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Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Autor, entre outros livros, de O fim do império cognitivo (Autêntica) e do recém-lançado Descolonizar – Abrindo a História do Presente (Boitempo). |
Dificilmente
se encontrará na política internacional um começo tão turbulento de um mandato
democrático como o que caracterizou o do presidente Lula.
A
democracia esteve por um fio e está salva (por agora), devido a uma combinação
contingente de fatores excepcionais: o talento de estadista do presidente, a
atuação certa no momento certo de um ministro no lugar certo, Flávio Dino, logo
secundado pelo apoio ativo do STF.
As
instituições especificamente encarregadas de defender a paz e a ordem pública
estiveram ausentes, e algumas delas foram mesmo coniventes com a arruaça
depredadora de bens públicos.
Quando
uma democracia prevalece nestas condições, dá simultaneamente uma afirmação de
força e de fraqueza. Mostra que tem mais ânimo para sobreviver do que para
florescer. A verdade é que, a prazo, só sobreviverá se florescer e para isso
são necessárias políticas com lógicas diferentes, suscetíveis de criarem
conflitos entre si. E tudo tem de ser feito sob pressão. Ou seja, o futuro
chegou depressa e com pressa.
O Brasil não volta a ser o que era antes de Jair Bolsonaro, pelo menos durante alguns anos. O Brasil tinha duas feridas históricas mal curadas: o colonialismo português e a ditadura. A ferida do colonialismo estava mal curada, porque nem a questão da terra, nem a do racismo antinegro, anti-indígena e anticigano (as duas heranças malditas) estavam solucionadas. A última só o primeiro governo de Lula começou a enfrentar (ações afirmativas etc.).
A
ferida da ditadura estava mal curada devido ao pacto com os militares
antidemocráticos na transição democrática de que resultou a não punição dos
crimes cometidos pelos militares. Estas duas feridas explodiram com toda a
purulência na figura de Jair Bolsonaro.
O
pus misturou-se no sangue das relações sociais por via das redes sociais e aí
vai ficar por muito tempo por ação de um lúmpen-capitalismo legal e ilegal,
racial e sexista, que persiste na base da economia, uma base ressentida em
relação ao topo da pirâmide, o capital financeiro, devido à usura deste.
Esta
ferida mal curada e agora mais exposta vai envenenar toda política democrática
nos próximos anos. A convivência democrática vai ter de viver em paralelo com
uma pulsão antidemocrática sob a forma de um golpe de Estado continuado, ora
dormente ora ativo. Assim será até 2024, data das eleições norte-americanas,
devido ao pacto de sangue entre a extrema direita brasileira e a
norte-americana.
A
tentativa de golpe de 8 de janeiro alterou profundamente as prioridades do
presidente Lula. Dado o agravamento da crise social, a agenda de Lula estava
destinada a privilegiar a área social. De repente, a política de segurança
impôs-se com total urgência. Prevejo que ela vá continuar a ocupar a atenção do
Presidente durante todo o tempo em que o subterrâneo golpista mostrar ter
aliados nas Forças Armadas, nas forças de segurança e no capital antiamazônico.
Este
capital está apostado na destruição da Amazônia e na solução final dos povos
indígenas. A fotos dos Yanomami que circularam no mundo só têm paralelo com as
fotos das vítimas do holocausto nazista dos anos de 1940.
Como
poderia eu imaginar que, oito anos depois de dar as boas-vindas na Universidade
de Coimbra aos líderes indígenas de Roraima (comitiva em que se integrava a
agora ministra Sônia Guajajara) e de receber deles o cocar e o bastão da chuva
– uma grande honra para mim – assistiria à conversão do seu território, por
cuja demarcação lutamos, num campo de concentração, um Auschwitz tropical?
O
Brasil precisa da cooperação internacional para obter a condenação
internacional por genocídio do ex-presidente e alguns dos seus ex-ministros,
nomeadamente Sergio Moro e Damares Alves.
Quando
o futuro chega depressa, faz exigências que frequentemente se atropelam.
O drama midiático causado pela tentativa de golpe exige muita atenção e vigilância por parte dos dirigentes. Contudo, visto das populações marginalizadas a viver nas imensas periferias, o drama golpista é muito menor do que:
Não
poder dar comida aos filhos
Ser
assassinado pela polícia ou pelas milícias
Ser
estuprada pelo patrão ou assassinada pelo companheiro
Ver
a casa ser levada pela próxima enxurrada
Sentir
os tumores a crescer no corpo por excessiva exposição a inseticidas e
pesticidas, mundialmente proibidos mas usados livremente no Brasil
Ver
a água do rio onde sempre se buscou o alimento contaminada ao ponto de os
peixes serem veneno vivo
Saber
que o seu jovem filho negro ficará preso por tempo indefinido apesar de nunca
ter sido condenado
Temer
que o seu assentamento seja amanhã vandalizado por criminosos escoltados pela
polícia.
Estes
são alguns dos dramas das populações que no futuro próximo, responderão às
sondagens sobre a taxa de aprovação do presidente Lula e seu governo. Quanto
mais baixa for essa taxa, mais champanhe consumirão os golpistas e lideranças
fascistas nacionais e estrangeiras.
Confiemos
no gênio político do presidente Lula, que sempre viveu intensamente estes
dramas da população vulnerabilizada, para governar com uma mão pesada para
conter e punir os golpistas presentes e futuros e para com uma mão solidária,
amparar e devolver a esperança ao seu povo de sempre.
_____________
Por Boaventura de Sousa Santos, originalmente em A Terra é Redonda e na RBA.
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