pela tentativa de golpe exige muita atenção e vigilância por parte dos dirigentes. Contudo, visto das populações marginalizadas a viver nas imensas periferias, o drama golpista é muito menor do que:

Não poder dar comida aos filhos

Ser assassinado pela polícia ou pelas milícias

Ser estuprada pelo patrão ou assassinada pelo companheiro

Ver a casa ser levada pela próxima enxurrada

Sentir os tumores a crescer no corpo por excessiva exposição a inseticidas e pesticidas, mundialmente proibidos mas usados livremente no Brasil

Ver a água do rio onde sempre se buscou o alimento contaminada ao ponto de os peixes serem veneno vivo

Saber que o seu jovem filho negro ficará preso por tempo indefinido apesar de nunca ter sido condenado

Temer que o seu assentamento seja amanhã vandalizado por criminosos escoltados pela polícia.

Estes são alguns dos dramas das populações que no futuro próximo, responderão às sondagens sobre a taxa de aprovação do presidente Lula e seu governo. Quanto mais baixa for essa taxa, mais champanhe consumirão os golpistas e lideranças fascistas nacionais e estrangeiras.

Confiemos no gênio político do presidente Lula, que sempre viveu intensamente estes dramas da população vulnerabilizada, para governar com uma mão pesada para conter e punir os golpistas presentes e futuros e para com uma mão solidária, amparar e devolver a esperança ao seu povo de sempre.

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Por Boaventura de Sousa Santos, originalmente em A Terra é Redonda e na RBA.