POR
QUE será que certas forças conservadoras têm defendido com tanta veemência a
manutenção de símbolos de uma única religião em prédios públicos? Por que negar
a norma constitucional que determina a separação entre Estado e religiões no
Brasil? A quem interessa esse retrocesso? No ano que vem, o decreto 119-A
completa 120 anos de vida. Ele significou um marco histórico, a partir do qual
o Brasil optou pelo Estado laico.
Do
Geledés - E determinou pela primeira vez a separação entre Estado e religiões.
Por força dessa norma, cemitérios passaram a ser administrados pelo Estado e
instituiu-se a figura do casamento civil. Isso aconteceu em um contexto de
transformações sociais e políticas trazidas pelo novo Estado republicano -que,
aliás, no ano seguinte ao decreto, adotaria a laicidade na própria Constituição
Federal.
A
partir daí, várias questões têm vindo à tona para testar o quanto o Estado
brasileiro é realmente laico. E para medir qual a magnitude da separação entre
Estado e religiões no país. Na verdade, desde a reforma protestante, no século
16, Martinho Lutero alertou sobre os problemas relacionados à adoção do direito
canônico como instrumento regulador da sociedade. Preocupava-se com a
necessidade de ter leis laicas.
Porque
as leis canônicas se lastreiam em dogmas, verdades históricas absolutas e
inquestionáveis. E a comunidade precisa de regras baseadas na racionalidade e
mutáveis, porque o comportamento humano é dinâmico e, por isso, mutável.
Antes
dessa separação, também os conceitos de crime e pecado se confundiam. As penas
criminais eram, na verdade, castigos a serem impostos àqueles que violavam
interesses da igreja ou do Estado, principalmente. E a pena principal era a de
morte.
As
ideias do modernismo determinaram profunda revisão de conceitos, colocando a
dignidade humana como foco de preocupação dos povos. Apesar disso, no Brasil,
setores conservadores, avessos ao respeito à Constituição, dizem que a maioria
do povo é católica e que isso deve determinar um tratamento privilegiado para a
Igreja Católica.
Chegam
a propor, ainda que veladamente, na forma de acordo internacional, a violação
do artigo 19 da Carta ao pretender uma reformulação do regime jurídico da
relação Estado-religiões.
Isso
é negar a essência da democracia. Porque, no sistema democrático, a voz da
maioria prepondera na escolha do governante. Mas o eleito, passadas as
eleições, deve governar para todos, incluídas as minorias, e não apenas para a
maioria que o escolheu.
Essa
concepção, que parece óbvia, é realidade concreta na França desde a revolução
de 1789, tendo sido banidos de prédios públicos os símbolos religiosos. Da
Justiça, das escolas, de todos. Também já se enterrou lá a ideia do ensino
religioso em escolas.
E
não é só na França. O mundo ocidental como um todo caminhou nessa direção. E
até mesmo em países monarquistas, como Inglaterra e Dinamarca, a manutenção de
uma religião oficial não impediu a existência de ordenamento jurídico laico. Lá
se respeitam na plenitude as liberdades públicas e os direitos civis dos
cidadãos, sendo autorizado o casamento homossexual na Inglaterra e o aborto na
Dinamarca, entre outros direitos.
É
triste constatar que, aqui no Brasil, quase 120 anos depois da opção pela
república laica, deparamo-nos diariamente com incontáveis desrespeitos à
cidadania. Que a neutralidade religiosa, que deveria ser a tônica das ações dos
nossos agentes políticos, ainda seja meta distante de ser alcançada.
Precisamos
reafirmar a cada dia nossa opção republicana laica. E precisamos mostrar às
próximas gerações de brasileiras e brasileiros que cada um tem o direito à
liberdade plena. De manifestação, de associação. De crer ou não crer. E que
ninguém tem o direito de se opor ao exercício desse direito.
Que
se opor a esse exercício significa negar a república, a democracia e a
tolerância religiosa brasileiras.
Portanto,
em boa hora o Ministério Público Federal pediu à Justiça que sejam retirados
símbolos alusivos a uma religião das dependências de prédios públicos federais.
O espaço público é de todos, e não só dos adeptos daquela religião.
Os
agnósticos e ateus, assim como as minorias adeptas a todas e quaisquer
religiões, têm direito de estar nesses locais sem se constrangerem com a
existência de símbolos de uma religião à qual não aderiram. Trata-se de
respeitar cada brasileiro e cada brasileira no exercício pleno de suas
liberdades públicas, que devem ser defendidas sempre de forma intransigente.
ROBERTO
LIVIANU, doutor em direito pela USP, é promotor de Justiça em São Paulo e
coordenador, no Movimento do Ministério Público Democrático (MPD), de projeto
sobre Estado laico.
Matéria
original: Sagrada laicidade
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Sagrada Laicidade. Foto/ Reprodução/ Geledés. |