Muitas
vezes, quando queremos nos referir a alguém que é fingido ou sacana, dizemos
que fulano é um "artista". Se pensarmos na raiz etimológica da
palavra hipocrisia, não estamos de todo errados, ela vem do grego hypokrisis,
que designava, na antiga Grécia, os atores de teatro, pois durante as
apresentações eles fingiam ser outras pessoas. Com o tempo, a partir
principalmente da idade média, hipócrita passou a indicar qualquer pessoa falsa
ou fingida, e foi com esse sentido que entrou em nossa língua.
Retomo
sua etimologia porque quero falar de duas hipocrisias diferentes, relativas a suas
violências correspondentes.
A
primeira hipocrisia é a que muitas pessoas (uns ingênuos e outros conscientes)
demonstram diante de fenômenos como o racismo e a homofobia, violências que
atentam contra a dignidade das pessoas. Registros de racismo e homofobia
parecem estar crescendo nos dias de hoje, em função dos inúmeros casos que se
tornam público. Não penso que se trata apenas disso, hoje vivemos uma clara
transição civilizatória que é cultural e institucional. A vigília de uma massa
crítica cada vez maior de ativistas anti-racistas e anti-homofobia é um fato,
bem como a ampliação dos canais de denúncia e um maior encorajamento para
fazê-lo. A tolerância com atos de racismo e homofobia está cada vez menor,
entretanto, posturas que visam diminuir a importância desses atos e demonstram
dificuldade em aceitá-los como habitus (Bourdieu) estrutural da nossa sociedade
também são muitas.
Essas
posturas que relativizam os preconceitos podem ser facilmente identificadas
entre humoristas, jornalistas e formadores de opinião da grande mídia. Com todo
esse espaço, essas opiniões mesquinhas que minimizam discriminações
reivindicando um "direito de ser preconceituoso" se espalham como
vírus em comentários pelas redes sociais. É só ter estômago para ler
comentários, por exemplo, em postagens sobre o caso de racismo com o goleiro
Aranha e sobre o caso do incêndio do CTG em Livramento onde um casal gay
casaria.
Vamos
ver alguns exemplo dessas vozes: "agora
tudo é racismo", "é uma
neura de perseguição", "que
chatice esse politicamente correto", "eles saem com camisa com 100% negro e eu não posso sair com uma 100%
branco", "vamos fazer o dia
do hétero também", "racismo
está na cabeça dos negros", "raças
não existem".
Desde
já, preciso sugerir o documentário "O riso dos outros" de Pedro
Arantes para encurtar caminho e não precisar falar muito sobre essa onda de
"humoristas" que visam perpetuar piadas racistas, homofóbicas,
classistas e que pra se defender
denunciam uma suposta "ditadura do politicamente correto". Esse humor
atrasado, quer se apresentar como transgressor ao reproduzir piadas que exalam
preconceitos contra minorias e ainda reclamar de uma suposta
"censura" advinda de militantes e ativistas sociais e da
judicialização. Na verdade, como não criam nada novo e perceberem que ao se
utilizar da "liberdade de ser preconceituoso" se promovem na mídia,
eles seguem tendo os esteriótipos, o riso das desigualdades e a aceitação
acrítica do status quo como matéria prima para o humor.
Qualquer
pessoa esclarecida ao ver esse excelente documentário entenderá de onde vem
esse discurso, de que lado ele está e o que representa dos dias de hoje. Na
fala de um dos entrevistados da película, o professor Idelber Avelar,
aprendemos que: "temos ainda uma situação de brutal desigualdade na qual
as pequenas conquistas dos grupos historicamente excluídos não podem ser
apresentadas como uma espécie de nova ditadura ou nova ortodoxia. Politicamente
correto é um termo que designa uma relação fantasmática de uma camada social
dominante com uma suposta opressão vinda de baixo que na verdade nunca teve
realidade nenhuma".
Portanto,
essa grita contra o politicamente correto é substrato de um discurso
conservador e de direita que promove uma disputa contra setores sociais
discriminados que, em função dessa transição que vivemos, passam a ter algumas
conquistas e incomodam os que sempre naturalizaram preconceitos e
discriminações. Se esse é seu lado, reproduza todas essas simplificações que
são feitas, pelo menos agora tens consciência disso.
O
caso Aranha e do CTG em Livramento nos proporcionaram aprendizados importantes.
Além de um clubismo e folclorismo gauchescos fanáticos, muitas pessoas sensatas
caíram no "canto da sereia" que relativiza o preconceito recorrendo
ao discurso da diferença. O quê? Como assim?
"No
futebol racismo é normal, sempre foi assim, e as vaias ao goleiro negro que
denunciou racismo é um direito da torcida", "se eu quiser tenho
direito de não gostar de negros e gays, é um direito meu". "Nos
lugares do tradicionalismo gaúcho temos direitos de preservar nossa homofobia,
aqui é um lugar privado e não vamos casar gays".
Todos
sofismas retóricos desprezíveis. Ninguém tem direito ao preconceito. A
tolerância termina quando ocorre a intolerância, como muito bem refletiu
Juremir Machado em três textos fundamentais com links no final deste. "Há
um jogo retórico no ar: a tolerância teria de ser total, abarcando inclusive a
intolerância, para não ser intolerante" diz ele.
Ninguém
está acima da lei, se alguém não gosta de negros e gays deve se tratar, fazer
terapia, e guardar isso, porque se expressar isso cometerá um crime que atacará
a dignidade de milhares de pessoas.
Portanto,
não há lógica plausível em reivindicar o direito à diferença para ser
preconceituoso, pelo simples fato de que sê-lo não configura uma diferença, mas
sim um crime. Racismo e homofobia não se tratam de opiniões, mas crimes que a
civilização e o processo de desenvolvimento humano não toleram mais.
O
preconceito não é um escolha individual, é uma crença (doença) coletiva
assimilada por muitos em seus hábitos e pensamentos, essa crença nega o direito
de ser feliz a muitas pessoas. Uma morte LGBT acontece, em média, a cada 28
horas motivada por homofobia no Brasil. Dados sobre a morte de jovens negros
circulam nas estatísticas diariamente, sem comentar o perfil da população
carcerária. Mas podemos pensar em casos individuais em que o preconceito exerce
papel definitivo na vida afetiva das pessoas, nas famílias. Quantos gays sofrem
além do medo da violência, o medo da rejeição, da exclusão e por isso abdicam
de seguir suas vidas plenamente com quem gostam? A bela série de Selton Mello,
"Sessão de Terapia" no GNT, tratou de um caso desses nessa sua
terceira temporada, Felipe, personagem das quartas-feiras.
A
segunda hipocrisia que destaco não tem apenas pessoas como portadoras, mas os
meios de comunicação hegemônicos, ou em uma clave mais genérica, a indústria
cultural (Adorno e Horkheimer). Os canais de Tv noticiam alarmados os casos de
violência que ocorrem em todas esferas da sociedade, os portais da internet
exploram violências domésticas, nas escolas, nos grandes centros urbanos,
bradam pela ineficácia da segurança pública.
Não
vou entrar aqui no mérito de que a segurança pública vista como guerra contra o
crime e as drogas está falida. Vou comentar sobre a violência mais gratuita,
aquela que é indicativo do grau de brutalidade e violência que crianças e jovens
estão expostos hoje em dia.
Se
pegarmos os trinta últimos filmes que passaram da Tela Quente ou Supercine, que
perfil de filme teremos? Isso vale para as outras emissoras. Vamos pensar agora
sobre jogos eletrônicos que adolescentes jogam na internet ou no vídeo game.
Grande maioria tem como personagem matadores letais, se dão em cenários de guerras
e outros eventos violentos. E o esporte que mais cresce em termos de exposição
midiática e lucros? Ganhou inclusive reality show, é o MMA, que deixa de lado
os melhores aspectos das artes marciais e traz em sua superfície a lógica da
"luta livre" bizarra, impossível de dissociar da promoção da
agressividade.
Poderia
ficar dando outros exemplo, mas diante desse leque básico de violência que nos
acessa, é evidente a hipocrisia dos meios de comunicação que cegamente
priorizam a lógica da audiência/lucro sem levar em conta nenhum aspecto
educativo. Inclusive deixando de cumprir seu papel por ter uma concessão
pública de mídia, que deveria atender a um conjunto amplo de exigências
formativas para cidadania que nunca foram levadas a sério.
E
quando se pensa em tocar no assunto, democratizar e regulamentar os meios de
comunicação, as poucas famílias que comandam a indústria cultural brasileira,
gritam desesperadas que sua liberdade está sendo atacada. As mesmas
argumentações que desconstroem o grito contra o politicamente correto valem
para esse discurso da elite midiática. Com objetivo de reproduzir privilégios e
garantir seus mecanismos de manipulação eles tentam nos convencer que os
"ditadores" são aqueles que querem mexer no seu monopólio e no seu
poder.
Gente,
toda essa hipocrisia não está em uma nuvem, ela tem nome e endereço: Danilo
Gentili, Rafinha Bastos, Roger (Ultraje), Rodrigo Constantino, Luiz Felipe
Pondé, Reinaldo Azevedo, David Coimbra, Percival Puggina, Marcelo Taz, Demétrio
Magnoli, Ali Kamel e muitos outros.
Esses são representantes desse pensamento que confunde licenciosidade com
liberdade, direito à diferença com direito ao preconceito.
Para
eles, rir, brincar com a condição de outro ser, com a desigualdade, a
identidade, a orientação sexual, a cor e a religião de alguém pode ser
considerado apenas uma brincadeira. É só uma piada? Ou insulto, alienação,
ignorância, discriminação, preconceito e falta de compromisso ético com uma
sociedade mais humanizada, mais respeitosa?
Pessoas
que não sofrem diuturnamente com o preconceito e com violência, caso não se
disponham a entender o mundo em que vivem, estão suscetíveis a reproduzir
valores e pensamentos (em formato de piada ou não) que corroboram com
injustiças inaceitáveis. No Rio Grande
do Sul, infelizmente, temos uma formação cultural preconceituosa na sua espinha
dorsal, os lugares sociais dos negros e dos homossexuais estão historicamente
demarcados no imaginário coletivo, mesmo a elite intelectual, aquela que acessa
o ensino superior, reproduz pensamentos antiquados.
Isso
é visivelmente enraizado, principalmente, nas gerações que estão acima dos 50
anos, viveram quase toda sua vida imersos em ambientes que fazer piada de preto
e bicha eram coisas normais, em que gay era ligado a promiscuidade e Aids, em
que negros não frequentavam clubes sociais por todo o estado. Essa geração
retroalimentou ignorâncias e passou para seus filhos e netos, haja vista, o
quão normal é ouvirmos comentários e opiniões extremamente preconceituosas nos
nossos meios familiares e sociais.
Desnecessário
dizer que essa análise não pretende generalizar, mas mostrar como estamos
diante de confusões sérias, que induzem pessoas bem intencionadas a repetir
mantras que não os representam. A internet abriu a possibilidade de lermos
mais, todavia, intensificou o que chamo de "opinismo instantâneo", as
pessoas opinam e compartilham conteúdo mais rapidamente que os leem com acuro.
Vamos
ficar atentos ao fato de que muitas pessoas estão incomodadas com a transição
civilizatória e institucional que estamos vivendo, elas querem manter
"aquele tipo de gente no seu lugar", elas estão acostumadas com
pobres, negros e gays em determinada posição social que não é na parte de cima
da pirâmide, essa "cobertura" é delas. Quando alguém se levanta,
exige respeito e mudanças, gera desconforto e então entra em ação o grupo
supracitado das "pessoas de bem" e "defensores das liberdades de
expressão". Esse grupo formula esse tecido argumentativo conservador e
demagógico para anestesiar as mentes que poderiam aderir a um projeto ético e
político de sociedade que promova rupturas radicais com a moralidade e as
condições sociais atuais.
Hipócritas
são atores como vimos, buscam convencer os outros de algo que não é real, por
isso são demagogos, palavra que também vem do grego, demos = povo e agogos =
conduzir, demagogia seria a arte ou poder de conduzir o povo. É uma forma de
atuação política na qual existe um claro interesse em manipular ou agradar
todos, visando apenas a conquista do poder político ou ideológico.
Não
vamos cair nesse conto atrasado, que justifica violências de todos os tipos.
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