4 de junho de 2023

70,3% da população de Nova Olinda-CE é negra, aponta estudo

 

População negra de Nova Olinda-CE é maioria. (FOTO | Arquivo do blog | Lucélia Muniz).

Por Nicolau Neto, editor

Entre 2012 e 2018, o número da população do Estado do Ceará que se declarou preta dobrou. A informação tem como base os dados publicados em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua 2018.

Nesse intervalo de tempo a população preta cearense teve um aumento de 82%, passando dos 253 mil para 480 mil. Em termos percentuais o Ceará conta hoje com 5,3% de pretos/as. Em 2012 o número era apenas de 2,9%.

Ainda de acordo com a pesquisa que é feita a partir da percepção de cor e raça do entrevistado e da entrevistada, o número de pardos no Ceará equivale a 65,7%, enquanto que as pessoas que se autodeclararam brancas atingiu 28,2%. Se somados pardos e pretos, o número de negros no Ceará atinge 71%.

No município de Nova Olinda, na região do cariri cearense, tendo como base o último censo realizado pelo IBGE em 2010, o número de negros/as representava 70,3%. As que se autodeclaravam brancas atingiu 27,2%, enquanto que as amarelas ficaram com 2,1%.

Tanto para o IBGE quanto para o Estatuto da Igualdade Racial, a população negra é definida pela soma de pretos e pardo. Quando considerado somente o número de pardos, o município atinge 64,7%. Em relação à população preta, esse número chega 5,6%; Aqueles/as que se autodeclaram indígena atingiram a casa dos 0,2%.

Em 2010, Nova Olinda possuía 14.256 habitantes. A estimativa, segundo o IBGE para 2021 é de 15.798 pessoas. Os dados preliminares do próprio órgão divulgados no ano passado cravou uma redução. O número chegou a 15.437 habitantes.

Ainda de acordo com o próprio IBGE (dados preliminares, 2022), 56,1% de toda a população brasileira é negra. Os dados revelam também que mesmo a população negra sendo maioria, ela é sub-representada. 

Maioria em população e minoria nos espaços de poder, tanto a nívl federal, quanto no Ceará e no município.

Referências

https://www.blognegronicolau.com.br/2021/01/populacao-negra-do-cariri-representa.html

https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ce/novaolinda/pesquisa/23/25888?tipo=ranking

O terreiro de nossa senhora do rosário e os batuques dos pretinhos de congo em milagres-ce

 

Mestre Doca Zacarias 1929 - 2023. (FOTO | Jaildo Oliveira, 2021).

Por César Pereira, Colunista

Em 2010 o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os seguintes resultados para a classificação cor/raça da população de Milagres:


Podemos então observar a predominância da população negra no município, pois pelo método do IBGE que classifica as pessoas de cor parda e preta como negros, teríamos em Milagres 20.318 pessoas negras residentes em 2010 o que equivaleria a 71,9% da população da cidade. Portanto no município que segundo o relatório dos presidentes da província do Ceará do século XIX foi o último a abolir o trabalho escravo a população negra sempre representou incrível maioria.

Contudo, a história da população negra de Milagres não está restrita somente ao problema da sua escravização no Vale do Riacho dos Porcos, a história negra Do município de Milagres é na verdade a história da própria cidade que a população negra construiu através do seu trabalho, das suas lutas, das suas estratégias de resistência, das suas identidades, memória social e cultura.

A história negra na cidade de Milagres começa ainda no século XVIII quando os primeiros colonizadores do vale solicitam sesmarias no Riacho dos Porcos e no documento em argumentam a favor da solicitação informam que possuem escravos, gado vacum e cavalar para ocupar e povoar as terras.

O suplicante, Bento Correa de Lima, alegou que havia requerido ao capitão-mor anterior duas datas de terra no Cariri e no riacho dos Porcos, sendo uma para seu colega, João Dantas Aranha (este sesmeiro possuía quatro sesmarias: CE 0089, CE 0125, CE 0294 e PE 0055; mas, não foi possível identificar qual delas corresponde a referida na CE 0903) e a outra para sua mulher e seus filhos. * Como João Dantas não havia povoado a sua parte, o suplicante comprou a data para si com uma escritura de venda e ocupou a terra, povoando também os sítios Pilar e Carueira com ajuda de dois homens brancos e de dois escravos da Guine, não constam seus nomes na carta CE 0903. Porém, a data ficou em posse do coronel João de Barros Braga (este sesmeiro possuía nove sesmarias: CE 0836, CE 0105, CE 0166, CE 0168, CE 0167, CE 0172, CE 0178, CE 0236 e CE 0825) e como não se achou o traslado da data no Livro de datas da capitania, o suplicante alegou que diziam que ele não havia comprado à data de João Dantas Aranha. Como Bento Correa de Lima já havia servido a Vossa Majestade e havia povoado a terra desde o ano de 1720, solicitou a data para obter o justo titulo de posse. (Grifos do autor, Plataforma S.I.L.B. Disponível em http://silb.cchla.ufrn.br/sesmaria/CE%200903).

Bento Correa Lima, João Dantas Aranha e José Correa de Lima eram todos eles sesmeiros do no Riacho dos Porcos e sertões da Paraíba eram moradores de Goiana em Pernambuco. Donos de engenho na Zona da Mata pernambucana e criadores de gado nos sertões, esses colonizadores serão os principais responsáveis pelo combate aos índios Kariris sublevados no sertão. Para ter as terras solicitadas concedidas pela autoridade colonial informam que as ditas áreas que requerem são devolutas, isto é, não pertencia a nenhuma aldeia indígena.

Juntos contrataram mercenários e atacaram os grupos indígenas até desocupar as terras por volta da década de 1720 e só em 1730 decidiram povoar definitivamente essas sesmarias. Além do argumento de terras devolutas informam que possuem escravos, no caso acima, dois escravos da Guiné, que não necessariamente significa que tais homens eram guinéus traficados, mas trabalhadores africanos escravizados que haviam sido embarcados para o Brasil através do porto da Guiné.

Mais uma vez demonstramos que o homem negro esteve desde o princípio ligado ao processo de povoamento, colonização e formação histórica e cultural do Vale do Riacho dos Porcos desde o princípio de sua ocupação pelos sesmeiros sob o mando das autoridades coloniais do século XVIII. A origem desses primeiros colonizadores brancos do Riacho dos Porcos não resta nenhuma dúvida que está na Vila de Goiana em Pernambuco:

O sesmeiro [Bento Correa Lima] recebeu dez concessões: Quatro no sertão das Piranhas, em 1679 (PB 1140), em 1700 (PB 0019), em 1706 (PB 0063) e em 1712 (PB 0099); e seis no riacho dos Porcos, em 1703 (CE 0125), em 1704 (CE 0083, CE 0085 e CE 0092), em 1708 (CE 0294) e em 1723 (CE 0903). * Nas cartas PB 1140, CE 0083, CE 0085 e CE 0903, não aparecem à ocupação do sesmeiro. * Nas cartas CE 0092, CE 0125, PB 0019, PB 0063 e PB 0099, a ocupação do sesmeiro aparece como capitão. * Nas cartas PB 1140, PB 0019, CE 0125 e CE 0903, não constam onde o sesmeiro morava. * Nas cartas CE 0083, CE 0085, CE 0092, CE 0294 e PB 0099, o sesmeiro consta como morador da capitania de Pernambuco (Goiana). * Na carta PB 0063, o sesmeiro consta como morador da capitania da Paraíba. (Plataforma S.I.L.B. Disponível em http://silb.cchla.ufrn.br/sesmaria/CE%200903).

Goiana era um dos principais centros produtores de açúcar da colônia, esteve sob o domínio holandês e a expulsão dos flamengos de suas terras deu-se pelo heroico episódio de Tejucopapo onde as mulheres goianenses lutaram para expulsar os invasores. Com o fim da dominação holandesa a Freguesia de Goiana recebeu uma leva de migrantes vindos das capitanias hereditárias do Nordeste e também de Portugal.

O trabalho nos engenhos de açúcar da colônia era realizado principalmente por trabalhadores escravizados que eram obrigados a realizar todo o serviço desde a plantação da cana, sua colheita, sua moagem e na maioria das vezes o cozimento do caldo da cana para a obtenção do açúcar. Quando os senhores de engenho de Pernambuco, Bahia, Sergipe, Alagoas, lugares que no período colonial estavam integrados sob a denominação de Capitanias Hereditárias, foram obrigados pelo decreto do rei de Portugal a retirar o gado das proximidades da região canavieira eles se voltaram então para a colonização do sertão.

Foi desse modo que os proprietários de gado e engenho de Goiana começaram a requerer terras nos sertões do Cariri paraibano e cearense. Dentre esses proprietários quem mais nos interessa aqui é Bento Correa Lima por ter sido o primeiro a pedir sesmarias no Riacho dos Porcos.

Bento Correa Lima solicitou terras tanto para si, quanto para sua esposa e também seu filho, todas elas no Vale do Riacho dos Porcos. Também pediu terras e as obteve na Paraíba e no Rio Grande do Norte. Sendo de Goiana em Pernambuco a família Correa Lima espalhou pelo Sertão do Cariri a devoção a Nossa Senhora dos Milagres, cuja igreja que hoje é patrimônio histórico na cidade de Goiana sem dúvida ajudou a construir na década de 1720.

Além da devoção a Nossa Senhora dos Milagres há em Goiana toda uma intensa devoção a Nossa Senhora do Rosário que é a padroeira da cidade. Desde o século XVI a igreja usou a devoção a Nossa Senhora do Rosário como meio de conversão dos africanos. Os padres usavam intensamente a imagem dessa representação da Virgem Maria para promover a conversão das pessoas negras tanto na África como no Brasil e uma das principais festividades negras os Reisados de Congos surgirão em torno das festas em homenagem a Nossa Senhora do Rosário e diretamente ligada a suas irmandades negras.

A primeira igreja construída para homenagear Nossa Senhora do Rosário dos Pretos foi a de Olinda – PE, onde se constituiu a mais antiga Irmandade dos Homens Pretos que se tem notícia no Brasil. Na cidade de Goiana, antiga Freguesia de Goiana que ficava na capitania de Itamaracá existe duas igrejas em honra de Nossa Senhora do Rosário. A igreja de Nossa Senhora do Rosário que é a matriz de Goiana e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e Pardos, ambas construídas no século XVIII, mas a última foi construída especificamente pela Irmandade dos Homens Pretos e era onde as pessoas pardas e pretas, mesmo livres ou escravizadas realizavam suas celebrações e era em frente dessa igreja que realizavam suas festas negras.

Sem dúvida a história colonial de Milagres está ligada aos latifundiários de Goiana e suas devoções, mas também está vinculada aos pretos de Goiana e suas devoções, pois como os colonizadores brancos os negros vieram ao Riacho dos Porcos também para colonizá-lo ainda que na condição de homens escravizados.

Além dessa relação devocional de Milagres com Goiana expressa na devoção que ambas as cidades têm a Nossa Senhora dos Milagres e Nossa Senhora do Rosário, devoção que remonta ao século XVIII quando em ambas as localidades foram construídas igrejas e capelas para essas representações da Virgem Maria, há outro elemento que faz a cultura e a história das duas cidades se cruzarem. Em Goiana existe um grupo de congos ligados à devoção a Nossa do Rosário e Milagres também existe um grupo de congos também ligado a fé em Nossa Senhora do Rosário. Em Goiana o grupo se chama Pretinhas do Congo e sua origem remonta ao período colonial e ao trabalho escravo nos engenhos, durante séculos a apresentação do grupo Pretinhas do Congo foi realizado durante as festividades de Nossa Senhora do Rosário e era uma das principais formas da Irmandade dos Homens Pretos celebrarem as festas em homenagem à santa.

Milagres possui um grupo de congo também ligado as festa de Nossa Senhora do Rosário e origem desse grupo remonta há mais de duzentos anos, exatamente quando os primeiros homens pretos foram trazidos para o Vale do Riacho dos Porcos. Os participantes dos Congos de Milagres se apresentam principalmente durante as novenas de Nossa Senhora do Rosário, no distrito do Rosário, antigo Podimirim, e fazem suas apresentações em frente da igreja de Nossa Senhora do Rosário ou no interior dela. Um dos cantos entoados pelos brincantes é este:

Pretinho de Congo

Para onde vai?

Pretinho de Congo

Para onde vai?

Eu vou pro Rusaro

Festejá Maria!

 

Outro canto que é bem interessante refletir é esta saudação que Mestre Doca Zacarias o nonagenário líder dos Congos de Milagres entoa:

Boa noite Senhora Santana

Cheguei de Goiana

Mais meu contramestre.

Sem dúvida a presença da palavra Goiana não é gratuita e remete as memórias ancestrais dos pretos e pardos que compõem o grupo de Congos de Milagres, ora já sabemos que os primeiros pretos que chegaram ao Vale do Riacho dos Porcos foram trazidos por proprietário de terras lá de Goiana. Sem dúvida Mestre Doca Zacarias é a continuidade dessa memória dos homens pretos que foram trazidos lá no século XVIII para colaborar com o homem branco na colonização das terras do Riacho dos Porcos.

Desse modo temos total convicção de que a população negra é a história do município de Milagres, que homens e mulheres negras construíram a história, a cultura e as identidades do Vale do Riacho dos Porcos e os Congos de Milagres são a ponte identitária que liga o presente da cidade ao seu passado colonial e a sua história de resistência e lutas da população negra no vale.

Os Congos de Milagres

O grupo de Congos de Milagres comandado desde a década de 1950 por Mestre Doca Zacarias é a maior e uma das mais importantes pontes que liga a população negra do município a sua ancestralidade africana.

A cidade de Milagres já possuiu num passado bem recente, várias manifestações da cultura popular. Banda cabaçal, grupo de penitentes, lapinha, renovações, vaquejada, artesanato em barro, tecido, grupo de caretas, mas atualmente toda essa vasta herança cultural encontra-se praticamente extinta no município. Delas restam apenas alguns resquícios que não chegam a representar um fator decisivo na composição das identidades das atuais gerações.

Mas graças ao empenho e comando exercido por Mestre Doca Zacarias que em 2019 completou noventa anos, os Congos de Milagres têm resistido e ainda se mantém vivo como um dos maiores patrimônios culturais e históricos da cidade de Milagres. O grupo de Congos de Milagres é um dos herdeiros dos reinados africanos como são todos os Reinados de Congo trazidos ao Brasil pela população da África que tendo sido traficada e escravizada no território da América Portuguesa e no Império do Brasil, mantiveram suas identidades e memória sociais preservadas através das festividades dos folguedos de congos e reisados que celebravam as embaixadas dos reis do Congo antes de sua destruição pelos invasores europeus nos século XVI e XVII.

Mestre Doca Zacarias se refere sempre ao seu grupo de brincantes como “os congo de Nossa Senhora do Rusaro”, mas reforça que “o nome certo são os pretinho de congo” (CORDEIRO, 2014). O que é muito importante, pois situa os Congos de Milagres sempre dentro da herança da cultura africana no Vale do Riacho dos Porcos, documentando a intensa presença do negro na região desde tempos remotos.

A origem dos folguedos de congos em Milagres sem dúvida remonta as últimas décadas do século XVIII e princípios do XIX, posto que só tenha sido devidamente mapeado juntamente com outras manifestações do gênero em fins do século XIX e começo do XX pelos pesquisadores ligados ao Instituto do Ceará. Os congos e reisados são semelhantes e são expressões da cultura popular ligadas principalmente a vida e ao cotidiano dos engenhos também fazendas de criar gado.

No século XIX a agricultura canavieira e a criação de gado foram as principais atividades econômicas do Vale do Riacho dos Porcos, já na segunda metade dos oitocentos, Milagres possuía os maiores rebanhos do Cariri e do Ceará. No final do século XIX e durante as quatro primeiras décadas do século XX foi um dos maiores produtores de rapadura do sul do Estado do Ceará, possuindo vastos canaviais.

Desde o censo de 1872 a população de Milagres foi sempre majoritariamente negra. Nos censos de 1892 e 1900 estima-se que a porcentagem de pessoas negras no município era de 78,6% no primeiro censo da república e dez anos depois já se elevava a 81,8%. Ainda em 1908 o recenseamento daquele ano permite estimar a população negra de Milagres em torno de 82% e no censo de 1920 estaria estimada em 79,5%.[1] Uma população predominantemente negra que não tinha acesso à educação, a saúde e que compunha a mão-de-obra barata que trabalhava nos canaviais, engenhos, fazendas de criação de gado e algodoais do Sertão do Cariri.

Convivendo com uma minoria branca, pessoas que descendiam dos antigos colonizadores do Vale do Riacho dos Porcos, mas que era minoria, pois a grande maioria de brancos que viviam no município de Milagres entre a segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX eram homens e mulheres pobres que como a população negra vivia de trabalhos mal remunerados e na condição de pobreza extrema como aquela. Mas é fato que a população negra do município mesmo sendo a maioria era aquela que mais sofria, pois contra ela havia todo um discurso depreciativo que era justificado pelas falas racistas que serão evocadas pela intelectualidade cearense em consonância com a brasileira nas primeiras décadas do século XX.

Na década de 1930 a fundação da Ação Integralista Brasileira e o fato de que vários intelectuais ligados ao Instituto do Ceará repercutir no estado os trabalhos de pesquisadores racistas como Oliveira Viana e Nina Rodrigues leva ao escritor e ativista da A.I. B (Seção do Ceará), Oswaldo Barroso, a celebrar um suposto embranquecimento da população cearense.

Sabemos que o grupo de homens de letras e pesquisadores ligados ao Instituto do Ceará já vinha sustentando desde o início do século XX a ideia de que no Ceará quase não houve escravidão e a população negra cearense era insignificante, pois como diziam eles, a maioria da população cearense era composta por caboclos e mestiços de índio com branco. Uma inverdade que ajudava a intelectualidade do Ceará a impor seu discurso racista contra uma sociedade onde predominavam negros e descendentes de pessoas que outrora compunham a população indígena do estado, mas que havia perdido suas terras e direito as suas identidades.

Em Milagres houve um grupo de integralistas bem ativos de 1933 a 1937. Eram homens e mulheres que pertenciam às famílias ricas do Vale do Riacho dos Porcos e que militavam no partido pró-fascistas criados por Plínio Salgado e que teve intensa atuação no Ceará e no Cariri enquanto existiu como partido legal. Racista, autoritário e extremamente conservador, o grupo que congregava-se em torno dos ideais da Ação Integralista Brasileira defendia a superioridade de alguns sobre muitos, afirmava que existia um líder superior que deveria impor seu comando sobre as massas inferiores. No Brasil os superiores eram os brancos descendentes de portugueses e os inferiores as pessoas pardas e pretas que compunham a grande maioria da população nacional.

Tal grupo ideológico existiu em Milagres e militou na política local com seu discurso racista. Sem dúvida a elite branca de todo o Brasil nunca demonstrou nenhuma satisfação em viver num país cuja população negra era e é maior fora do continente africano. Sempre houve um projeto de embranquecimento da população negra no Brasil e também outro projeto, o de extermínio dos negros em território nacional. Em Milagres não foi diferentes. A população negra desse município foi desde o século XIX, no período dos embates abolicionistas no Ceará e evidentemente no pós-abolição marginalizada e mal vista pelas elites locais.

Por ter uma das maiores populações negras do Ceará, Milagres é também uma das cidades mais pobres do estado, pois os piores índices de educação, trabalho, saúde, enfim, de IDH, estão então entre os brasileiros negros. Isso acontece porque o racismo estrutural transformou as vidas negras brasileiras nos principais alvos do descaso e da violência política, econômica e cultural em nosso país.

No censo de 1950 a população negra de Milagres é de 73,4%, e em 1991 era de 68% essa porcentagem foi de 70,6% No censo de 2000. Desse modo a história de Milagres é a história dessa população negra. Foram esses homens e mulheres negras que construíram a história do município, foram eles que produziram as riquezas do Vale do Riacho dos Porcos. Os negros não contribuíram para a história e a cultura de Milagres, a verdade é que eles são a história e acultura da cidade, a população negra construiu e continua construindo as identidades e a memória social da cidade de Milagres.

O grupo de congos comandados por Mestre Doca Zacarias é sem dúvida o elementos mais visível dessa identidade negra de Milagres. A história dos “pretinhos de congos” de Milagres é a história do município e do Vale do Riacho dos Porcos. Mestre Doca Zacarias é um príncipe africano herdeiro dos reis de congo lá da África e esse príncipe que assumiu o comando de sua embaixada na década de 1940, recebendo a sucessão das mãos do seu pai que a recebeu do pai outro príncipe africano que recebeu a embaixada também de seu pai e mestre viveram e labutaram nas terras e brejos do Riacho dos Porcos.

Mestre Doca Zacarias e seus Pretinhos de Congo desfilando nas ruas do Distrito do Rosário. (FOTO | Reprodução | Internet).

Os Congos de Milagres segundo a memória de Mestre Doca Zacarias em torno de duzentos anos de existência. É uma das tradições africanas mais significativas do Brasil, pois suas vivências remetem ao passado escravista e as lutas de resistência da população negra contra a escravidão no Vale do Riacho dos Porcos. Também é um testemunho importantíssimo para documentar todo o processo de lutas dos negros milagrenses para manter viva sua história e suas identidades no decurso do século XX, tão prolifico de práticas racistas.

Composto de homens e mulheres, trabalhadores da agricultura e pessoas vindas da camada social menos favorecida de Milagres, os congos tem toda uma hierarquia e figuras que compõem o reinado:

O grupo é formado por figuras que vêm dos folguedos populares. Em Milagres são eles: Rei, Rainha, Espantão, Mestre, Contramestre, Embaixadores e Figuras, cerca de vinte participantes. Além destes há os músicos que acompanham o cortejo (dois pífanos, uma zabumba, uma caixa de guerra, um violão) [...] Durante o cortejo e apresentação eles se organizam tendo a frente o Espantão, ao meio o rei e a rainha e duas fileiras de personagens denominadas Figuras sob o comando de dois embaixadores. As crianças maiores ficam no final das duas fileiras, imitando os passos e dos dançantes adultos. (NUNES, 2011, p.68).

Mestre Doca Zacarias leva seus “Pretinhos de Congo” para se apresentarem nas renovações, festas de santos da paróquia de Nossa Senhora dos Milagres, na procissão de Nossa Senhora dos Milagres e principalmente nas festividades de Nossa Senhora do Rosário no antigo Distrito de Podimirim. As apresentações são acompanhadas de cantos e passos de dança que entremeia as práticas devocionais do grupo.

As músicas convocam o grupo para a festa de Nossa Senhora do Rosário e têm na voz de Mestre Doca Zacarias seu principal comandante. Este começa o folguedo interrogando o grupo sobre o destino da embaixada:

Pretinho de Congo,

Para onde vai?

Vamo pro Rusaro

Para festeja.

Festeja, pretinho,

Com muita alegria!

Vamo pro Rusaro

Festejar Maria.

 

É uma música ancestral que evoca as memórias do povoamento do Vale do Riacho dos Porcos pelos colonizadores brancos e negros vindos da Freguesia de Goiana em Pernambuco. Seriam os “Pretinhos de Congos” de Milagres descendentes das “Pretinhas de Congo” da Zona da Mata Pernambucana?

A marcha “Boa noite Senhora Santana” evoca Goiana trazendo a memória dessa história colonial:

Mais uma prova de que toda a história de Milagres está indissociavelmente vinculada à cultura e a história dos homens e mulheres negras e ainda que o discurso da branquitude e o racismo queira encobrir e renegar toda essa história ela sempre emergirá como estrato dialético na construção das identidades e processos históricos da cidade. Mestre Doca Zacarias e seu reinado como príncipe africano no terreiro de Nossa Senhora do Rosário sempre prevalecerá como elemento estruturante da história da cultura de Milagres no século XX, como seus ancestrais o foram nas lutas pelo fim do trabalho escravo no Riacho dos Porcos também nos embates políticos e processos culturais do pós-abolição.

Mestre Doca Zacarias

Mestre Doca Zacarias aos 29 anos de idade já liderando os Pretinhos de Congos nas ruas de Milagres-CE (Foto gentilmente cedida pela senhora Iza Figueiredo). 

No dia 19 de novembro de 2019, Mestre Doca Zacarias completou noventa anos de idade e setenta e um anos de reinado sobre seus Pretinhos de Congo. Mestre Doca reinou sobre seus Congos desde 1949 e recebeu de seu pai o comando dos Congos de Milagres a mais antiga manifestação das Congadas Afro-brasileiras no Ceará e uma das mais antigas e bem preservadas do Brasil.

Herdeiro da ancestralidade africana, Mestre Doca Zacarias recebeu de seus antepassados negros (o pai, o avô, o bisavô), trabalhadores do Vale do Riacho dos Porcos que desde o século XVIII formaram a mão-de-obra que produziu a riqueza de Milagres ao longo do século XIX e XX. Milhares de homens e mulheres negras que foram escravizados no Ceará e no Cariri, mas nunca perderam suas identidades africanas e mantiveram suas tradições ancestrais que os colocava diretamente em contato com toda a sua matriz africana.

A genealogia dos Reis de Congo se perde na história e têm nesses homens, mestres da cultura popular os herdeiros legítimos de um reino ancestral que apesar de haver sido invadido e destruído pelo colonizador branco europeu nos séculos XVI e XVII permaneceu vivo nos inúmeros reinados e rituais de coroação que os príncipes africanos trouxeram na sua memória quando foram obrigados a se transplantar para o Brasil através do tráfico de seres humanos escravizados.

Mestre Doca Zacarias é um desses príncipes herdeiros dos Reinados de Congo, reina soberano sobre Milagres, cidade do Cariri cearense com 28.316 habitantes de acordo com o censo de 2010 dos quais 20.318 são pessoas negras, todos súditos do Rei Negro.

O dia 19 de novembro, véspera da data da morte de outro grande rei negro brasileiro Zumbi do Palmares (ou melhor, Nzambi em língua banta africana) que significa espírito imortal, a população de Milagres tem muito que refletir, pois tendo sido a cidade do Ceará que só emancipou seus escravizados no final de 1886 precisa reconhecer que sua história é a história dos homens e mulheres negras que em colaboração com o branco colonizou o vale ainda nas primeiras décadas do século XVIII, fundou com seu trabalho a Vila de Nossa Senhora dos Milagres em 1846 e garantiu com seu trabalho e suor nas plantações de cana-de-açúcar, algodão e fazendas de gado a prosperidade do município no decorrer de seus cento e setenta e quatro anos de existência.

Mestre Doca faleceu no dia 10 de janeiro de 2023, depois de reinar 75 anos sobre os seus Pretinhos de Congos. (FOTO |  Jaildo Oliveira, 2021).

REFERÊNCIAS

BARROSO, Oswaldo. Reis de Congos, IMEP, Fortaleza, 1999.

NUNES, Cícera. Reisado cearense: Uma proposta para o ensino das africanidades, Conhecimento Editora, Fortaleza, 2011.

SOUZA, Carlos. Milagres, nossa terra Cariri, Artes Gráficas e Editora, Fortaleza, 2021.

http://www.funai.gov.br/index.php

http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital

https://www.ufpe.br/progepe/documentos

http://www.silb.cchla.ufrn.br

https://www.arquidioceseolindarecife.org/arquivo.


[1] (Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/).

 


3 de junho de 2023

2023 será o 1º ano em que Altaneira terá o feriado da Consciência Negra em dia útil

 

Entrada de Altaneira-Ce. (FOTO | Prof. Nicolau Neto).

Por Nicolau Neto, editor

Em 17 de novembro de 2021 o Diário Oficial dos Municípios do Ceará fez circular a Lei nº 819, sancionada pelo prefeito de Altaneira, Dariomar Rodrigues (PT), que institui feriado em 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra.

Fruto do Plano Municipal de Combate ao Racismo e de Promoção da Equidade apresentado por este professor e fundador deste Blog, junto aos poderes executivo e legislativo no mês de maio do mesmo ano, o projeto lei que versa sobre foi apresentado pelo vereador e presidente da Câmara, Deza Soares (PT) e aprovado por unanimidade.

No primeiro ano de validade, não houve realização de atividades pelos setores públicos, visto que o dia 20 de novembro de 2021 foi em sábado. No ano seguinte foi em um domingo. Este ano, porém, será em uma segunda e a expectativa é que a lei seja cumprida com ações de reflexão e conscientização, inclusive, eventos culturais e outros relacionados ao fortalecimento e consolidação da edificação de uma sociedade mais justa e racialmente equitativa.

O texto representa um marco histórico na legislação municipal e corrobora para contribuir na reflexão e tomada de atitudes que reconheçam e valorizem a população negra que representa mais de 56% do Brasil como contribuidoras para a formação do país, mas principalmente como produtoras de saberes em todas as áreas e que isso seja discutido nas escolas.

A legislação já vigor é mais que oportuna também porque fará com as pessoas comecem a se perguntar o porquê do feriado.

Altaneira se torna o primeiro município do Ceará a ter uma legislação nesse sentido, além de ser ainda o primeiro a contar com um Plano Municipal de Combate ao Racismo e de Promoção da Equidade.

2 de junho de 2023

Cearense Eduardo Girão é único senador a votar contra salário igual para homens e mulheres

 

(FOTO | Waldemir Barreto/Agência Senado).

O Senado aprovou, nesta quinta-feira (1°), o projeto de lei que torna obrigatória a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens para trabalho de igual valor ou no exercício da mesma função. O texto aprovado determina que o governo federal terá que regulamentar a futura lei por meio de decreto. O PL 1.085/2023 segue para sanção.

A proposta, de autoria da Presidência da República, tramitou em regime de urgência e foi aprovada por três comissões permanentes do Senado na quarta-feira (31), depois de amplo acordo político. Na Comissão de Direitos Humanos (CDH), a relatora foi a senadora Zenaide Maia (PSD-RN). Na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) e na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) a relatora foi a senadora Teresa Leitão (PT-PE).

— Eu peço o voto de todas as senadoras, em primeiro lugar, e de todos os senadores, homens que conosco comungam desta luta pela igualdade entre homens e mulheres em todos os setores da sociedade e do mercado de trabalho, sobretudo onde nós estamos entrando, assim como estamos entrando na política, porque lugar de mulher é aonde ela quiser — afirmou Teresa em Plenário.

Multa

O projeto prevê que, na hipótese de discriminação por motivo de sexo, raça, etnia, origem ou idade, o pagamento das diferenças salariais devidas não afasta o direito de quem sofreu discriminação promover ação de indenização por danos morais, considerando-se as especificidades do caso concreto.

O texto modifica a multa prevista no art. 510 da CLT, para que corresponda a dez vezes o valor do novo salário devido pelo empregador ao empregado discriminado, e eleva ao dobro no caso de reincidência, sem prejuízo de outras medidas legais. Atualmente, a multa é igual a um salário-mínimo regional, elevada ao dobro no caso de reincidência.

Relatório semestral

O projeto também obriga a publicação semestral de relatórios de transparência salarial pelas empresas (pessoas jurídicas de direito privado) com 100 ou mais empregados, observada a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709, de 2018) e dispõe que ato do Poder Executivo instituirá protocolo de fiscalização contra a discriminação salarial.

Os relatórios conterão dados e informações, publicados de forma anônima, que permitam a comparação objetiva entre salários, critérios remuneratórios e proporção de ocupação de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens, além de informações estatísticas sobre outras possíveis desigualdades decorrentes de raça, etnia, nacionalidade e idade.

Caso seja identificada desigualdade salarial ou de critérios remuneratórios, as empresas privadas deverão criar planos de ação para mitigar essa desigualdade, com metas e prazos, garantida a participação de representantes das entidades sindicais e de representantes dos empregados nos locais de trabalho. Em caso de descumprimento das disposições, será aplicada multa administrativa no valor de até 3% da folha de salários do empregador, limitado a cem salários mínimos, sem prejuízo das demais sanções.

Combate à desigualdade

O projeto prevê, como medidas para garantia da igualdade salarial, o estabelecimento de mecanismos de transparência salarial; o incremento da fiscalização; a criação de canais específicos para denúncias de casos de discriminação salarial; a promoção de programas de inclusão no ambiente de trabalho; o fomento à capacitação e à formação de mulheres para o ingresso, a permanência e a ascensão no mercado de trabalho, em igualdade de condições com os homens.

O Poder Executivo federal disponibilizará de forma unificada, em plataforma digital de acesso público, as informações fornecidas pelas empresas, e indicadores atualizados periodicamente sobre o mercado de trabalho e renda por sexo, inclusive com indicadores de violência contra a mulher, de vagas em creches públicas, de acesso à formação técnica e superior e de serviços de saúde, bem como outros dados públicos que possam orientar a elaboração de políticas públicas.

Apoios

A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) disse que o Senado estava fazendo história com a aprovação e elogiou os senadores que apoiaram a proposta, como Jaques Wagner (PT-BA) e Paulo Paim (PT-RS).

— Hoje é um dia histórico para nós, mulheres, mas eu preciso fazer justiça aqui com os senadores homens que lutaram tanto para que a gente chegasse a este momento. Senadora Teresa, parabéns pelo trabalho. Todas as senadoras se uniram — direita e esquerda. Essa foi uma pauta que uniu todo mundo, mas eu preciso fazer justiça à bancada masculina, aos homens que foram aguerridos e nos ajudaram — afirmou Damares.

A senadora Leila Barros (PDT-DF) destacou o apoio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para a aprovação do projeto e disse que a futura lei será uma vitória não só das mulheres, mas também uma vitória da sociedade como um todo.

— Chega de discriminação salarial por gênero! — comemorou Leila.

No mesmo sentido, Paim agradeceu o apoio de Pacheco e disse que, embora o projeto seja de autoria do governo Lula, teve apoio também da oposição.

— As mulheres lideraram sempre. Isso eu tenho que dizer. Quem nos liderou foram as mulheres — ressaltou Paim.

O senador Humberto Costa (PT-PE) disse que a aprovação da igualdade salarial vai ajudar na “superação de um problema que sempre caracterizou a sociedade, a desigualdade no tratamento e na garantia dos direitos entre homens e mulheres, em várias esferas e, muito particularmente, na esfera do trabalho”.

Também comemoraram a aprovação os senadores Cleitinho (Republicanos-MG), Augusta Brito (PT-CE), Jussara Lima (PSD-PI) e Eliziane Gama (PSD-MA).

A senadora Jussara agradeceu o apoio de Pacheco e de Paim e destacou o trabalho das relatoras Teresa Leitão e Zenaide Maia.

— Para nós esse é um momento de felicidade, é um momento único na história brasileira para as mulheres que tanto lutaram para que esse dia chegasse, que lutaram e que estão lutando para que tenhamos o nosso espaço e para que sejam equiparados os salários das mulheres com os dos homens — afirmou Jussara.

Eliziane pontuou que “a luta pela igualdade salarial entre homens e mulheres no Brasil é uma luta que reúne toda a sociedade brasileira”. Ela registrou que a maioria das trabalhadoras têm jornadas duplas ou triplas.

— Nós temos, daqui para a frente, ministra [das Mulheres] Cida [Gonçalves], outra grande meta e outro grande desafio, que é a junção da sociedade brasileira na denúncia: chegar às autoridades competentes a informação de que o empresário, aquele que não está fazendo valer e cumprindo a legislação  aprovada hoje, aqui no Congresso Nacional, está passível de punições previstas nesta nova legislação. Nós estaremos absolutamente atentos — reforçou Eliziane.

O presidente Rodrigo Pacheco parabenizou a Bancada Feminina do Senado pela conquista.

— Quero agradecer uma vez mais a presença da ministra Cida Gonçalves, ministra de Estado das Mulheres do governo federal. Sua presença no Senado Federal é muito bem-vinda, juntamente com a sua equipe e todas as mulheres que acompanharam essa votação histórica de um projeto muito importante para a Bancada Feminina, a nossa Bancada Feminina no Senado Federal, muito dedicada, muito valorosa em defesa de suas causas.

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Com informações da Agência Senado.

31 de maio de 2023

Kabengele Munanga receberá título de professor emérito da USP

 

Kabengele Munanga. (FOTO | Marcos Santos).

O antropólogo congolês-brasileiro Kabengele Munanga receberá, na próxima sexta (2), o título de professor emérito pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Ele nasceu em Bakwa Kalonji, no antigo Zaire, atualmente República Democrática do Congo, em 1940. Está no Brasil desde 1975.

Ao longo desses anos, ele se debruçou nos estudos sobre antropologia da África e da população afro-brasileira e nas questões raciais. O intelectual contribuiu de forma significativa na discussão sobre raça e para derrubar o mito da democracia racial.

Foi no país do continente africano que ele iniciou seus estudos na antropologia, ao cursar a graduação na Universidade Oficial do Congo (1964-1969). Depois, ganhou uma bolsa de estudos para fazer o doutorado na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.

Em 1971, o antropólogo retornou ao país de origem para fazer um trabalho de campo, mas foi impedido pela ditadura de Mobutu Sese Seko (1930-1997).

A convite do então diretor do Centro de Estudos Africanos da USP, ele veio ao Brasil, em 1975, e conseguiu, assim, concluir sua pesquisa.

O antropólogo ingressou como docente na USP em 1980, tornando-se o primeiro professor negro da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Na universidade, lecionou até 2012, quando se aposentou, após 32 anos na instituição.

A cacique Shirley Krenak e o desembargador Elton Leme foram homenageados em evento da Fundação SOS Mata Atlântica, em São Paulo, na semana passada. O ator Klebber Toledo foi o mestre de cerimônias da noite.

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Com informações do Geledés.

30 de maio de 2023

Justiça Eleitoral cassa deputados do PL por fraude à cota feminina no Ceará

 

Bancada do PL na Assembleia Estadual do Ceará - Dra Silvana, Alcides Fernandes, Marta Gonçalves e Carmelo Neto. - Divulgação.

A Justiça Eleitoral do Ceará decidiu pela cassação hoje (30) de todos os deputados do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro. De acordo com o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE) do estado, a legenda fraudou a cota feminina nas eleições de 2022. O partido teria utilizado de candidaturas laranjas, sem aporte ou expressão, apenas para atingir o percentual exigido pela lei. O placar final da votação ficou em quatro votos a três.

A legislação prevê que, ao menos, 30% das candidaturas devem ser femininas em cada partido. O mecanismo busca assegurar a garantia de igualdade material entre gêneros, prevista na Constituição Federal. Ainda cabe recurso contra a decisão do TRE-CE. Contudo, estão com as candidaturas em risco iminente, Alcides Fernandes, Carmelo Neto, Dra. Silvana e Marta Gonçalves.

O PL foi o partido que elegeu a terceira maior bancada para a Assembleia Legislativa do Ceará, atrás do PT e do PDT. Confirmada a cassação, a Justiça Eleitoral realizará a recontagem dos votos. Então, os assentos disponíveis na Casa deverão contar com os vencedores de fato.

Uma das candidatas usadas pelo partido assumiu à Justiça Eleitoral a fraude. Ela disse que a candidatura foi sem seu consentimento. “Declaro, para os devidos fins, que não participei da convenção partidária do Partido Liberal, bem como não autorizei a agremiação, ao qual sou filiada e não exerço cargo diretivo, a solicitar o registro da minha candidatura ao cargo de deputado estadual perante esta justiça eleitoral para as eleições 2022”, disse em documento circunstanciado.

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Com informações da RBA.

29 de maio de 2023

Por que alguns negros se definem como morenos? Livro ensina a combater a alienação racial

 

(FOTO |Reprodução).

A empreendedora Andreia Barbosa, de 49 anos, percebia que a palavra “negra” tinha conotação negativa durante sua adolescência. Era quase uma desvantagem. Por isso, ela se dizia “moreninha”. Com a advogada Karina Barbosa, de 25 anos, eram os amigos que diziam que ela era morena. Para não realçar seus traços negros, a analista de diversidade e inclusão Karina Reis, de 32 anos, fugia do sol para não escurecer a pele – até as maquiagens eram mais “clarinhas” – até assumir sua identidade racial aos 25 anos.

Essas trajetórias de pessoas negras ajudam a entender a alienação racial, processo social e psicológico de desconexão das pessoas com a própria raça. Pretos e pretas não se reconhecem como tal, consciente ou inconscientemente, para evitar preconceitos e discriminação racial. É uma maneira de tentar se adequar a um padrão social para não sofrer, o que gera outros danos emocionais que nem sempre são identificados e tratados.

Os sofrimentos da população preta motivaram as pesquisadoras Bárbara Borges e Francinai Gomes, que estudam a saúde mental de pessoas negras na Universidade Federal da Bahia, a escrever o livro Saber de Mim. “A população negra é tão atravessada pelas questões do cotidiano, como o racismo, a pobreza e a violência, que sobra pouco espaço para olhar para nós mesmos”, diz Francinai.

O autoconhecimento possui uma clara dimensão estética, ligada à maneira como a pessoa se vê no espelho. Quando começou a ascender em um grande banco privado, Andreia ouvia que aquele não era “cabelo de gerente”, nos dias em que usava a textura natural e crespa. Karina Reis alisava os cabelos. Isso não afeta só as mulheres. Homens raspam o cabelo, total ou parcialmente.

O cabeleireiro e ativista negro Juninho Loes, criador do movimento “Nunca Foi Só Cabelo”, afirma que o resgate do crespo significa empoderamento, descontrução dos padrões estéticos e autoaceitação. “A transição capilar é dura, mas libertadora. Ela reconstitui o lugar de pertencimento. A pessoa não precisa mais ser outra para ser alguém”, afirma. Francinai concorda. “Para muitas pessoas, assumir o cabelo natural é o início do processo de se tornar negra”.

Embora as pessoas nasçam negras, essa condição é efetivada ao longo da vida. É um sentimento que vai ser determinante para desenvolver a identidade racial ou se afastar das questões raciais para minimizar a dor que o racismo causa. Já foi bastante comum que negros se afastassem de situações étnico-raciais. Hoje é diferente. “Assumir a identidade permite entender melhor nossos problemas e reivindicar nossos direitos”, diz Karina.

Mito da democracia racial

Bárbara explica que a alienação racial tem relação direta com o mito da democracia racial no País, a crença de que a miscigenação trouxe a união, a mistura e a igualdade para as três raças, sem os conflitos e questões latentes que permanecem ainda hoje.

O processo afeta, portanto, negros, brancos e indígenas, mas de maneiras distintas. Enquanto os negros se desconectam; os brancos reafirmam sua identidade. Por isso, na visão da autora, “eles se escolhem” no mercado corporativo, nas relações profissionais e até nos relacionamentos amorosos.

As escritoras baianas, criadoras dos projetos Pra Preto Ler e Pra Preto Psi, plataformas nas redes sociais que estimulam o autoconhecimento da população negra, também discutem outros sofrimentos psicoemocionais. Um deles é o de pretos e pretas que ocupam espaços majoritariamente brancos. É o “negro único”, aquele que ascende, mas perde as referências com os seus pares. A situação gera mal-estar social, desamparo e frustração.

“Essas vivências de exclusão e violência são raciais, mas não são nomeadas. Isso vai impedir a compreensão, o que aprofunda o sofrimento”, afirma Bárbara.

Uma das respostas para esses problemas é o autoconhecimento. Aqui, elas defendem uma clínica psicológica multirracializada, ou seja, o preparo dos profissionais de psicoterapia para compreender a importância da raça dentro do consultório.

A clínica racializada é necessária para atender qualquer sujeito, de qualquer raça, não é só sobre negros procurando psicoterapeutas iguais. “A academia não pode mais transmitir aos futuros profissionais que ‘sofrimento não escolhe raça’ ou que “inconsciente não tem cor”, diz trecho do livro.

Outra estratégia importante para os pretos é o fortalecimento do senso de comunidade. Aqui, as autoras defendem que os negros devem sim continuar ocupando os espaços reservados aos brancos, rompendo o legado colonial brasileiro e contribuindo com uma representatividade crescente. Por outro lado, é fundamental se manter conectado às suas comunidades.

Como como combater a alienação racial

Negro é diferente de moreno

A filósofa Djamila Ribeiro escreve em seu “Pequeno Manual Antirracista”: “Não tenha medo das palavras ‘branco’, ‘negro’ e ‘racista’”. Se um homem é negro, você pode se referir a ele desta forma. Claro, de maneira respeitosa. Dizer que um negro é moreno é um erro, pois descaracteriza sua identidade racial. “Quando uma pessoa branca se refere a um negro como moreno, pode ser por interesse para que se mantenham as relações do mundo colonial ou por falta de informação”, diz Franciani.

Cuidado com a forma de se comunicar

As pessoas usam a palavra “negão” com naturalidade, mas pode ter conotação pejorativa – da mesma forma que “alemão” para loiros. Muitas vezes, nós reproduzimos termos racistas ou que reforçam estereótipos. Evite expressões como “a coisa está preta”, “cabelo ruim”, “lista negra”.

Pergunte para você mesmo: o que tenho feito na luta antirracista?

O que você faz ao ouvir uma piada racista? Entender a importância do que você faz, questionar e duvidar do que parece natural são atitudes importantes para evitar a reprodução do racismo. “O antirracismo não é estático. É ação e movimento”, diz a escritora Barbara Borges.

Você tem amigos pretos?

Você tem amigos e amigas pretas na faculdade, no trabalho ou no condomínio? Das blogueiras que você segue, quantas são parecidas com você? Dos casais que você admira, em quantos as trocas amorosas têm pessoas negras? Se for possível, converse com eles sobre as diferenças na forma em que brancos e pretos são tratados. Isso vale também para seus filhos e os amigos dele. A tentativa é de se colocar no lugar do outro e procurar ouvi-lo.

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Com informações do Instituto Búzios.