Imagens
de mercados de compra e venda de seres humanos na Líbia, com leilões de
escravos à céu aberto, chocaram o mundo. Migrantes da África subsaariana, que
tentam alcançar a Europa fugindo da guerra e da pobreza, acabam capturados e
transformados em mão de obra cativa. A situação é denunciada, há anos, pela
sociedade civil, mas foi só com as imagens da CNN que se tornou comoção global.
Neste
sábado (2), quando celebramos o Dia Internacional pela Abolição da Escravidão,
gostaria de poder dizer que a possibilidade de você ''comprar alguém'' se
limita às tristes situações de guerra ou a países com Estados tão enfraquecidos
que se tornam incapazes de cumprir suas leis e convenções e tratados
internacionais que proíbem essa prática.
A
situação dantesca, contudo, se repete diariamente em outras partes do mundo,
adotando formas escancaradamente abjetas ou mais sutis, mas ainda assim
violentas por sua própria natureza. Seja em democracias ou ditaduras, exemplos
capitalistas ou últimos bastiões socialistas, o trabalho escravo contemporâneo
é uma realidade e está conectado com as principais redes de produção globais.
A
da pesca, por exemplo. Conheci James Kofi Annan, de Gana, na África, vendido
como escravo aos seis anos de idade. Até os 13, trabalhou para pescadores,
experimentando diariamente tortura, fome, negligência, abuso verbal e físico.
Viveu com doenças dolorosas que nunca foram tratadas e lhe foi negado acesso a
cuidados médicos. Escapou do cativeiro e conseguiu ir para a escola, estudando
até concluir a universidade. Mas largou o emprego estável para criar uma ONG e
ajudar outras crianças e famílias que estão nas mesmas condições pelas quais
ele passou.
Ou
a da produção de carne bovina. Entrevistei Antônio, há alguns anos, no Sul do
Maranhão. Ele havia sido comercializado junto com um grupo de outros 41 homens
para limpar o pasto do gado na fazenda de Miguel de Souza Rezende na região
amazônica. ''Nós fomos vendidos! Oitenta reais pra cada cabeça, os 42'',
lembra. ''Quando completou 30 dias eu disse: meninos, quem quiser ir embora
mais eu, nós vamos. Aí o cantineiro avisou nós: ''rapaz não sai de nenhum de
vocês, se saírem vocês morrem. Tem muito jagunço na fazenda.'' Os esforços da
sociedade civil, governos e empresas para erradicar esse no Brasil fez com que
a situação pela qual passou Antônio seja menos comum. Mas ela ainda acontece.
Por
exemplo, na fabricação das roupas que vestimos. Para quem acha que comércio de
gente ocorre apenas em locais distantes dos grandes centros, conto um caso na
capital paulista. No dia 9 de fevereiro de 2014, dois migrantes bolivianos
aguardavam pacientemente o dono de uma confecção de costura para a qual
trabalhavam tentarem concluir a ''venda'' de ambos, estipulada em R$ 1 mil por
cabeça. Se não fosse a solidariedade de outras pessoas que presenciaram a cena,
o negócio teria sido concretizado e a Polícia Militar não teria sido chamada
para por fim ao comércio de gente que ocorria em uma via pública.
Logo
depois do ocorrido, a Repórter Brasil foi a Sucre, na Bolívia, e conseguiu
encontrar uma das vítimas. “Não conhecemos nenhuma rua da cidade e não falamos
português. Você acha que nós fugiríamos para onde?”, perguntou. Posteriormente
localizado pelas autoridades, o dono da confecção afirmou que estava tentando
''ajudar'' os dois a conseguir outro emprego.
A
Organização Internacional do Trabalho estima a existência de, pelo menos, 40
milhões de pessoas submetidas a trabalho escravo em todo o mundo, produzindo
lucros anuais superiores a 150 bilhões de dólares. É um cálculo modesto,
considerando que os processos migratórios forçados por conflitos armados e
mudanças climáticas alimentaram fortemente o tráfico de seres humanos para a
exploração econômica e sexual nos últimos anos.
No
Brasil, não temos uma estimativa confiável de quantas pessoas estão sob essas
condições. Mas dados do Ministério do Trabalho apontam que, desde 1995, mais de
50 mil pessoas foram, oficialmente, resgatadas da escravidão.
O
país costumava ser considerado um exemplo global no combate ao trabalho escravo
pelas Nações Unidas. Contudo, ações do governo Michel Temer – como a desastrosa
tentativa de reduzir o conceito de escravidão contemporânea e dificultar a
libertação de pessoas através de uma portaria publicada no dia 16 de outubro –
têm sido vistas como preocupantes pela comunidade internacional.
A
medida, suspensa por liminar pelo Supremo Tribunal Federal após forte
indignação da sociedade, visava a atender reivindicações da bancada ruralista e
de empresas do setor de construção civil e foi tomada em meio ao processo de
angariar votos de deputados federais para rejeitar a denúncia contra Temer por
organização criminosa e obstrução de Justiça.
Em
um evento nas Nações Unidas, em Genebra, nesta sexta (1), um representante do
Reino Unido falou logo na sequência do representante do Haiti sobre a importância
de combater globalmente o problema. A cena me lembrou que o espaço das palavras
diplomáticas não traduz, necessariamente, a ironia da realidade. No final de
2013, a Anglo American, gigante da mineração sediada em Londres, foi
responsabilizada pelo governo por escravizar 172 trabalhadores, em Minas Gerais
– dos quais 100 eram refugiados haitianos. O Reino Unido vem se esforçando para
criar leis e combater o trabalho escravo e tem sido um ator importante nesse
processo. Mas a responsabilização de suas empresas por seu governo ainda
engatinha.
A
verdade é que é o investimento de governos e empresas no combate ao trabalho
escravo tem sido dinheiro de troco em comparação ao que se lucra anualmente com
a superexploração de trabalhadores migrantes. É o que chamamos de ''Efeito
Batman'': de dia, um bilionário que, de uma forma ou de outra, explora os
cidadãos de Gotham. De noite, um vingador que quer ser o exemplo da Justiça.
Claro que o impacto do que ele faz de noite não chega aos pés do problema
causado por sua ação de dia.
Passou
da hora do mundo atuar para que países e empresas sejam responsáveis por suas
ações. Precisam injetar, urgentemente, recursos no atendimento e inclusão de
vítimas e sobreviventes ao mesmo tempo em que atacam os lucros provenientes
dessa forma de exploração. Países precisam punir as empresas que não cuidam de
suas cadeias produtivas e fecham os olhos para as consequências. E,
principalmente, precisamos combater o que está na origem da venda de escravos a
céu aberto, na África, na Europa, no Brasil. Pois escravidão é sintoma, não
doença. É um indicador de que nosso modelo de desenvolvimento, concentrador e
excludente, precisa ser alterado. Só a redistribuição de riquezas, de
oportunidades e de Justiça é capaz de erradicar cenas como as que temos visto.
Faz
quase duas décadas que atuo no combate ao trabalho escravo. Imagens como as que
circularam nas redes sociais, por mais que sejam desesperadoras, não configuram
novidade. Comoções passam com o tempo, soterradas por outras tragédias. Novidade
será se, desta vez, o mundo resolver não esquecer. (Com informações do Blog do Sakamoto).
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Trabalhadores vítima do tráfico de pessoas para o trabalho escravo são resgatados no Pará. (Foto: Leonardo Sakamoto). |