Número de brasileiros que se autodeclaram pretos atinge número recorde, mas a maioria se diz parda

 

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Mais preto e menos branco. Essa é a forma que os brasileiros veem a si mesmos, de acordo com os números revelados nesta sexta-feira (16) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), obtidos pelo último censo realizado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, em 2022. Os dados vêm depois de dois anos em que não foi possível a realização de pesquisas, por conta da pandemia.

O número de brasileiros que se autodeclaram pretos aumentou no Brasil nos últimos 10 anos. Se em 2012 eram 7,4 % da população, em 2022 eles foram 10,6% dos entrevistados, sendo o grupo racial que mais cresceu. Nunca na história do país tantas pessoas se declararam pretas.

Entre os que se declaram pardos não houve variações significativas. Foram 45,3% em 2022 (45,6% em 2012). É o maior grupo racial brasileiro.

Já a população branca diminuiu. De 46,3% em 2012, este grupo agora é 42,8%. Houve uma queda da população branca em todas as regiões do Brasil, sendo mais significativa no Sul, onde em 2012 representava 78,8% da população, para 72,8% em 2022.

Indígenas e quilombolas têm um censo específico. Os dados também foram colhidos em 2023 e devem ser divulgados em breve.

MUDANÇA NO COMPORTAMENTO REFLETE NO CENSO

Os números do censo fazem sentido quando olhamos a História do Brasil, o último a abolir a escravatura. Foram quase 400 anos de escravidão e o reflexo disso, se traduz na cor do seu povo.

Com a chegada da Internet no começo do anos 2000, o se ver e se reconhecer se tornou possível e a força da representatividade foi um fator impulsionador no número de pessoas negras aumentando nas pesquisas do censo. Para o colunista do Mundo Negro, o professor Ivair Augusto Alves dos Santos, Mestre em Ciências Políticas pela Unicamp e Doutor em Sociologia pela UnB, a potência da mídia, cultura e movimento negro, especialmente em espaços de poderm, foi fundamental na influência da autodeclaração.

A força do movimento negro, a mídia, novelas com mais representações negras, espaços de poder com mais negros, ações afirmativas, crescimento do números de parlamentares negras e as plataformas com conteúdo sobre negros é importante. Poderia continuar uma lista grande, mas a existência de uma figura como Vinicius Jr, não é por acaso, é fruto do trabalho de muitos ativistas”, detalha o ex-diretor do Departamento de Direitos Humanos da Secretaria de Direitos da Presidência da República.

Como a pessoa constrói essa identidade racial também é outro aspecto que deve ser considerado. “A tendência geral do censo do IBGE é que as pessoas têm um processo longo de construção da sua autodeclaração. São pessoas que vivem em espaços que não prevalecem os mecanismo identitários não negros. Estão em comunidades onde é mais comum a presença negra e em função deste circuito de vulnerabilidade criado pelo racismo no Brasil, são pessoas deste circuito que vão criando mecanismos de solidariedade, que vão tendo relações familiares dentro deste núcleo e com o passar do tempo vão construindo uma identidade”, comenta o professor e vice-diretor da Unesp, Juarez Xavier.

AUTODECLARAÇÃO E HETEROIDENTIFICAÇÃO

A ditatura removeu dados sobre questões raciais do censo e quando este tema retorna a coleta de dados do IBGE, a atuação do movimento negro é fundamental para o surgimento da autodeclaração.

A autodeclaração se constituiu, sendo parte de um grande processo de debate, de discussão que consumiu parte do final dos anos 70, 80 e a partir dos anos 90, porque a ditadura civil militar tirou os dados relativos à questão racial do censo”, explica o professor Juarez. Ele detalha que quando raça e cor voltam a ser discutidos, mais de 100 denominações surgiram para identificar a cor das pessoas não brancas.

Foi necessário então se criar um mecanismo, muito bom, pautado na autodeclaração e optou-se em trabalhar com os conceitos étnico-raciais.Por exemplo: preto, pardo, branco e amarelo são questões étnicas, e indígenas questões raciais. Isso foi definido depois de várias testagens feitas pela equipe do IBGE”, detalha o acadêmico que destaca a insistência do Movimento Negro para implementação deste método.

Sobre a heteroidentificação, há uma mudança no que se entendia anteriormente como pardo, que basicamente era toda pessoa que não se identificava nem branca e nem preta, como amarelos, cafuzos e mamelucos. “Começou-se a partir de 2012 a evitar este tipo de conceito, passou-se a considerar, para efeitos de políticas públicas de heteroidentificação, que pardo são as pessoas que têm ascendência negra”. A fenotipia das pessoas negras (cabelo, traços e tom de pele) é um dos critérios usados ao se cruzar dados para decidir se uma pessoa é considerada de ascendência negra e portanto, candidata a usufruir de ações afirmativas.

O professor ainda explica que as declarações do censo do IBGE tem um grande fator espontaneidade porque quem responde, não usufrui de nenhum benefício imediato, porém, não é possível saber, se quem se declarou pardo, realmente é uma pessoa de ascendência africana, sem se fazer uma “mineração desses dados”. Já na heteroidentificação, por haver um caráter de interesse, há uma tendência maior da autodeclaração ser duvidosa, e aí os fatores da heteroidentificação são o que determina quem realmente merece entrar, por exemplo, em uma universidade pelo sistema de cotas.

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Com informações do Mundo Negro.

Mauro Cid tinha no celular plano de golpe de Estado para impedir posse de Lula e manter Bolsonaro

 

(FOTO | PR).


Um roteiro para um golpe contra a eleição de Luís Inácio Lula da Silva (PT) foi encontrado no telefone celular do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Bolsonaro, e revelado em reportagem pela revista Veja. O documento, intitulado “Forças Armadas como poder moderador”, detalha um plano no qual os militares seriam convocados para intervir em uma eventual ruptura democrática no Brasil.

O roteiro inclui medidas como a nomeação de um interventor para restabelecer a ordem constitucional e até mesmo a cogitação do estado de sítio.

(FOTO | Reprodução | Revista Veja).


No telefone de Cid, também foi encontrado um segundo documento que menciona essa hipótese. O relatório revela ainda conversas entre Cid e o coronel Jean Lawand Junior, subchefe do Estado-Maior do Exército, considerado um dos principais apoiadores dessa tentativa de golpe, que teria sido cogitada até dezembro de 2022, pouco antes da viagem do ex-presidente aos Estados Unidos. Em uma dessas conversas, Cid sugere que Bolsonaro deveria “dar a ordem” para que as Forças Armadas agissem.

(FOTO | Reprodução | Revista Veja).


A revista lembra que, em uma entrevista anterior, Bolsonaro se referiu a Cid, que está preso há mais de um mês por envolvimentos em um escândalo de fraudes em cartões de vacinação, como “um filho”.

O primeiro passo que o roteiro prevê é o envio de um relatório das supostas irregularidades praticadas pelo Poder Judiciário aos militares.

Ao todo, o roteiro tem oito etapas. Quando recebessem o relatório, as Forças Armadas nomeariam um interventor, que fixaria um prazo para “restabelecimento da ordem constitucional”, diz o documento. As decisões do Judiciário e as ações dos magistrados seriam imediatamente suspensas. O interventor, que teria sob seu comando a PF, poderia suspender todos os atos normativos que ele considerasse “inconstitucionais”.

(FOTO | Reprodução | Revista Veja).


Um das etapas do documento menciona o afastamento dos ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com a justificativa de que eles seriam “responsáveis pela prática de atos com violação de prerrogativa de outros Poderes”. Uma das últimas etapas do passo a passo prevê a convocação de novas eleições, diante do reconhecimento, por parte das Forças Armadas e do interventor, de uma “situação em desacordo com a Constituição”.

Dentro do documento “Forças Armadas como poder moderador”, presente no relatório da PF, que destrincha o celular de Cid, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, alvo frequente do bolsonarismo, é nominalmente citado. O texto diz que ele “nunca poderia ter presidido o TSE, uma vez que ele e Geraldo Alckmin possuem vínculos de longa data”. A frase é uma menção ao fato de o ministro ter sido secretário de Estado do ex-tucano duas vezes, quando ele foi governador de São Paulo. Hoje, Alckmin é vice de Lula.

Prerrogativas pede prisão de militares

O Prerrogativas, grupo de advogados que apoiou Lula na eleição presidencial e que tem uma boa interlocução com o atual governo, defendeu nesta sexta-feira (16), que os militares envolvidos na articulação para o golpe devem ser presos.

Os militares têm que responder a processos administrativos disciplinares e, logo após o devido processo legal, respeito ao direito sagrado de defesa, quando não houver dúvida a respeito da participação deles, eles têm que ser mandados embora bem do serviço público”, diz Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do grupo.

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou na quinta-feira (15) o tenente-coronel do Exército Mauro Cid, o ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, a prestar depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Atos Antidemocráticos da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF). Ministro também garantiu o direito constitucional ao silêncio.

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Com informações da Mídia Ninja.

Nova Olinda sediará I Encontro de Professores de Ciências Humanas do Cariri

 

(FOTO | Reprodução).


Por Valéria Rodrigues, Colunista

O município de Nova Olinda, na interior do Ceará, será sede do I Encontro de Professores e Professoras de Ciências Humanas do Cariri.

Idealizado pelo professor Nicolau Neto, da EEMTI Padre Luís Filgueiras, e apoio da 18ª Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação (CREDE 18), o evento reunirá neste primeiro momento todos os professores/as que lecionam História, Sociologia, Filosofia e Geografia em 4 municípios da Rede Estadual de Ensino do Ceará que compõem essa regional: Altaneira, Crato, Nova Olinda e Santana do Cariri.

O encontro será realizado no dia 21 de setembro e terá como temática “Educação Escolar e os Saberes Negros e Indígenas”. Segundo Nicolau, o objetivo é reunir professoras e professores interessados em discutir os caminhos para a construção de uma educação compromissada com as relações étnico-raciais com foco na superação do racismo e ao mesmo tempo na valorização dos saberes negros e indígenas. O que, para ele, passa necessariamente por uma mudança de paradigma educacional focado na descolonização curricular.

Nicolau afirmou a esta coluna que dentre os palestrantes que já confirmaram presença estão Marcos Ramos, professor de História da EEMTI Pe. Luís Filgueiras; Joedson Nacimento, professor indígena do Cariri e Carlos Tolovi, professor do Curso de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri (URCA). A professora Dayse Vidal, integrante do Grupo de Mulheres Negras Pretas Simoa e que atualmente leciona Sociologia no Estado do Rio Grande Norte ficou de confirmar sua participação.

É tarefa de todo democrata defender o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

 

A Reforma Agrária segue sendo uma transformação fundamental para a construção de um projeto de desenvolvimento. - Manuela Martinoya - MST.

No dia 17 de maio, foi instaurada na Câmara dos Deputados, em Brasília (DF), a Comissão Parlamentar de Inquérito do MST, com o objetivo de investigar uma suposta escalada de ocupações de terras no Brasil. É a quinta CPI enfrentada pelo MST ao longo de sua história. Expressão da correlação de forças desfavoráveis no Congresso, a presidência da CPI ficou com o Coronel Zucco (Republicanos-RS), investigado por incentivar os atos golpistas do 8 de janeiro; e a relatoria com Ricardo Salles (PL-SP), ex-ministro de Bolsonaro, investigado por um conjunto de crimes ambientais, inclusive, organização criminosa, quando tentava “passar a boiada” à frente do Ministério do Meio Ambiente. 

O que temos visto desde então é um verdadeiro circo de horrores, com a tentativa absurda de associar à luta pela terra no Brasil ao trabalho escravo e ao narcotráfico. Justamente o inverso da realidade brasileira, como demonstram as recentes denúncias de trabalho escravo nas vinícolas em Bento Gonçalves (RS), mas também, como evidenciado pela Agência Pública, em matéria de outubro de 2020, uma investigação da Polícia Federal realizada naquele ano demonstrou que parte dos lucros com o tráfico de cocaína no Brasil são lavados no agronegócio, através da aquisição de fazendas nas regiões de fronteira e no financiamento de campanhas.

Na verdade, o objetivo da CPI do MST é atacar o governo Lula e criminalizar a luta popular no Brasil, buscando desviar o foco da CPMI dos atos golpistas do 8 de janeiro. Vale lembrar que a democracia e os direitos sociais no Brasil são conquistas da classe trabalhadora. Se dependesse de grandes proprietários de terra no país, ainda viveríamos em uma sociedade escravista. Aliás, a própria Abolição, longe de ser uma benevolência da princesa, foi produto da luta da população escravizada e do movimento abolicionista, que defendia que o fim da escravatura no país fosse acompanhado justamente da democratização da propriedade de terra, da Reforma Agrária!

Neste sentido, o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra é continuidade da luta abolicionista no Brasil, mas também das lutas camponesas ocorridas com o advento da República, tais como Canudos, Contestado, Caldeirão, das Ligas Camponesas no Nordeste, do MASTER, no Rio Grande do Sul, etc. Enquanto não for democratizado a propriedade da terra no país, surgirão movimentos como o MST que lutarão pelo acesso à terra.

Portanto, como nos dizia o saudoso Florestan Fernandes, o que a CPI evidencia é justamente o caráter autocrático das classes dominantes no país, que são incapazes de relacionar desenvolvimento econômico, democracia e soberania e que, por conseguinte, tem um verdadeiro pavor quando os trabalhadores se organizam e lutam por seus direitos. Tratam a questão social no Brasil como questão de polícia.

Por isso, é fundamental que todos os democratas defendam o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra de mais uma tentativa de criminalização. A Reforma Agrária segue sendo uma transformação fundamental para a construção de um projeto de desenvolvimento, que produza alimentos saudáveis, que desenvolva o mercado interno, que estimule a industrialização, mas, que sobretudo, recupere a dignidade do povo brasileiro e acabe de uma vez por todas com a fome em nosso país.

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Com informações do Brasil de Fato-CE

Machado de Assis e o embranquecimento do Brasil

 

Machado de Assis em imagem clássica divulgada nos livros e em foto recriada pela campanha "Machado de Assis Real". (FOTO | Divulgação).

Por César Pereira, Colunista

Em 1911, na cidade de Londres, Inglaterra, centenas de intelectuais reuniram-se para participar do Primeiro Congresso Internacional das Raças. O evento ocorreu entre os dias 26 e 29 de julho, durante o evento discutiu-se intensamente sobre eugenia, darwinismo social, o suposto “fardo do homem banco,” raças, relações inter-raciais, cordialidade inter-racial.

O Brasil foi convidado para tomar parte no congresso, e teve como seu delegado o antropólogo João Batista de Lacerda que durante a realização da sexta sessão do congresso apresentou o trabalho intitulado "The Metis, or half-breeds, of Brazil" para intelectuais da Europa, África, Ásia e América. Era um artigo onde o representante brasileiro defendia sua tese de embranquecimento da população “mestiça” do Brasil.

Ao longo da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX, importantes intelectuais brasileiros refletiram sobre o papel histórico, econômico e social do negro para a civilização brasileira. Intelectuais brancos como José de Alencar, Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, dedicaram-se a pensar sobre o chamado “elemento negro” no Brasil.

Esses homens escreveram obras em que defendem um país com a hegemonia da branquitude sobre as características fenotípicas dos negros. Segundo a maioria deles, o negro representava a decadência da raça, e a sua predominância demográfica no Brasil explicava em grande parte nosso atraso cultural e econômico com relação as nações europeias mais ricas e “civilizadas” que eram os modelos para o Brasil das elites.

José de Alencar polemizou intensamente na imprensa fluminense nas décadas de 1860 e 1870 contra os abolicionistas que ganhavam força por todo o Império do Brasil. Em suas Cartas a favor da escravidão, José de Alencar argumenta contra a extinção do trabalho escravo no país e questiona sobre o futuro da nação depois que o “elemento servil” já não estiver sob a tutela de um senhor branco. Na visão do escritor cearense os pretos livres representavam um sério risco à sociedade brasileira.

Joaquim Nabuco foi um dos mais importantes políticos brasileiros do final do período monárquico. Suas principais pautas eram a defesa da manutenção da monarquia no país e a abolição da escravidão. Joaquim Nabuco defendia o fim da escravidão como um instrumento político que iria revolucionar o império, pois a escravização dos negros era uma mancha na sociedade brasileira uma vez que tal prática envergonhava o Brasil perante as nações civilizadas e atrasava a economia nacional.

Nabuco compreendia a escravidão não como sendo um instrumento que se impunha de forma violenta e destrutiva sobre seres humanos negros, mas como uma prática política imprópria para uma nação civilizada como a nossa. Para ele a escravização não era um problema porque violentava pessoas, mas porque fazia do Brasil uma nação bárbara perante as nações civilizadas da Europa. Acabar com a escravidão era libertar o Brasil.

Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Oliveira Vianna concluíram que a presença do negro no Brasil era um fator importante na formação cultural e econômica do país, mas para eles essa importância não se sobrepunha ao do branco, pois os brancos, principalmente a herança luso-europeia do Brasil deveria se impor sobre a africana.  Para estes intelectuais havia a necessidade de um predomínio do branco sobre o negro, a eliminação das chamadas características “negroides” por elementos “caucasianos” era fundamental para o Brasil caminhar lado a lado com a civilização europeia.

As ideias deles são ecos do pensamento geral da branquitude nacional nos fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Para Euclides da Cunha a própria miscigenação de várias raças no Brasil criou uma sub-raça, mestiços degenerados e que eram responsáveis pelos retrocessos culturais, econômicos e sociais.

O artigo de João Batista de Lacerda é a defesa dessa ideologia de embranquecimento do país. O projeto da branquitude propondo-se a criar uma nação branca, um Brasil cuja presença do negro fosse irrelevante ou inexistente se corporifica na comunicação de João Batista de Lacerda em Londres,

 Para Lacerda a escravização de pretos e pretas no Brasil não representou violências, pois esses homens e mulheres foram sempre tratados com cordialidade pelos seus senhores. Segundo ele não houve na história de nosso país violência escravocrata, pois em nenhum período histórico houve segregação do negro pelo branco.

Ainda segundo seu ensaio a aceitação da miscigenação a partir do livre intercurso sexual do branco e das negras no Brasil, criou por aqui uma singular “excepcionalidade racial”, pois por causa da "seleção sexual", os mulatos procurariam sempre encontrar parceiros que pudessem "trazer de volta seus descendentes para o tipo branco puro", removendo os aspectos característicos da "raça negra", inclusive o atavismo. (Lacerda, 1911a, p. 382).

Desenvolvendo mais ainda seus argumentos racistas, Lacerda afirma que a introdução de imigrantes brancos no Brasil em muito favoreceu a melhoria racial do país, assim, o cruzamento entre os mestiços e os brancos faria recuar o “elemento negro” decadente e aos poucos o “elemento branco” superior predominaria, prevendo João Batista de Lacerda que em cem anos 1912 a 2012 já não haveria mais negros no Brasil.

Grande parte dos dados que Lacerda apresenta para demonstrar sua tese do branqueamento, foram produzidos por Roquette-Pinto (Figura 1). Este outro intelectual brasileiro era assistente da cadeira de Antropologia, Arqueologia e Etnografia do Museu Nacional, portanto um jovem antropólogo que já vinha reunindo, pelo menos desde o ano de 1906, vastas informações, dados estatísticos sobre a formação social do Brasil, principalmente com relação à 'evolução' e às características raciais do povo brasileiro.

As pesquisas de Roquete-Pinto estavam apontando que a população branca no Brasil tinha crescido progressivamente, e de forma acelerada, entre 1870 e 1910, enquanto o crescimento da população negra e mestiça seguiam em sentido claramente oposto (Souza, 2011, p. 90-92). Se baseando, então, na sequência progressiva dessa estatística, não fora difícil para João Batista de Lacerda chegar à conclusão que, em 2012, a "raça branca" representaria 80% da população brasileira, os indígenas, 17% e os mestiços, 3%, sendo que a "raça negra" tendia a desaparecer de vez do território nacional (Lacerda, 1912b, p. 101).

O trabalho de Lacerda publicado em 1912, foi o amadurecimento de uma ideia que já vinha sendo desenvolvida desde o século XIX e que aparece ilustrada na pintura A redenção de Cam, de Modesto Brocos (1893). O diagrama criado por Roquete-Pinto se impunha como o elemento científico comprobatório da ideologia do branqueamento do Brasil.


Sintomaticamente no ano de 2011 a Caixa Econômica Federal veiculou na televisão um comercial utilizando um ator branco que representava o papel de Machado de Assis como um dos clientes do banco. Na propaganda um ator branco caminha pelas ruas do Rio de Janeiro no começo do século XX e dirige-se a uma agência da Caixa Econômica para fazer uma transação bancária. A peça publicitária é narrada pela atriz Glória Pires.

Ao entrar no banco o ator representando Machado de Assis é cumprimentado como um homem célebre das letras nacionais e o próprio comercial deixa isto evidente ao longo de seu 1 minuto e 2 segundos de duração. A ideia dos criadores da peça publicitária é deixar bem evidente ao público que aquele senhor branco grisalho é um dos maiores escritores da língua portuguesa.

Logo que a propaganda veio a público causou imenso desconforto em quem conhece bem a história de Machado de Assis. Filho de pai negro e neto de pretos que tinham sido escravizados, o escritor era um homem negro e foi como uma pessoa preta que alcançou a maior posição intelectual já atingida por escritor brasileiro em todo o mundo.

A cor da pele de Machado de Assis se tornou alvo de disputas entre a elite brasileira desde os primeiros dias de sua morte em 26 de setembro de 1908. Joaquim Nabuco que era seu amigo, pessoa que muito conviveu com ele desde a década de 1880 e se correspondia intensamente com Machado se pronuncia nesses termos sobre a cor deste: "O Machado para mim era branco. [...] quando houvesse sangue estranho, isto em nada alterava a sua perfeita caracterização caucásica" (NABUCO Apud MASSA, p.46).

A negritude de Machado de Assis sempre foi um problema para a branquitude brasileira. Ressentida por saber que o maior escritor da nossa língua e um dos maiores intelectuais do mundo é um indivíduo não-branco, então essa elite vai utilizar de todos os subterfúgios para impor um branqueamento que o fizesse seu legítimo representante.

Além disso, um Machado de Assis negro refutaria os argumentos da intelectualidade racista brasileira e internacional, aquela intelectualidade que se reunira em 1911 na cidade de Londres para argumentar sobre a superioridade da raça branca sobre a raça negra e desta primeira sobre todas as raças.

A peça publicitária da Caixa Econômica Federal foi a massificação da tese defendida por João Batista de Lacerda de que em cem anos não haveria mais negros no Brasil. Ora, analisemos de perto a estrutura da ideologia veiculada pela propaganda do banco federal.

Segundo Lacerda em 2012 a população brasileira seria composta de 80% de brancos, 17% de indígenas e apenas 3% de mestiços, negros seriam ausentes, logo, uma campanha publicitária para divulgar um dos bancos mais ricos do país, um banco que pertence ao país, país este supostamente segundo Lacerda formado predominantemente por pessoas brancas, pessoas que seriam os verdadeiros clientes do banco, indígenas consumiriam serviços bancários na selva? Mestiços pobres se utilizariam de bancos? Assim a campanha da Caixa Econômica Federal dirigiu-se para aqueles que ela considerava ser a maioria dominante do provo brasileiro, os brancos.

Se a tese de João Batista de Lacerda estivesse correta a propaganda da Caixa Econômica Federal teria acertado bem no alvo o ego da branquitude brasileira, pois como não existiria mais negros no Brasil, um Machado de Assis branco satisfaria muito bem o narcisismo branco.

Mas não foi isto que se deu. No dia seguinte ao início da primeira veiculação da propaganda o Movimento Negro, clientes do banco, jornalistas, escritores, intelectuais e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir-PR), questionaram o presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Hereda e este teve que suspender a peça publicitária do ar e solicitar da agência que a produzira fizesse uma outra agora com um ator negro representando o escritor.


Foto da representação das duas propagandas da Caixa Econômica Federal (FONTE | YOUTUBE)

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A cor da pele de Machado de Assis sempre foi um problema para as pulsões narcísicas da elite branca nacional. Mesmo quando o escrito era vivo, os intelectuais brasileiros já polemizavam sobre sua origem hereditária e a sua negritude. Num dos primeiros estudos sobre a obra machadiana o crítico literário e antropólogo Sílvio Romero escreve o seguinte:

Quem já o estudou à luz de seu meio social, da sua influência, de sua educa- ção, de sua hereditariedade não só física como étnica, mostrando a formação, a orientação normal de seu talento? Quem já lhe ‘assinou o posto’ na história espiritual do país? (ROMERO, p. 18)

 

E continua:

(...) Machado de Assis não sai fora da lei comum, não pode sair, e aí dele, se saísse. Não teria valor. Ele é um dos nossos, um genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada, por mais que pareça estranho tocar neste ponto (ROMERO, p. 28).

 

Este estudo de Sílvio Romero sobre Machado de Assis foi escrito nos meados da década de 1890 e publicado em 1897, isto é, quando o escritor estava no auge de sua carreira literária tendo já escrito e publicado os romances da primeira fase de 1872 a 1878 e as obras mais importantes da literatura mundial como Memórias Póstumas de Brás Cubas, O alienista, Quincas Borba, Papéis Avulsos e Histórias sem data.

Durante todo a crítica de Sílvio Romero sobre o escritor fluminense nota-se o desconforto deste com a negritude de Machado de Assis. Para Sílvio Romero a obra deste era imperfeita exatamente devido as suas influências hereditárias africanas. Podemos compreender que a visão de Romero eram os ecos do desconforto geral da intelectualidade branca nacional bem como da própria elite da qual o crítico literário sergipano havia se feito cão de guarda.

Nas citações acima percebe-se a obsessão de Sílvio Romero com relação a afrodescendência de Machado de Assis, tais obsessões narcísicas já muito evidentes quando o escrito era vivo se tornarão ainda mais intensas após sua morte. Romero defendia a seguinte tese sobre o futuro do Brasil:

A minha tese, pois, é que a vitória na luta pela vida, entre nós, pertencerá, no porvir, ao branco; mas que esse, para essa mesma vitória, tem necessidade de aproveitar-se do que de útil as outras duas raças lhe podem fornecer, máxime a preta com quem tem mais cruzado. Pela seleção natural, todavia, depois de prestado o auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância até mostrar-se puro e belo como no Velho Mundo. Será quando já estiver de todo aclimatado no continente. Dois fatos contribuirão largamente para esse resultado: de um lado, a extinção do tráfico africano e o desaparecimento constante dos índios, e de outro a imigração europeia. (ROMERO, p. 47).

 

Percebemos que as ideias de Sílvio Romero são muito semelhantes a ideologia geral que predominava entre a intelectualidade branca brasileira em fins do século XIX e início do XX. Para estes porta vozes da elite não havia futuro para o negro no Brasil. Desse modo explica-se por que se recusavam a aceitar um Machado de Assis afrodescendente.

Relutante em reconhecer a genialidade da obra de Machado de Assis devido as suas ideias racistas, Sílvio Romero passa a analisar a obra machadiana como imitação da escrita de Flaubert, Zola e Charles Dickens. Para Sílvio Romero a literatura de Machado de Assis é apenas uma imitação dos cânones europeus.

Mesmo diante da relutância de Romero outros críticos literários e intelectuais precisaram reconhecer a genialidade de Machado de Assis. Um desses críticos foi José Veríssimo. Para este o Machado de Assis gênio literário da língua portuguesa não era o descendente de pretos, na troca de cartas com Joaquim Nabuco José Veríssimo não aceita o adjetivo “mulato” com que se referiam ao amigo.

Mulato, ele foi de fato, um grego da melhor época. Eu não teria chamado Machado de Assis de mulato e penso que lhe doeria mais do que essa síntese. (…) O Machado para mim era um branco e creio que por tal se tornava; quando houvesse sangue estranho isso nada alterava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só via nele o grego” ( Joaquim Nabuco, em carta a José Veríssimo, após a morte de Machado de Assis, disponível em: https://www.geledes.org.br/duas-cores-de-machado-de-assis/, acesso em 11 de junho de 2023 ).

         

Assim os dois se entenderam sobre o problema da cor da pele de Machado de Assis, era um mulato, mas um mulato grego. A insatisfação das pulsões narcísicas da elite brasileira com um Machado de Assis negro atravessou, portanto, todo o século XX e ainda repercutiu no ano do centenário do Congresso Internacional das Raças através da propaganda da Caixa Econômica Federal.

O branqueamento de Machado tornava-o palatável para as elites e foi assim que ele entrou na galeria dos cânones da literatura brasileira. A certidão de óbito do escritor lavrada em 19 de outubro de 1908, três semanas após sua morte o declara como branco.


Trecho da Certidão de óbito de Machado de Assis. (FOTO | Reprodução | Internet).

A declaração do documento destoa dos vastos testemunhos sobre a negritude de Machado de Assis, mas confirma a campanha oficial para branqueá-lo. Importante notar aqui que este documento possui uma anomalia estudada pela cientista social Simone da Conceição Silva, esta anomalia consiste em estar declarada a cor da pessoa morta, para a pesquisadora é estranho que a certidão de óbito de Machado de Assis a traga, pois este tipo de declaração só passou a ser obrigatória no Brasil em 1973.

Apesar de constituir uma falsa declaração da branquitude do escritor o atestado de óbito vai servir de base para sustentar vários argumentos sobre a suposta pele branca ou no máximo mulata do autor. Essa obsessão em descrever Machado de Assis como branco vai ecoar nas celebrações do seu centenário nascimento em 1939.

Para desmontar os argumentos sobre a negritude do escritor, argumentos estes que tinham principal base sua ascendência africana, pai, avós paternos e o fato de haver nascido no Morro do Livramento, a região da Pequena África no Rio de Janeiro, exibiu-se na Academia Brasileira de Letras a certidão de nascimento de Machado de Assis como prova irrefutável de sua dívida com a branquitude luso-brasileira:

Aos treze dias do mês de Novembro de mil oitocentos e trinta e nove annos na Capella da Senhora do Livramento filial a esta Matriz com Provizão do Illustrissimo e Reverendissimo Monsenhor, e Vigário Capitular Narcizo da Silva Nepomuceno, e minha licença o Reverendo Narcizo José de Moraes Marques baptizou, e pos os Santos Oleos a Joaquim, innocente filho legítimo de Francisco Jozé de Assis, e Maria Leopoldina Machado de Assis, elle natural desta Côrte, e Ella da ilha do Faial, digo, Ella da Ilha de São Miguel: forão padrinhos o Excellentissimo Viador Joaquim Alberto de Souza da Silveira, e Dona Maria Jozé de Mendonça Barrozo, nasceo aos vinte e hum de junho do prezente anno: de que fis este assento.

O Vigr.° Jozé Francisco da Silva Cardoso. (COSTA & FRANCO, p. 49)

O documento causou impacto, pois para a intelectualidade do Estado Novo representava o triunfo do elemento lusitano sobre o africano, demonstrando que aqueles que insistiam em Machado de Assis negro estavam enganados. A partir desse momento a crítica e a história da literatura trabalhará durante todo o século XX, com a representação de um Machado de Assis branco.

Para ajudar na manutenção do mito da branquitude de Machado de Assis a iconografia, registros fotográficos e pinturas guardados na Academia Brasileira de Letras será de grande importância. Nas fotografias em branco e preto, o escrito é representado como um jovem quase imberbe, sentado numa escrivaninha encarando o espectador, nesta fotografia seus traços afrodescendentes foram quase apagados pelo trabalho de retoque do estúdio.


Fotografia de Machado de Assis como esta acima ajudaram a divulgar a imagem do gênio da literatura brasileira como um homem branco (FOTO | Reprodução | Internet).

Em outra fotografia ele aparece já como um senhor maduro, barbado e grisalho olhando fixamente para um horizonte ausente como se contemplasse misteriosamente algo que só a ele é dado ver. Ainda nesta fotografia procurou-se apagar sua negritude. No entanto, apesar de todo os esforços por invisibilizar sua afrodescendência através dos retratos divulgados ao público, a sua ascendência negra não escapou aos olhos dos estudiosos mais atentos, segundo um destes:

Alguns o consideram como branco. Examinando os retratos que dele nos ficaram, nota-se que, adulto, tinha, como muitos brasileiros, alguns traços negroides: cabelos ligeiramente crespos, o lábio inferior bastante carnudo, um nariz antes achatado. Estes traços mais ou menos acentuados segundo os vários retratos, são bem encobertos pelo uso da barba. (MASSA, p.46-47)

 

Quem assim se pronuncia é o crítico francês Jean-Michel Massa no seu livro A juventude de Machado de Assis de 1947. Apesar dessa percepção do autor francês a regra entre os estudiosos brasileiros da vida e da obra machadiana foi sempre considerá-lo não-negro. Os vastos estudos bibliográficos, de crítica literária e história da literatura que serão escritos por diferentes autores no decorrer do século XX, procurarão obsessivamente repensar a condição de mulato de Machado de Assis e todos eles concomitantes num ponto, não aceitam a negritude do escritor.

Somente no século XXI começa-se a rediscutir a afrodescendência de Machado de Assis e as obsessivas tentativas de branqueá-lo ao longo da história do Brasil. Estudos como o de Sidney Shalhoub “Machado de Assis Historiador” e de Eduardo de Assis “Machado de Assis Afrodescendente” reabriram o debate sobre a presença do negro na obra do romancista.

Machado de Assis segundo esses historiadores era um homem negro e como tal agia, também agia como um intelectual negro observando as elites brancas por dentro, também agia como um funcionário público negro dentro do alto escalão da monarquia e da república, e agia igualmente como um jornalista negro num país escravocrata e racista.

REFERÊNCIAS

COSTA & FRANCO, Machado de Assis, José Olympio, Rio de Janeiro, 1988.

LACERDA, João Baptista de. Informações prestadas ao Ministro da Agricultura Pedro de Toledo Rio de Janeiro: Papelaria Macedo, 1912a.

MASSA, Jean-Michel, A juventude de Machado de Assis, Ministério da Educação, 1947.

ROMERO, Nelson. A história da literatura brasileira. 3. ed.. Rio de Janeiro: Editora Zélio Valverde, 1944.

Como vencer os reacionários?

 

(FOTO | Marcelo Camargo | Agência Brasil).

Fábio José, originalmente no Esquerda Online

O povo elegeu Lula para que ele comandasse um governo que fizesse exatamente o contrário do que vimos nos últimos anos, quando os direitos da classe trabalhadora, incluindo saúde e educação públicas, sofreram um ataque brutal, primeiro com Temer e, depois, no governo de Jair Bolsonaro. Infelizmente, as forças reacionárias, dentro e fora do congresso nacional, querem sepultar os sonhos da maioria do povo. Diante desse fato, que fazer?

Para eliminar falsas interpretações, destacamos que vivemos nos últimos anos, no Brasil, um cenário bastante desfavorável à maioria da população. Ataques sucessivos ao nível de vida das massas tornaram-se algo corriqueiro. Quem refletir sobre esse fato há de entender que a eleição de Lula deu-se em contexto de muitas dificuldades, mas, igualmente, de incontáveis esperanças.

A tentativa de golpe de 8 de janeiro demonstrou que a extrema-direita bolsonarista está disposta ao enfrentamento físico contra qualquer esboço de mudanças no país. Bolsonaro foi retirado do palácio do planalto, mas o bolsonarismo está incrustrado nas instituições – parlamento, forças de segurança, STF, MP etc. – e na sociedade. Daí a necessidade de seguir lutando contra o bolsonarismo como questão de primeira ordem.

Esse cenário, aliás, explica os obstáculos que o governo encontra no Banco Central, na câmara dos deputados e na trincheira neoliberal representada pela mídia a serviço do capital financeiro. Isso se traduz na ação de uma série de partidos que, desde o interior do congresso nacional, busca reduzir os sonhos da maioria do povo a uma peça de ficção.

É preciso saudar medidas que o governo Lula adotou no plano social e cultural, mas sabendo que estamos longe de alcançar o programa aprovado nas urnas e apoiado em centenas de milhares de pessoas que ganharam às ruas, ao longo da campanha eleitoral, não só para desafiar a extrema-direita e as políticas neoliberais, mas para defender a adoção uma nova plataforma programática.

A desvantagem na correlação de forças no congresso nacional conduziu o governo a acordos com partidos nos quais o conservadorismo e o golpismo andam de mãos dadas. Mesmo com ministros no governo, essas forças políticas, contudo, votam no congresso medidas cujo teor lembra os últimos seis anos de terror parlamentar, assentados nas contrarreformas.

Um dos erros incontestes no campo da esquerda é o de acreditar que devemos nos conformar com esse quadro extremamente desvantajoso para o governo e o conjunto da classe trabalhadora. Se se quer ser partidária das mudanças propostas ao longo da campanha, todavia, a esquerda precisa apontar numa outra direção.

Qual a conveniência prática de estabelecer prioridade a acordos, compromissos e alianças com partidos políticos reacionários que, por princípio e interesses rapaces, votam permanentemente contra o povo? Baixemos esta discussão à terra. Quem são os partidos que, estando na base do governo, votam contra ele?

Foi observado em várias ocasiões o caráter politicamente criminoso do União Brasil (resultado da fusão do partido Democratas e do Partido Social Liberal, de Luciano Bivar). Esse partido apoiou todas as contrarreformas para retirar direitos dos trabalhadores e foi base de sustentação do bolsonarismo. Mesmo com ministros dentro do governo Lula da Silva, vota sistematicamente com a extrema-direita e contra a coalizão da qual, formalmente, participa, amparando os negócios sujos do agronegócio e do capital financeiro.

Desse bloco heterogêneo que conforma a base do condomínio governamental, chama a atenção a presença do PSD, partido com a maior bancada no interior do senado federal. Por que exatamente esse destaque? Porque ele é dirigido por ninguém menos que a raposa política de nome Gilberto Kassab, secretário de governo e relações institucionais de Tarcísio de Freitas no estado de São Paulo, o principal suporte político-institucional do bolsonarismo.

Por fim, destacaria também as contradições do velho MDB, que tem Simone Tebet como ministra do planejamento. Há um setor que no senado, sobretudo, apoia o lulismo, praticamente desde os mandatos anteriores. Acontece que nas votações na câmara dos deputados, o MDB tem revelado um posicionamento mais de oposição do que de alinhamento ao governo.

Há quem defenda a necessidade de substituir os partidos que não traduzem seu apoio formal, e presenças nos ministérios, com engajamento e lealdade no parlamento. Porém, curiosamente, propõe a entrada no governo, em ministérios estratégicos, como o da saúde, do partido Republicanos, do impagável Arthur Lira.

Reitera-se assim uma ideia fundamental: não é possível governar sem se ancorar nas forças políticas mais retrógradas do país. Aqui, cabe perguntar: é mediante esse processo que se fará conjunto de mudanças que as pessoas esperam?

Gabriel Boric, no Chile, e Gustavo Petro, na Colômbia, chegaram aos governos de seus respectivos países, apoiados na mais vigorosa mobilização social. O primeiro, desmobilizou e apostou na velha política de compromissos com a burguesia e o imperialismo. Já o segundo confiou no caminho que o levou ao Palácio de Nariño.

Lula, diferentemente, não chegou à presidência apoiado em mobilizações massivas como no Chile e na Colômbia, apesar dos atos de rua ocorridos ao longo da campanha eleitoral. Isso o levaria forçosamente a uma saída intermediária, nem a de Boric, nem a de Petro?

Essa é uma premissa historicamente falsa. De acordo com a história, qualquer mudança estrutural depende de algum grau de mobilização social. Quando abdicou desse caminho, Boric sofreu uma derrota decisiva no terreno da constituinte, abrindo caminho para o neopinochetismo. Ao ressaltar a alternativa de promover as mobilizações populares com o fito de alcançar as transformações necessárias, Petro foi ao encontro da história. Isso é uma garantia de vitória? Evidentemente que não. Como muito já foi dito: a história não promete nada. O que ela nos ensina é que sem luta e mobilização, as coisas tendem a retroceder em lugar de avançar. E ainda que avance, em um dado momento, no primeiro descuido, as forças reacionárias farão sentir o peso de sua mão intransigente.

Qual a tática acertada?

Uma tática acertada para enfrentar o reacionarismo, no caso do Brasil, não passaria por retirar os legatários do bolsonarismo do governo e, em lugar de apostar em uma política aliancista com o celerado Arthur Maia, acreditar na força das ruas? Nisso reside a essência do problema. O governo está em um entroncamento. É primordial pegar a via correta. Qualquer política favorável à maioria do povo, em última análise, depende de vê-lo mobilizado.

Eis as condições da vitória. Não se trata de uma tarefa fácil, mas nada que enfrente a máquina do capital, azeitada pelas mãos férreas do reacionarismo e do neofascismo, reclama um caminho sem dificuldades, sem ousadia.

Nenhum governo está fadado a renunciar a certos compromissos, e por que, no entanto, estaria fadado a renunciar à mobilização das amplas massas que o apoiam?

Altaneira poderá ser o 2º município do Brasil e o 1º do Ceará a ter Estatuto da Equidade Racial

 

Entrada de Altaneira-CE. (FOTO | Prof. Nicolau Neto).

Por Nicolau Neto, editor

Nos dia 13 e 26 de maio de 2021, mês em que as atenções se voltaram para relembrar e debater os 133 anos da abolição inconclusa da escravização no Brasil, ocorreu no município de Altaneira, no cariri cearense, e no formato remoto, a apresentação do Plano de Combate ao Racismo e de Promoção da Equidade. A ação partiu deste professor e fundado do blog.

Como já relatado aqui, as apresentações se deram junto às secretarias de governo, de educação, de cultura, além de contar com a participação de diretores/as e coordenadores/as das escolas no município, de formadores/as educacionais e de representantes do Sindicato dos Servidores Municipais (Sinsema) em um primeiro momento (dia 13) e posteriormente para o poder legislativo (dia 16).

Das 11 propostas do plano, duas já foram aprovadas por meio de lei na Câmara e sancionadas pelo executivo municipal: a transformação do dia 20 de novembro em feriado municipal de autoria do presidente da casa, o vereador Deza Soares (PT); e a criação do Conselho Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (CMPPIR) oriunda do poder executivo.

Agora, mais uma propostas poderá sair do papel. Durante a solenidade de posse da mesa diretora da Câmara para o biênio 2023/2024 ocorrida em janeiro do ano ano em curso, a vereadora Rafaela Gonçalves (PT), agora na função de vice-presidente,  destacou em seu discurso de posse que uma de suas prioridades para este ano era a aprovação e promulgação do Estatuto Municipal da Equidade Racial que adotará os parâmetros do Estatuto da Igualdade Racial do Governo Federal aprovado em 2010.

Pioneirismo

Ainda de acordo com a vereadora, o Estatuto encontra-se na Comissão Permanente da casa para emissão de parecer. Ainda não há previsão para que o PL do estatuto étnico-racial vá a votação em plenário. Se for aprovado, o município de Altaneira entrará mais uma vez para a história no enfrentamento ao racismo por meio de dispositivos legais. Poderá ser o 2º município do país a contar com um estatuto dessa envergadura e o 1º do Estado do Ceará.

Dos mais de 5.000 municípios brasileiros, apenas Olinda, no Estado de Pernambuco, tem um Estatuto de Igualdade Étnico-Racial. O Projeto de Lei foi aprovado e sancionado em 2021 pelo prefeito Lupércio (SDD), primeiro negro a governar a cidade.

Em Altaneira, o prefeito Dariomar (PT) se autodeclarou negro para a justiça eleitoral nas eleições de 2020 ao identificar-se pardo. Conforme o IBGE, a população negra brasileira é a somatória de pretos e pardos.

É importante destacar que o enfrentamento as desigualdades advindas do racismo é uma responsabilidade e um dever de todos e os poderes constitucionalmente instituídos precisam assumir seu papel na luta antirracista disseminando o debate a respeito da questão racial, contribuindo para desarranjar todas as formas de discriminação e preconceito presentes diariamente.

APP Educaya: percursos urbanos e memórias de bairro negro do Cariri cearense

 

Imagem do aplicativo Educaya. (FOTO | Reprodução).


Educaya é uma junção das palavras educação e Aya, sendo Aya parte de um conjunto de símbolos africanos conhecidos como Adinkra e está relacionado à resistência e à superação. Foi assim que surgiu o nome do aplicativo Educaya, desenvolvido na esfera do projeto “O currículo e os processos de formação no campo das relações étnico-raciais na educação básica numa perspectiva inter e transdisciplinar”.

Coordenado por Cicera Nunes, o projeto surgiu de uma trajetória de trabalho junto ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais, que tem em sua centralidade a proposta de recontar e ressignificar a história do Cariri cearense a partir de perspectivas negras e indígenas, no bairro negro Comunidade do Gesso, localizado na cidade do Catro (CE).

A ideia é estabelecer parceria e aproximação com agentes escolares e moradores da comunidade, para que se percebesse influências, referências e presenças negras e indígenas na história desse lugar.

Segundo Cícera, o aplicativo Educaya foi desenvolvido em parceria com a equipe de informática do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia IFCE/CE, justamente para identificação dos pontos de memória do Território Criativo do Gesso.

O aplicativo está associado a placas indicativas dos pontos de memória da comunidade e direciona os percursos urbanos para traçar uma cartografia étnico-racial nos apresentando à uma parte importante da história do lugar”, explica a coordenadora.

Neste sentido, Educaya aparece relacionado à forma como a comunidade ressignifica a relação com a linha férrea no processo de organização do Sítio Urbano com a plantação de ervas medicinais e plantas frutíferas gerando remédios, alimento, sombra, arejando o ambiente, diminuindo a poluição e embelezando os ambientes.

Os percursos urbanos no Território Criativo do Gesso foram uma das etapas da metodologia do projeto onde, na companhia dos/as moradores/as do lugar, percorremos as ruas e os pontos de memória contextualizando a história do lugar, conhecendo as histórias de vida de pessoas que preservam o legado ancestral negro e indígena e identificando os pontos que guardam a memória coletiva desse território”, completa Cícera.

Projeto

O aplicativo é um dos produtos do Edital Equidade Racial na Educação Básica: pesquisa aplicada e artigos científicos, lançado em 2019, iniciativa do Itaú Social coordenada pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), em parceria com o Instituto Unibanco, a Fundação Tide Setubal e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Outros/as pesquisadores/as mapearam exemplos de práticas pedagógicas antirracistas e também têm obras disponibilizadas para download gratuitamente no acervo digital “Equidade Racial na Educação Básica: Pesquisas e Materiais”, que pode ser acessado na Biblioteca Dinâmica do Observatório Anansi, pelo site: https://anansi.ceert.org.br/biblioteca

Até dezembro deste ano, o acervo digital vai abrigar mais de 50 produções, entre livros, teses acadêmicas, artigos, e-books, jogos didáticos e vídeos, que serão lançados periodicamente.

A iniciativa foi lançada oficialmente em 9 de janeiro deste ano, em comemoração aos 20 anos da Lei 10.639, que alterou a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), tornando obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas brasileiras.

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Com informações do CEERT e do Observatório Anansi.