Quando
ouvimos a frase “não consigo respirar” ou algo como “zara zerou” logo vem à
memória casos óbvios e marcantes de racismo, porém não isolados, aumentando a
certeza de que o racismo sufoca, cercea e assassina vidas negras. A ativista
Angela Davis ensina que “numa sociedade racista, não basta não ser racista, é
preciso ser antirracista”. Porém, como num efeito “não olhe para cima”, algumas
pessoas tentam negar o óbvio. Em um artigo publicado, irresponsavelmente, no
site da Folha de São Paulo, neste sábado (15), o escritor e antropólogo baiano
Antônio Risério prega que “racismo de negros contra brancos ganha força com
identitatismo”.
Pois
bem, enquanto nós negros tentamos respirar com joelhos sobre os nossos
pescoços, como fez George Floyd antes de morrer sufocado por um policial branco
em 2020; enquanto lutamos para não ser humilhados ao entrar numa loja de luxo
como a Zara no Brasil; enquanto desviamos para não ser alvejados por 80 tiros
numa tarde corriqueira de domingo, Risério tenta provar a teoria fracassada, e
recharçada pelos estudiosos, do racismo reverso. Mas a quem interessa pregar e
fortalecer essa narrativa?
No
estilo a lá Olavo de Carvalho, Antônio Risério pinça meia dúzia de fatos
isolados, que são muito mais uma crítica à condução ideológica da mídia
norte-americana, reduzindo um assunto que sentencia a vida de bilhões de
pessoas no mundo. Ele compara o racismo, a que ele chama de “racismo branco
antipreto” a cenas isoladas discriminatórias de pretos contra pessoas brancas,
asiáticas e judeus. Alguns casos são levianamente tirados de contexto como por
exemplo o que o autor chama de “o boicote preto a um armazém do Brooklyn, cujos
proprietários eram coreanos”. Talvez ele não saiba que fazer o dinheiro
produzido por pessoas negras circular na comunidade negra já tem nome, e se
chama “black money”.
Tentanto
justificar que os negros “já têm instrumentos de poder para institucionalizar o
racismo antibranco”, Risério diz que “o racismo negro se manifesta por meio de
organizações poderosas como a ‘Nação do Islã’”. Ora, a Nação do Islã é uma
instituição religiosa, de caráter confessional e privado, não é a Suprema Corte
Americana ou o Congresso. Essas instituições, sim, ao invés de garantir
igualdade e justiça, foram vetores de segregação ao promulgar e garantir a
manutenção de uma série de normas racistas como as leis Jim Crow, entre 1877 e
1964, nos EUA. Na África do Sul, o Apartheid, que teve efeitos devastadores
para gerações inteiras, durou de 1948 a 1994.
Ao
menos nos resta dizer, uma vez mais, que não existe racismo reverso, tampouco
um “racismo preto antibranco”, como o autor diz. O negro não pode sustentar um
sistema racista porque o racismo é um mecanismo de opressão que só existe
porque o branco detém o poder. O poder está nas mãos de meia dúzia de homens
brancos, de famílias brancas. O dinheiro é deles. O sistema de justiça é
operado por eles. Eles controlam a mídia. A política está cheia deles.
O
filósofo camaronês, Achille Mbembe, reforça que “o racismo é uma tecnologia de
poder, e que sua função é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as
funções assassinas do estado”. Isso fica claro quando olhamos as estatísticas.
Dados do Atlas da Violência 2021 (IPEA, FBSP) mostram que um negro tem 2,6
vezes mais chances de ser assassinado no Brasil. Entre os anos de 2009 e 2019,
623.439 pessoas foram vítimas de homicídio no país. Destas, 53% do total eram adolescentes
e jovens negros.
Racismo
não se trata apenas de uma ofensa ou agressão pessoal por causa da cor da pele
da outra pessoa. Conforme afirma o professor e jurista, Sílvio de Almeida, o
racismo é estrutural, porque rege a estrutura da sociedade. Ele impede que
pessoas negras acessem espaços de poder e de decisão. A falácia do racismo
reverso interessa, tão somente, a quem não quer perder estes espaços de poder.
Além
disso, nunca existiu uma lei impedindo um branco de usar o banheiro do negro.
Nunca existiu uma lei como o Apartheid para os brancos. Nunca existiu uma lei
da “vadiagem” para prender brancos no Brasil. Pessoas brancas não perdem vagas
de emprego apenas por serem brancas. Os brancos não foram escravizados e
tratados como mercadoria por mais de 350 anos. Não foram os corpos dos brancos
lançados no Atlântico, mudando a rota dos tubarões.
É
fato que têm negros que agem com discriminação, e isso é repudiável! Ninguém
deve ser discriminado. Porém, é leviana e desonesta a afirmação de Risério, ao
dizer que “sob a capa do discurso antirracista, esquerda e movimento negro
reproduzem projeto supremacista,
tornando o neorracismo identitário mais norma que exceção”. A verdade é que o
racismo é sobre uma pergunta: onde estão os negros?
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Por Jersey Simon, originalmente no Notícia Preta.