22 de abril de 2025

Os saberes de Dona Dionísia Severo e as resistências dos indígenas Kariri no sertão cearense

 

Dona Dionísia no ano de 2013 na entrada da sua casa no Sítio Pau-dos-ferros em Milagres-CE. (FOTO do autor). 


Por César Pereira, Colunista


Cantiga do Caboclo João do Morro


Quando eu venho do meu reinado

Trago meu terço na mão

Pra curar o mal difícil

Que botaram com as mãos.

Chame João do Morro,

Chame João do Pé do Morro

Chame João do Pé do Morro

Chame ele que ele vem.

Pra curar o mal difícil

Que botaram com as mãos.

(Dona Dionísia Severo, 2021)


No dia 17 de agosto de 2021 o prefeito Milagres, município do sul do Estado do Ceará, Cícero Alves de Figueiredo (2021- 2025) inaugurou no paço municipal o monumento Sousa Presa e a Índia Tapuia, esta obra fora idealizada pelo seu antecessor o gestor, Lielson Macedo Landim (2017 – 2021).

Presentes na cerimônia estavam diversas autoridades locais e na ocasião houve discursos em que se louvou a ideia de se erguer no centro da cidade aquele monumento que celebrava a lenda da fundação do município.

Tal obra é composta de três figuras humanas, uma delas representa um bandeirante fictício que teria vindo ao Vale do Riacho dos Porcos por volta da década de 1690 e sido capturado pelos tapuias bravios, esses “bárbaros” teriam aprisionado o bandeirante fictício e seus companheiros devorando rapidamente estes últimos num ritual de canibalismo, no entanto, pouparam o lendário bandeirante para engorda, pois estando este muito magro deveria ser devorado em outra ocasião.

O mítico Sousa Presa temendo a morte indigna nas mãos dos cruéis Tapuias rogou à Nossa Senhora Mãe de Deus que o libertasse em troca de sua promessa de retornar um dia àquele vale, exterminar os selvagens e ali erguer uma capela em sua homenagem. O bandeirante mitológico foi ouvido pelos céus que fez uma bela índia tapuia dele apaixonar, libertá-lo das amarras e com ele fugir.

A segunda figura humana presente no conjunto escultórico é a dessa índia, está logo atrás do suposto bandeirante, ela o segue passivamente. A terceira figura humana representada no monumento é a de Nossa Senhora dos Milagres, a santa que desencadeou a paixão da bela índia por Sousa Presa e em honra da qual este bandeirante lendário ergueu o templo que dar nome a cidade nos dias de hoje. A santa está pousada na mão direita do bandeirante mitológico simbolizando assim como o próprio Deus favorece os brancos que fundaram o município.

O discurso colonialista presente neste monumento erguido no paço municipal com o dinheiro público objetiva especificamente formar corpos e mentes, uma vez que a obra é a materialização da violência contra o povo Kariri, violência que está deliberadamente romantizada na lenda criada nos fins do século XIX para justificar o extermínio dos Kariri nas suas terras no Vale do Riacho dos Porcos

Percebemos que a criação dessa lenda remente aos desejos da branquitude em geral e de Milagres em particular de se autopromover. Ela está em consonância com o projeto da elite nacional que a partir da segunda metade do século XIX a empenhou-se aguerridamente em criar para si uma imagem e uma autoimagem heroicizada que impusesse seu domínio simbólico e material sobre a sociedade.

Rapidamente o Ceará e o Cariri cearense também se empenharam nesse processo de construção da imagem e do poder da branquitude, especialmente da elite branca detentora de terras. A publicações de jornais e a criação de grêmios literários, bem como o aparecimento das primeiras escolas para educar os filhos dos latifundiários locais, ajudaram a reproduzir e divulgar os discursos e representações do colonizador branco como homem superior e civilizado desbravando sertões e exterminando os bárbaros para ocupar as terras e cultivá-las com o trabalho e a religião cristã.

No Vale do Riacho dos Porcos, uma área de terras a oeste da Chapada do Araripe irrigadas por um rio com este nome e seus afluentes afirmar, desenvolveu-se a política de reafirmar o controle das elites latifundiárias sobre a história, apagar os rastros da presença negra e indígena para que a elite local se sentisse segura no poder.

Representar os donos do poder em Milagres como descendentes de míticos bandeirantes significava criar para si um lugar na história cearense, promover-se como protagonista da ocupação e civilizadores da banda oriental da Chapada do Araripe e dos sertões, pois isto simbolizava para esta elite assumir o controle pleno sobre o espaço e os corpos da promissora localidade do Sertão do Cariri.

Foi seguindo esse desejo de criar para si e para seu grupo de poder uma imagem narcísica que um cavalheiro de Milagres teria explicado ao historiador Antônio Bezerra a origem do município em termos lendários.

Diz o historiador cearense o seguinte:


Ainda não há muito, pedindo eu informações a um cavalheiro bem instruído à respeito da igreja de Milagres, respondeu-me que havendo por ali aparecido um senhor Souza Presa com outros companheiros, foram apanhados pelos Tapuias, e logo devorados, sendo o dito Presa reservado para outra ocasião em vista da sua magreza. Partindo os mesmos Tapuias para uma caçada, deixaram Presa, convenientemente amarrado, aos cuidados de uma Índia, a quem fizeram as mais enérgicas recomendações. Sós, por sinais se entenderam, e a Índia moça e formosa, comovendo-se da sorte do seu prisioneiro, jovem e elegante também, deu-lhe liberdade e fugiram do lugar. Presa. em hora de extrema agonia, havia feito promessa de se escapasse, erigir uma igreja a Nossa Senhora dos Milagres, e assim, desaparecidos os Tapuias daquelas paragens, volta ao lugar, e em 1760 fundou a igreja que tem hoje a invocação daquela Senhora. (BEZERRA, 2009, p. 110).


Quase 130 anos depois da invenção da lenda a branquitude do município de Milagres sentiu mais uma vez a necessidade de reafirmá-la ostensivamente num monumento público que atuaria cotidianamente como a materialização da história oficial da cidade.

Ao longo do século XX este relato romanceado da fundação de Milagres foi escrito e reescrito pela elite local, divulgado nos artigos do Anuário do Ceará, na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros e foi também transposto para o hino e a bandeira do município.

O projeto narcísico da branquitude milagrense para promover sua imagem e autoimagem também se fez presente nas aulas de história local ministradas pelos professores nas escolas do município, especialmente a partir das décadas de 1960 em diante, nos anos de 1980 e 2000 quando se pensou em escrever a história dessa cidade foi à lenda que os historiadores regionais recorreram para explicar a ocupação do Vale do Riacho dos Porcos e justificar o extermínio dos indígenas como também a escravização da população negra na região.

Ao encomendar o monumento Sousa Presa e a Índia Tapuia em plena a pandemia COVID-19 no ano de 2020 o então prefeito agiu em consonância com a mentalidade branca e elitista nacional que desde a colonização no século XVI procura se impor através da violência simbólica e física sobre as mentes e corpos dos povos indígenas e dos homens e mulheres pretos e pretas. Ao longo da história estas elites estiveram sempre ocupadas em erigir marcos de autoridade e de mando que os identifique como os supremos donos do poder.

Monumento de Sousa Presa e a Índia da Tapuia, materialização da violência contra o povo Kariri erguido no centro de Milagres em 2021. Foto: Socorro Pereira).


Os Kariri em Milagres-CE

Há duas pequenas tribos de índios não civilizados no distrito de Barra do Jardim; mas seu número vai diminuindo rapidamente. Uma das tribos, os huamães, com cerca de oitenta indivíduos, habita geralmente a umas sete léguas a sudoeste da vila. A outra, a dos xocós, em número de setenta mais ou menos, tem moradia habitual a cerca de treze léguas para o sul. Embora normalmente inofensivos por índole, tinham sido, pouco antes de minha visita, apanhados a roubar gado nas fazendas vizinhas. Aparecem às vezes na vila. Diz-se que têm hábitos pouco limpos e, na falta de melhor alimento, comem cascavéis e outras cobras. (GARDNER, 1942, p.179)


Em 2013 fomos ao Sítio Pau-dos-Ferros, localidade distante cerca de 20 km da sede do município de Milagres para conhecer a Sr.ª Dona Dionísia Severo. Ouvíramos falar da sua pessoa pela professora Ana Maria Nunes da Silva, historiadora que a conhecia há algum tempo e a supunha descendente de indígenas devido ter observado as suas práticas xamânicas e a sua missão de levar aos habitantes da sede municipal ervas com poder curativo.

Encontramos Dona Dionísia acompanhada de seu filho Cícero Dionísio e o esposo Chico Hermenegildo, residiam numa casa de taipa situada na entrada da mata. Vivendo ali sobre a Serra da Santa Catarina, Dona Dionísia tinha acesso privilegiado ao seu Ouricuri como nos disse depois. Então propomos a ela uma conversa franca sobre seus conhecimentos das ervas, das rezas curativas e principalmente da história.

Começou nos contando que tinha 74 anos de vida, nascera num sítio ali perto, a comunidade da Ipueiras pertencente ao município do Barro, ela tinha nascido nas terras dum capitão Jaime do qual seu pai era morador de favor. Sua avó paterna lhe contara que a mãe dela (sua bisavó) fora trazida amarrada da Serra de Sant’Ana pelas matas do Jardim, pois fora caçada:


Minha bisavó era uma caboquinha, desse tamanho, sabia as rezas todas, aprendeu com a mãe dela que foi índia, pegaro ela lá no mato, amarraram porque era braba e não gostava de gente, aí trouxeram e dexaram ela amarrada até que se acostumou. Fugiu, mas adepois vortou, eu não sei se foi porque quis. Mas apareceu correndo dentro da mata. (Dona Dionísia, 2013)



Perguntamos a Dona Dionísia se ela era índia e ela prontamente nos confirmou que sim, era índia, porque seu pai foi um índio e ela tinha aprendido com ele as rezas que agora sabia, sua avó, a cabocla, se referia a avó sempre como uma cabocla bonita é conhecia muito os remédios do mato.

A fala de Dona Dionísia sobre a origem dos seus saberes e da sua família chamou a nossa atenção, pois passamos a cotejar seu testemunho com os documentos existentes que fazem referência a presença de uma tribo indígena Kariri-Xocó em Milagres até as últimas décadas do século XIX.

Com efeito, além dos relatos do botânico escocês George Gardner descrevendo a existência de indígenas Humães e Xocós nas matas e vales do Cariri em 1838 temos outros documentos da época relatando a existência dum aldeamento indígena na Serra da Cachorra Morta, território indígena instalado nas proximidades da Vila de Nossa Senhora dos Milagres entre 1847 e 1881.

Em um desses documentos, o diário de viagem do botânico Francisco Freire Alemão que esteve em Milagres por volta de 1859 ele nos informa que um fazendeiro local e sua esposa lhe noticiaram que ainda havia em Milagres um grupo de indígenas:


Ontem à noite em casa do sr. Franklin de Lima, caindo a conversa sobre índios, disse o sr. Franklin que o resto de tribo (cujo nome não se sabe) que hoje reduzida a uns 50 ou 60 existe ali por Milagres, pertenceu a uma nação que habitava por Piancó, Brejo Verde e Pajeú de Flores, onde ainda em 1816 existia por inteira e foi nessa ocasião aldeada pelo padre Frei Ângelo que ali fez uma grande casa quadrada com pátio dentro, onde ele os doutrinava; morreu o missionário, cessou esse ensino. (ALEMÃO, 2011, p. 85)



Esses indígenas aos quais se refere Francisco Freire Alemão voltam aos relatos oficiais por várias vezes ao longo da década de 1860. Ainda em 1862 o médico Pedro Theberge é designado pelo governo da Província do Ceará a prestar assistência na aldeia por ocasião da epidemia de cólera morbo que grassava no sul do Ceará.

Outro episódio dramático na existência da aldeia Kariri-Xocó da Serra da Cachorra Morta se deu em 1867, quando fazendeiros locais armaram jagunços e ordenaram um ataque aos indígenas matando muitos deles e dispersando os sobreviventes:


De fato, sr. presidente, chegada a escolta à aldeia dos índios, sem que eles fossem criminosos, e nem estivessem no caso de serem recrutados, espancam homens e mulheres, prendem os que podem e conduzem-nos para Milagres; alguns dos companheiros dos índios presos, dirigem-se para Milagres para implorarem a soltura de seus companheiros, mas chegados ao lugar aonde descansara a tal escolta com os presos, apenas o subdelegado do Coité e o inspetor do quarteirão José Inácio, que foram os comandantes dessa força, avistaram os pobres índios, mandaram descarregar as armas sobre eles, os soldados executaram a ordem, assassinaram um índio, feriram outros, e voltaram para Milagres com a sua presa. (O CEARENSE, ANO XXII, Nº 2.522, 1867).



Em 2014 o pesquisador Heitor Feitosa Macêdo publicou no site https://estoriasehistoria-heitor.blogspot.com, o artigo Massacre aos Índios Xocó no Cariri Cearense: Documento Inédito em que faz o relato do evento acima noticiado e publica em anexo o relatório do próprio juiz de direito de Milagres Joaquim do Couto Cartaxo dirigido às autoridades cearenses no ano de 1867.

A partir desses documentos deixados por pesquisadores e testemunhos do século XIX e das falas de Dona Dionísia Severo podemos concluir que havia e ainda há uma intensa prática de violência institucional e privada contra os indígenas Kariri ainda existentes no sul cearense.

Com efeito, Dona Dionísia fala que sua avó fora pega no mato e amarrada, em outros trechos da sua fala nos informa que “da Serra de Sant’Ana ela [a bisavó] foi levada pra uma casa, depois foi dada pra ser criada no Coité”. No século XIX o Coité era um distrito da Vila de Milagres, hoje pertence ao município do Barro, e como lemos acima a fazenda de José Inácio de Sousa (o maior inimigo dos indígenas da Aldeia da Serra da Cachorra Morta) estava sediada naquele distrito onde ele exercia a função de subdelegado.

A invasão da aldeia espalhou a violência dos fazendeiros locais contra os indígenas tanto no vale quanto na serra, pois o objetivo era exterminar a presença dos Kariri no sul do Ceará e completar a invasão e expropriação de suas terras iniciada nos fins do século XVII:


Durante a invasão, a tropa violava as choupanas dos índios “cometendo toda a sorte” e “excessos nas famílias” dos índios (espancamento e estupros?). Todavia, não encontraram os chefes da tribo, com a exceção do índio Mariano, o qual foi amarrado e conduzido a um lugar próximo da aldeia, onde “se abarrancarão”, esperando que os demais viessem socorrê-lo. (MACEDO, disponível em: https://estoriasehistoria-heitor.blogspot.com/search?q=cachorra+morta).


Dona Dionísia nos relatou em suas falas uma história não muito romântica, isto é, bem diferente daquela sustentada pelos inventores e propagadores da lenda de Sousa Presa e a Índia Tapuia. Nas falas de Dona Dionísia é a violência contra a mulher indígena que prevalece, “amarrada”, “caçada”, “dada pra ser criada”, não o amor pelo branco inspirado pelos santos.

A presença dos Kariri em Milagres ainda é peremptoriamente negada, pois além dos monumentos públicos que celebram o colonizador e a violência contra os indígenas há ainda o apagamento deliberado de sua história e de suas resistências. Desde o século XIX vigora no município uma política de tolerância zero contra a presença dos indígenas na comunidade. Quando estes indígenas aparecem é exclusivamente através de representações estereotipadas como tapuias, isto é, bárbaros selvagens comedores de gente ou figuras folclorizadas em esquetes teatrais, filmes e poemas de intelectuais locais.

A presença de Dona Dionísia Severo, indígena Kariri, habitante do Vale do Riacho dos Porcos foi sistematicamente negada ou mesmo esquecida pela população local, a violência simbólica sofrida por ela e seu povo Kariri através do apagamento de sua história, do sufocamento de sua memória e da repressão às suas resistências foi intensificada ainda mais ao longo dos últimos anos com a completa ausência de políticas públicas ou culturais que façam referência as identidades indígenas Kariri, Kariri-Xocó, indígenas ou afro-indígenas na cultura e na história de Milagres.


Os saberes de Dona Dionísia Severo no cotidiano de Milagres-CE

Minha família era toda da Ipueira, daquelas bandas, é tudo de lá, do Barro pra cá e a família dele era tudo lá e era tudo metido nesse negócio de mediunidade. E a nossa família tudo é nem que num queira. (Dona Dionísia, 2021).



Dona Dionísia Severo faleceu em janeiro de 2024 aos 85 anos de idade, ao longo de sua vida atuou como uma mulher indígena Kariri presente e resistente no cotidiano do município de Milagres. Suas práticas xamânicas se impuseram como resistência ao apagamento e a invisibilização dos indígenas Kariri no Vale do Riacho dos Porcos.

Durante décadas ela coletou ervas no seu Ouricuri e as distribuiu entre os moradores da sede municipal e da zona rural. Distribuiu também curas por meio de seus cantos e rezas.

O trabalho de cura de Dona Dionísia começava com a coleta das ervas na mata, os segredos da cura foram lhe transmitido por sua avó paterna que era índia, uma “caboquinha que tinha sido batizada nos primeiros batizados quando trouxeram ela da mata” segundo Dona Dionísia ela é quem sabia falar com os mestres da mata o que lhe dava muito saber sobre as doenças e as curas, foi com essa avó que ela aprendeu a ouvir as palavras.

Quando perguntamos para Dona Dionísia que palavras eram essas ela nos informou que eram as palavras de segredo que vinha de dentro da mata. Dona Dionísia nos relatou em 2013 que quando sentia que uma pessoa estava doente vinha uma voz pra lhe dizer que entrasse na mata e coletasse a semente, ou a casca de pau, ou a raiz ou a folha que ela precisava para obter a cura.

Acompanhamos Dona Dionísia em 2018 na coleta de raízes e ervas pra curar uma comadre. Começou com uma oração balbuciada, benzeu planta e se pôs a arrancá-la, pois as palavras de segredo que ouvira lhe sugeriram que a amiga precisava daquela raiz. Era uma planta a qual ela chamava de coã, não aceitou ajuda para extrair a raiz e assim que o fez guardou tudo num saco.

Dona Dionísia tinha grande intimidade com as plantas, conhecia profundamente suas propriedades de cura e utilidades destas para os homens e animais. Esses saberes sobre as propriedades curativas das plantas são comuns aos povos indígenas e entre os Kariri em particular, pois vários rituais dos indígenas Kariri ocorrem dentro das matas.

O culto de árvores sagradas da mata também é um traço importante dentro da cosmologia Kariri. Para este povo indígena há todo um conjunto de seres que habitam as matas, que vivem sob as folhagens ou junto aos troncos das árvores. A mata é também o local de renovação da vida e onde eles se encontram com os encantados.

Nas palavras de Dona Dionísia:


Meu lugar é aqui né, eu gosto é daqui, as vezes eu vou pra rua, mas fico doidinha pra voltar, não me dou, quando tô aqui os caboclos me chamam e então eu vou. Começo até a cantar, as vezes eu canto e escuto, aí eu escuto o segredo chegando. Entro ali na mata e fico lá, nem me dá vontade de vortar né? (DIONÍSIA, 2013)



Estar em casa para Dona Dionísia significava viver nas proximidades da mata onde se situava sua casa, onde ela criava seus animais, bodes, galinhas e porcos, era o lugar onde ela tinha acesso livre aos saberes xamânicos que lhe foram ensinados e principalmente era ali que ela ouvia o chamado dos mestres. A rua representava uma viagem, isto é, quando ela precisava ir até a sede do município era como se abandonasse seu mundo ancestral para percorrer um lugar estrangeiro, um lugar de exílio.

Quando se via obrigada a deixar a mata e ir à cidade procurava fazer sempre tendo em vista uma obrigação com os mestres e caboclos. Assim, recusava-se deixar sua mata sem uma justificativa para com ela. Afirmava sempre que suas viagens à cidade eram justificadas pela necessidade de levar a cura até lá. Essa missão era assumida de forma extremamente organizada.

Dias antes de iniciar a viagem até a cidade Dona Dionísia entrava na mata para colher seus remédios “(as meizinhas)” saía de lá carregada de folhas, sementes, raízes e cascas. No dia da viagem deixava a casa bem cedo e caminhava cerca de 7 km por uma vereda que dava acesso a uma estrada vicinal onde tomava o carro que a levava junto com outros trabalhadores para “fazer a feira na rua”. Quando Dona Dionísia chegava na sede do município a primeira coisa que fazia era percorrer as ruas do centro ou dos bairros da periferia vendendo ou distribuindo suas ervas medicinais.

Somente após distribuir ou vender suas ervas era que se ocupava de si, dirigia-se ao mercado pra fazer sua feira. Havia também as pessoas que lhe encomendavam chás, ervas e cascas para banhos, quando recebia uma encomenda dessas Dona Dionísia pedia ao filho Cícero Dionísio que viesse fazer a entrega, mas as vezes ela mesma vinha trazer o pedido, ocasião em que aproveitava para rezar no doente.

O conhecimento xamânico Kariri ou geral é transmitido pela linhagem familiar, isto é, uma pessoa adquire os saberes da cura quando alguém da família já o detém e lhe transmite. Mais acima deixamos transcrita uma fala de Dona Dionísia em que ela afirma ter recebido esses saberes de cura de sua avó e do seu pai, ambos indígenas.

Segundo Krippner:


Os mentores podem ser Xamãs mais velhos , ou mesmo, entidades espirituais, incluindo seus ancestrais, espíritos da natureza e animais de poder, os quais podem dar instruções no sonho do neófito, As habilidades apreendidas variam de sociedade para sociedade, mas geralmente incluem tratamento e diagnóstico de doenças, contato com espíritos, coordenação de rituais, interpretação de sonhos, previsão do tempo, trabalho com ervas, profecias e domínio da autorregulação das funções corporais e dos estados de atenção. (2007, p.19)


Dona Dionísia Severo afirmava veementemente em suas falas que recebeu o saber do pai e da família do pai, todos eles possuíam segundo ela algum tipo de mediunidade, e com ela não foi diferente, pois aprendeu muito com o pai e com os caboclos da mata que lhe ensinaram.


Era, meu pai era da família dos índios né, aí meus filhos tudo é, mas não quer ser, aí é atropelo por cima de atropelo, só quem determinou esse negócio de querer ser índio e até fazer trabalho foi eu, ninguém quis né? [...] Eu trabalho assim, as vezes quando tem uma pessoa doente eu faço uma caridade, como uma vez que apareceu um rapaz doente e eu tratei ele dois mês lá em casa, e se eles quisessem eu também trabalhava pra desenvolver eles pra continuar também quando precisasse. [...] Aprendi a vender remédio, ensinaram, os caboclos do mato ensinaram a fazer esses remédios, eu fiquei vendendo, eu peguei a trabalhar com os caboclos e eles ensinavam a fazer os remédios como era. (DIONÍSIA, 2022)



Os saberes de Dona Dionísia Severo eram vastíssimos, pois abarcavam não somente ervas medicinais, havendo também as rezas de cura e os conhecimentos sobre animais e cantos. Estando em constante diálogo com os mestres, com os caboclos e com os ancestrais, o conhecimento de mundo dessa mulher indígena transcendia os saberes médicos da branquitude formando um denso tecido de saberes orais e epistemologias ancestrais.

A mata trazia até ela suas palavras de segredo e ela as levava aos outros, àqueles que não sabiam e que não podiam ouvir as vozes dos mestres, para que esses mestres e seus saberes fossem conhecidos ela tinha recebido do seu pai o dom de ouvi-los e falar pela boca deles, para que o corpo se livrasse dos “quebrantos”, “mal olhados”, “ventos caídos”, “dos males que vinham de baixo” ela tinha aprendido com a avó e com os caboclos aqueles remédios.

Dona Dionísia afirmava que no princípio quando começou a receber os caboclos não era fácil para ela aguentar o peso deles em cima dela. A mãe observava e assim ela foi aprendendo a aceitar um caboclo por vez. Perguntamos se os caboclos ensinavam para ela mais coisas além das curas com plantas. Dona Dionísia afirmou que sabe muito mais, pois aprendeu as rezas com eles, aprendeu os cantos e as histórias que eles lhe contaram.

Os cantos e as rezas também fazem parte do ritual xamânico de cura entre os indígenas Kariri. Para este povo o processo para obtenção da cura de uma doença está entrelaçado com vários ritos, não é somente o uso de plantas e ervas que desencadeará a cura no doente, para que a saúde seja efetivamente devolvida à um corpo ou espírito é preciso conjugar o uso das ervas com as rezas e os cantos.

As falas de Dona Dionísia deixam claro que o ritual de cura não deve se restringir a uma ou duas rezas, pois para que todo o corpo e o espírito se tornem efetivamente sãos será preciso o uso intenso de chás, garrafadas, bebidas, aplicação de rezas sobre o corpo, entoação de cantos em volta do doente. As rezas são geralmente secretas, não podendo ser ouvidas de modo claramente audível nem mesmo pelo próprio doente.

Enquanto rezava quase que silenciosamente sobre o corpo que desejava obter a cura Dona Dionísia esfregava nele folhas de pião roxo ou galhos de arruda. Já os cantos são perfeitamente audíveis e são dirigidos aos caboclos e mestres que trazem os ensinamentos da cura.

Um dos caboclos evocados através do canto é o João do Morro que vem curar o “mal de cima,” isto é, quele que atinge o espírito. João do Morro é convocado com um terço para descer do seu reinado nas matas trazendo a cura para todo o mal que puseram com as mãos sobre aquele corpo.

Outro encantado convocado para trazer a cura é Mestre Carlos:


Mestre Carlos era um mestre

Que aprendeu sem se ensinar

Passou três dias deitado

Debaixo do Juremal.

Passou três dias deitado

Debaixo do Juremal.


Da folha faço a barraca

Pra Caboquinha morar

Da madeira eu faço a lenha

Para Caboquinha queimar,

Da raiz faço o remédio

Pra Mestre Carlos curar,

Me diga o que que se perde

Do meu pé de Juremal.

(DONA DIONÍSIA, 2021)


Segundo Dona Dionísia Mestre Carlos era o mais “sabido” dos mestres, quando ele chegava os outros caboclos todos respeitavam, sua chegada era festejada e havia grande agitação sob o Juremal.

O Juremal é o País da Jurema, ainda segundo Dona Dionísia a mata onde há muitas plantas de jurema é a preferida dos caboclos e mestres. A invocação da jurema no canto de Dona Dionísia vincula suas falas e práticas xamânicas aos Kariri-Xocó, indígenas que como vimos acima foram aldeados em Milagres na segunda metade do século XIX e onde também foram atacados, massacrados e dispersados pelos fazendeiros e autoridades locais.

A jurema é uma árvore sagrada dos Kariri e dos Kariri-Xocó em particular, ao invocar o Juremal e a jurema como locais de morada e de recebimento dos caboclos e mestres esta mulher indígena está rememorando as vozes ancestrais que a habitam, está se remetendo aos encantados e ao universo das encantarias dos Kariri.

Eu gosto daqui do meu sitiozim, eu vou no Oricuri e vou e converso o dia todo com eles.” (DIONÍSIA, 2022), quando perguntamos onde é o Ouricuri ela disse que era ali na mata onde os caboclos moravam. Numa outra entrevista voltamos a perguntar sobre a jurema e ela diz que conhece muito trabalho com jurema:


Minha casa é na chapada e arrudiado de pé de jurema pra todo lado é por isso que eu me incomodo mais, porque os caboclos moram nas matas da jurema aí quando eu estou lá eles ficam me prejudicando, com pouco eu estou que nem os bêbos [bêbados] querendo cair também, fico agoniadinha, me dar um farnizim na cabeça. (DIONÍSIA, 2021).


Para os indígenas Kariri além da mata de jurema ser o local de morada dos mestres e caboclos a planta em si é usada como remédio pra diversos males como: expulsar a doença do corpo, pode ser usada contra vermes, desintoxica os órgãos e as vísceras, equilibra o açúcar e a gordura no sangue.

De acordo com Neto, 2016:


Especialmente dentro do povo Kariri-Xocó, o uso da jurema ocupa um lugar central, uma vez que a mesma parece ser responsável por conferir o poder de ser Criador ao povo Kariri. [...] Nessa cosmologia o pajé tem um acesso diferenciado com a jurema, [...] o pajé consegue compreender a mensagem de forma clara e sabe executá-la. (p.65).


Os saberes indígenas e afro-indígenas de Dona Dionísia Severo nos falam de uma episteme ancestral, sua voz era a fala da ancestralidade circulando nas ruas, nas estradas e nos bairros da periferia do município de Milagres, os conhecimentos de Dona Dionísia abarcam a fitoterapia, pois conhecia mais de 25 tipos de plantas da cura — Canelinha-de-cheiro, aroeira, raiz-de-coã, umburana, quina-quina, gameleira, juá, angico, gogoia, barba-de-bode, jitirana, muçambê, crista-de-galo, picumã, quebra-faca, vassourinha, coité, marcela, mastruz, cabacinha, casca-de-caju, melancia-do-mato, pata-de-vaca, tingui, pinhão e a jurema.

Conhecia os cantos e as rezas da cura, e era através dessas rezas e cantos que convocava os mestres e caboclos para impor a cura sobre os corpos através dos trabalhos realizados com os encantados cavalgando sobre ela e assim utilizando-se da sua voz e dos seus gestos para livrar o doente tanto dos males de baixo, como dos males de cima.

Dona Dionísia, soubemos ainda em 2013, era também detentora de uma rica oralitura que ela herdara da avó que lhe contara as histórias dos antigos. Histórias da Caboclinha, da Mãe-da-Lua, do Pai-da-Mata, do Arco-celeste, do Cão-de-espeto. Enfim, uma mulher que foi uma fonte transbordante de saberes ancestrais.

Considerações finais

Podemos afirmar que a invisibilidade e o silêncio aos quais o município de Milagres votou Dona Dionísia Severo, suas resistências e práticas culturais é ainda uma forma de violência contra o povo Kariri.

Tendo sido esta indígena como demonstramos uma importante protagonista da história neste município e tendo ela atuado ao longo de sua vida como uma mulher de luta que aceitou suas identidades e heranças indígenas além disso, trabalhou incansavelmente para manter sua cultura e seu povo vivo em Milagres é imprescindível que o seu legado não seja perdido, é fundamental que seus saberes sejam ensinados nas escolas, que a sua memória seja preservada e a sua história contada e recontada.

Não permitir que a obra de resistência Kariri que Dona Dionísia Severo construiu com sua voz, sua memória e seu corpo caia no esquecimento é se impor contra a violência que vem atingindo a população indígena em Milagres, no Ceará e em nosso próprio país ao longo dos últimos cinco séculos, é trabalhar para que a história oficial narrada através dos discursos da elite branca e seus monumentos possa ser finalmente desmontada pelas vozes ancestrais como a da indígena Kariri Dionísia Severo do município de Milagres no sul do Ceará.

Dona Dionísia e parte de sua família fotografados pelo autor em agosto de 2013).

BIBLIOGRAFIA

ALEMÃO, Francisco Freire. Manuscrito da Comissão Científica de Exploração, disponível em www.bnb.com.br, acesso em 2021.

BEZERRA, Antônio. Algumas Origens do Ceará, Instituto Waldemar Alcântara, Fortaleza, 2009.

GARDNER, George. Viagens ao Brasil, Companhia Editora Nacional, Rio de Janeiro, 1942.

KRIPPNER, Stanley. Os primeiros curadores da humanidade, abordagens psicológicas sobre os xamãs e o xamanismo, Revista de Psiquiatria Clínica, 2007, acesso em 21 de abril de 2025.

NETO, Ruy Rodrigues Câmara. Cânticos de Cura dos Kariri-Xocó, dissertação de mestrado, João Pessoa, PB, 2016.

Fontes manuscritas e periódicos:

Jornal O Cearense

Transcrição dos relatos de Dona Dionísia Severo, 2013, 2018, 2021, 2022, 2023, arquivo do Laboratório de Ciências Humanas da EEMTI Dona Antônia Lindalva de Morais, Milagres-CE.


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