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Jovens de 13 e 14 anos resgatados pelo governo federal em uma fazenda de gado no Pará. (Foto: Leonardo Sakamoto). |
A
nova ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves
afirmou que foi inaugurada uma "nova era" no Brasil, na qual
"menino veste azul e menina veste rosa", em vídeo que circula nas
redes sociais. Ela, que havia defendido uma "contrarrevolucão
cultural" nas escolas, disse, em seu discurso de posse, nesta quarta (2),
que "acabou a doutrinação ideológica de crianças e adolescentes no
Brasil". Para ela, "menina será princesa e menino será
príncipe".
É
cansativo a esta altura do século 21 estarmos discutindo cores de roupas e
tipos de brinquedos relacionados a um gênero. Crianças devem brincar e se
vestirem como quiserem. Questionada diante da repercussão da declaração, a
ministra explicou à reportagem do jornal O Estado de S.Paulo que isso era uma
"metáfora".
"Fiz
uma metáfora contra a ideologia de gênero, mas meninos e meninas podem vestir
azul, rosa, colorido, enfim, da forma que se sentirem melhores."
Erra
de figura de linguagem, portanto. A que caberia aqui não seria uma metáfora,
mas um paradoxo. Pois ao reforçar a existência de cores pré-determinadas de
roupas para meninos e meninas, ela está defendendo o contrário, ou seja, a
existência de uma ideologia – a sua, no caso – dizendo o que cada gênero deva
vestir.
"Ideologia
de gênero" é martelada cotidianamente em nossas cabeças para que
acreditemos que homens valem mais do que mulheres, naturalizando formas de
violência. O que é chamado pela extrema direita de "ideologia de
gênero" é, justamente, o questionamento dessa ideologia de gênero.
Essa
ideologia contemporiza quando a mulher é transformada em objeto de prazer para
ser violentado dentro da própria casa e alvo de ejaculação em trens e ônibus;
chama o assédio sexual e o desrespeito de "simples elogio" ou
"brincadeira"; declara o corpo delas é propriedade masculina,
tentando proibir até abortos em caso de estupro; faz com que elas se sintam
culpadas pela violência que sistematicamente sofrem; torna o disparate tão
normal a ponto de nunca ser preciso pedir desculpas, mas, pelo contrário, faz
com que esperemos delas a desculpa pela nossa agressão. Diz o que um menino e
uma menina precisam vestir, como devem brincar e o que podem ou não ser quando
crescerem. Pois impõe que tarefas domésticas e o cuidado com os filhos são
coisas de mulher e a arena da política, assunto de homem.
A
ministra deveria se preocupar não como cada criança se veste ou brinca, mas
quando ela é vítima de violência física, psicológica e institucional. Ou quando
é obrigada a trabalhar.
Cerqueiros
perfuravam o chão, plantando mourões e passando arame por quilômetros a fio sob
o sol forte da Amazônia paraense. O serviço era pesado: dependendo do relevo, a
cabeça ardia por dias até que se completasse um quilômetro de cerca. O pequeno
açude, turvo e sujo, servia para matar a sede, cozinhar e tomar banho. Um
perigo, pois a pele ficava impregnada com o veneno borrifado para tratar o
pasto. Dessa forma, a terra ia se dividindo – não entre os cerqueiros, que
continuarão sonhando com o dia em que plantarão para si, mas em grandes pastos
para os bois. Dentre os trabalhadores, olhos claros e pele queimada, Jonas, de
14 anos.
Analfabeto,
me contou que morava em uma favela no município com a família adotiva e ia ao
campo para ganhar dinheiro. Trabalhava desde os 12 para poder comprar suas
roupas, calçados, fortificantes e remédios – até então, já tinha pego uma
dengue e cinco malárias. Com o que ganhava no serviço, também pagava sorvetes e
lanches para ele e seus amigos. E só. Segundo Jonas, a adolescência não era tão
divertida assim: "brincadeira lá é muito pouca."
Seu
padrasto era um dos "gatos" da fazenda. A mãe, uma profissional do
sexo que engravidou de um viajante francês. Gato é como são chamados os
contratadores de serviços, que arregimentam pessoas e fazem a ponte entre o
empregador e os peões. Porém, isso não lhe garantiu nenhum tratamento especial:
teve que descontar do salário a bota que usava para trabalhar. Perguntei para o
padrasto se isso era justo. Ele, de pronto, me respondeu que não considerava a
venda do calçado para o próprio filho errado e justificou: "como vou sustentar
a minha mulher?"
O
alojamento que Jonas dividia com os outros era feito de algumas toras fincadas
no chão, um pouco de palha e uma lona cobrindo tudo. O sol transformava a casa
improvisada em forno, encurtando, assim, a hora do almoço. Redes faziam o papel
de camas, penduradas aqui e ali para embalar, entre um dia e outro de trabalho,
os sonhos das pessoas.
O
de Jonas, como vários outros rapazes da sua idade, era ser jogador de futebol.
Presença garantida nos times dos mais velhos, participava de jogos e
campeonatos quando eles aconteciam. Queria ser profissional, mas apesar de
gostar dos times do Rio de Janeiro e de São Paulo, preferia ficar lá mesmo no
Pará – quem sabe, algum dia, vestindo as camisas do Paysandu ou do Remo. Por
nunca ter ganho na vida um presente de aniversário, não esperava nada naquele
ano. Mas disse que pediria uma bola – se pudesse.
Acompanhei
várias operações do governo federal para resgatar trabalhadores da escravidão
nestes últimos 18 anos, a maior parte delas na Amazônia. Também acompanhei
ações para combater o trabalho infantil. Encontrei vários "Jonas",
que também queriam ser jogadores de futebol. Talvez porque gostassem do esporte
como nós. Ou talvez porque viam nele a possibilidade de se verem livres daquela
vida, com a bola carregando-os para bem longe, longe o bastante para nunca mais
voltar.
Conversei
com crianças escravas fazendo tapetes no Paquistão, ex-soldados infantis
escravizados na África, jovens que trabalharam como servas domésticas no Haiti
ou que foram forçadas ao sexo comercial na Europa. No Pará, bordeis com
"puta com idade de vaca velha", como diziam os seus frequentadores.
Ou seja, de 12 anos. Enquanto isso, em um posto de combustível, entre o
Maranhão e o Tocantins, meninas franzinas usavam sua voz de criança para
oferecer programas e por muito pouco deixavam a inocência do lado de fora da
boleia do caminhão. Aqui e ali, acompanhei libertações de escravos em fazendas
de gado com a presença, ainda que minoritária, de crianças e adolescentes.
Por
isso, sou obrigado a discordar da ministra Damares Alves. O Brasil só entrará
em uma "nova era" quando nenhuma criança e adolescente forem
molestados pelo que vestem e como brincam. E quando mais nenhum deles for
obrigado a trabalhar em nome da sobrevivência da família ou do desenvolvimento
econômico do país.
O
combate ao trabalho escravo bem como a proteção da dignidade de crianças e
adolescente avançaram muito desde a redemocratização, mas há muito ainda a
fazer. Considerando que sua pasta é responsável pela articulação de ambos os
temas em nível federal, creio que a ministra tem um longo caminho antes de poder
celebrar qualquer coisa. (Por Leonardo Sakamoto, em seu blog).