3 de setembro de 2021

“Universidade para poucos”: Enem 2021 é o que tem mais brancos e menos pobres inscritos

 

(FOTO/ Divulgação).

A edição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano contará com o menor número de inscritos pretos, pardos e indígenas dos últimos dez anos, segundo o Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior (Semesp). Além disso, o Enem 2021 contará também com o menor número de candidatos com isenção de taxa de inscrição. É um corte histórico e expressivo num processo contínuo de inclusão de estudantes negros e mais pobres que tinham no Enem a principal oportunidade de acesso ao ensino superior.

A edição 2021 do Enem recebeu o menor número de inscrições dos últimos 14 anos. Já chegou ao patamar de 8,7 milhões de inscritos, mas, em 2021, foram 3,1 milhões. A queda no número de inscrições se deve à decisão do governo Bolsonaro de retirar a isenção da taxa dos que faltaram na edição do Enem 2020. No entanto, neste mesmo período de 2020, a pandemia estava em um de seus momentos mais agudos e havia um medo justificável de se contaminar e contaminar os familiares.

A edição 2021 do Enem recebeu o menor número de inscrições dos últimos 14 anos. Já chegou ao patamar de 8,7 milhões de inscritos, mas, em 2021, foram 3,1 milhões. A queda no número de inscrições se deve à decisão do governo Bolsonaro de retirar a isenção da taxa dos que faltaram na edição do Enem 2020. No entanto, neste mesmo período de 2020, a pandemia estava em um de seus momentos mais agudos e havia um medo justificável de se contaminar e contaminar os familiares.

Diversas entidades estudantis e especialistas alertavam para a exclusão dos estudantes mais pobres desde junho, quando o edital do Enem 2021 foi publicado. Dentre as ações, está o pedido para que o Supremo Tribunal Federal (STF) reabra as inscrições do Enem com isenção aos ausentes. “O Ministério sabia que manter essa regra iria resultar na exclusão dos mais pobres e, ainda assim, decidiu mantê-la. Por isso, esperamos que a justiça possa intervir e reverter essa situação cruel”, diz Frei David, presidente da Educafro.

Ainda segundo ele, excluir alunos pobres e negros faz parte de um projeto político do governo Bolsonaro de que esta população não tenha acesso ao ensino superior. O ministro da Educação, Milton Ribeiro, afirma que a pasta não pode arcar com os custos da prova de quem faltou anteriormente. Por outro lado, Rodrigo Capelato, diretor-executivo do Semesp, fala de um retrocesso histórico no Enem já que “a participação dos estudantes historicamente mais excluídos vinha aumentando ano a ano, ainda que em um ritmo aquém do necessário (…)”, conclui.

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Com informações do Notícia Preta.

2 de setembro de 2021

Ciranda nordestina conquista título de Patrimônio Imaterial do Brasil

 

Na imagem da matéria, Lia dança acompanhada pelo grupo Nossa Cultura tem Som, composto por jovens de Itamaracá.

 Essa ciranda não é minha só, ela é de todos nós”, diz uma das canções mais icônicas de Lia de Itamaracá. Nesta semana, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu que a cirandeira tem razão e concedeu título de Patrimônio Imaterial do Brasil para a ciranda, brinquedo popular do nordeste brasileiro. A condecoração foi anunciada pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural e comemorado por uma das mais fortes referências da manifestação cultural. Lia, que é um dos nomes fundamentais para a valorização do gênero, considerada sua embaixadora, falou de sua alegria durante evento de reabertura da Casa do Carnaval na última terça-feira (31). O espaço, localizado no Pátio de São Pedro, Centro do Recife, abriga a exposição “Ciranda de todos nós”.

Saiu tarde. Mas antes tarde do que nunca”, comentou Lia, com seu característico bom humor sobre o título votado na 97ª reunião do Conselho e transmitido pela internet. Ao lado de representantes da gestão pública como o prefeito do Recife, João Campos, e da secretária da Cultura, Lêda Alves, a cantora festejou o título e homenageou os mestres e mestras que perpetuam a cultura cirandeira.

O pedido para registro da Ciranda do Nordeste no Iphan foi feito pelo ex-governador Eduardo Campos, em 2014, por meio da Secretaria de Cultura de Pernambuco (Secult-PE) e da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). Em 2019, o estado realizou outra ação para assegurar o registro, fazendo a coleta de assinaturas durante a Feira de Artesanato (Fenearte), que homenageou a ciranda. Pesquisadores qualificados e com conhecimento prévio sobre o tema da Associação Respeita Januário foram os responsáveis pela construção do INRC, que é composto por um relatório analítico, um vídeo documentário, fichas de identificação, registros audiovisuais e um dossiê. Como resultado da pesquisa, foram localizadas informações sobre 28 grupos de cirandas em Pernambuco.

A ciranda é uma manifestação popular que reúne música e canto acompanhados de instrumentos percussivos, além de uma dança em roda onde as pessoas se dão as mãos. O ritmo está presente na cultura de estados nordestinos como Paraíba e Pernambuco. Por unanimidade, o conselho decidiu pelo reconhecimento do bem como Patrimônio Cultural do Brasil, sendo inscrito no Livro de Registro das Celebrações.

Lia de Itamaracá, cirandeira mais popular do mundo, comemorou a conquista. Ela, que é patrimônio vivo de Pernambuco há mais de 15 anos, participou da cerimônia que marcou a reabertura da Casa do Carnaval no Recife ao lado de outro nome importante, Cristina Andrade, cirandeira do Recife.  Estou muito feliz com essa conquista. Espero ver cada vez mais as rodas ocupando as ruas da cidade”, comentou.

Em um momento de crise pandêmica, os artistas populares ainda sofrem com os impactos. Totalmente imunizada, Lia começa a retomar algumas agendas e ainda busca mais apoio para a conclusão do centro cultural que mantém em Itamaracá. Em breve, a cirandeira, que também atuou como merendeira por mais de 25 anos, deve iniciar um projeto em sua cidade de valorização de mestres e mestras do Estado.

Exposição

Ciranda de todos nós conta a história da tradição, feita de dança e música, tecida na oralidade e repassada literalmente de mão em mão, nos círculos geracionais da Zona da Mata Norte de Pernambuco e no litoral da Região Metropolitana do Recife. A mostra reconstrói as origens e principais elementos ciranda, além de exibir instrumentos musicais e celebrar mestres e mestras que já giraram essa roda, com citações impressas nas paredes. No chão, projeções conduzem até os menos habilidosos pés na geometria da cadência cirandeira. Para ouvir as músicas e histórias da ciranda, QR Codes espalhados na exposição convidam à experiência sonora do agora declarado patrimônio cultural.  Nomes como Mãe Beth de Oxum, Mestre Biu do Ganzá e Antônio Baracho também fazem parte da mostra que pode ser visitada de segunda a sexta-feira, das 9h às 16h, na Casa do Carnaval.

Casa do Carnaval

O Centro de Formação, Pesquisa e Memória Cultural Casa do Carnaval possui 31 anos de fundação e ficou um longo tempo fechado para restauração. Após conclusão das obras e reinvindicações populares, o espaço reabre para atendimento presencial do público com instalações físicas e acervos recuperados. O espaço cultural, mantido pela Prefeitura do Recife, foi, ao lado da Escola de Frevo, um dos primeiros alvos do Move Cultura, definido como prioridade da nova política cultural.

A Casa do Carnaval está localizada no Pátio de São Pedro, território que representa o legado de homens e mulheres negras de Pernambuco. O local é composto por um conjunto de 29 casas baixas coloniais, com um ou dois pavimentos, que foram tombadas pelo Iphan em 1938. Apesar de sua importância história, a área sofreu grande desvalorização, o que tem sido alvo de críticas por parte do movimento negro há alguns anos. É no Pátio de São Pedro que acontece a tradicional Terça Negra, fundada pelo Movimento Negro Unificado.

 "Retomamos a discussão sobre o Pátio de São Pedro. Ele é uma prioridade da gestão. Estamos submetendo o projeto de requalificação do Pátio ao BNDS (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e se essa alternativa não for viável nem confirmada vamos partir para outras iniciativas. Têm sido feito um estudo e diagnóstico bem cuidadoso sobre cada espaço que está aqui para pensarmos um projeto que de fato tenha sustentabilidade", ressaltou o secretário de Cultura do Recife, Ricardo Dantas.  

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Com informações do Alma Preta.

1 de setembro de 2021

Deputados cearenses aprovam projeto que institui o Dia da Preta Tia Simoa e da mulher negra


Deputados cearenses aprovam projeto que institui o Dia da Preta Tia Simoa e da mulher negra. Na imagem, a representação da Preta Tia Simoa em um projeto intitulado "As Simoas" que trouxe depoimentos de mulheres pretas.

Por Nicolau Neto, editor

A Assembleia Legislativa do Ceará aprovou nesta quarta-feira, 1º de setembro, o Projeto de Lei 335/21 de autoria do Deputado Renato Roseno (PSOL) que institui o Dia da Preta Tia Simoa e da mulher negra e a Semana Preta Tia Simoa de combate à discriminação contra as mulheres negras no Estado.

Na justificativa da propositura e divulgada em suas redes sociais, Roseno destaca que assim como outras personalidades negras, a preta Tia Simoa foi invisibilizada na história "oficial", mas que ela teve um “papel central na luta por liberdade para os corpos negros e negras no Ceará do século XIX”.

Ainda segundo o parlamentar do PSOL, “com a proposta, o Ceará passará a ter o dia 25 de julho como Dia Preta Tia Simoa e também deverá realizar a Semana Preta Tia Simoa de Combate à Discriminação Contra Mulheres Negras”. Ele fisou que o objetivo é fortalecer ações contra o racismo, o sexismo e todas as formas de violência contra as mulheres negras; além da preservação da memória e da contribuição dos povos afrodescendentes, em especial das mulheres negras, para a formação social do nosso estado.

O projeto teve o apoio de diversos coletivos negros, como Movimento Negro Unificado, o Fórum Cearense de Ações Afirmativas, o Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec), Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas, Núcleo de Africanidades Brasileiras (NACE- UFC), Setorial de Negras e Negros PSOL CE, Laboratório de Estudos e Pesquisas em Afro brasilidade, Gênero e Família (Nuafro - UECE), Coletivo Mulheres Negras Resistem, Rede de Mulheres Negras e  Espaço Cultural Preta Tia Simoa.

A Preta Tia Simoa se tornou conhecida do público por meio das pesquisas da historiadora, ativista negra e colunista deste Blog, Karla Alves.

Clique aqui e saiba quem foi a Preta Tia Simoa.

Negros representam 77% das vítimas de homicídio, diz Atlas da Violência

(FOTO/ Reprodução/ O Amarelinho).

Tipicamente negro, jovem, que morre na rua, em via pública, por armas de fogo. Esse é perfil da vítima de homicídio”, é o que diz o diretor-presidente do Instituto Jones do Santos Neves, Daniel Cerqueira, na coletiva de imprensa do Atlas da Violência 2021, publicado nesta terça-feira (31).

A intensa concentração de um viés racial entre as mortes violentas ocorridas no Brasil não constituiu uma novidade ou mesmo um fenômeno recente, de acordo com a pesquisa. Pelo menos, desde a década de 1980, quando as taxas de homicídios começaram a crescer no país, foi possível constatar a alta no número de mortes entre a população negra, especialmente na sua parcela mais jovem.

Segundo o estudo, em 2019, os negros representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2. Comparativamente, entre os não negros (soma dos amarelos, brancos e indígenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil.

Significa que a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. Em outras palavras, no último ano, a taxa de violência letal contra pessoas negras foi 162% maior que entre não negras”, aponta o Atlas.

Na coletiva, Daniel Cerqueira pontuou que “um negro no Brasil tem 23% a mais de chance de ser assassinado. Ainda precisamos estudar como isso se dá por estado. Mas sabemos que isso acontece em locais com forte herança colonial e escravocrata, como na região Nordeste e Norte”, explicou o também coordenador do Atlas 2021.

Dados por região

Acre e Rio Grande do Norte foram os estados com maior aumento percentual nas taxas de homicídios de negros entre 2009 e 2019, respectivamente 114,5% e 100,4%; seguidos de Roraima e Sergipe, com aumentos de 59,6% e 55,8%, respectivamente. Já as unidades federativas que registraram as diminuições mais acentuadas no período foram Distrito Federal (-59,3%), São Paulo (-53,1%), Espírito Santo (-46,7%) e Rio de Janeiro(-42,6%).

Se considerarmos a taxa nacional de homicídios de pessoas negras no ano de 2019 (29,2), percebemos que nesse ano todas as UFs das regiões Norte e Nordeste, exceto Rondônia (26,3), Maranhão (26,2) e Piauí (18,5), registraram taxas acima da média nacional”, destaca o estudo.

Em quase todos os estados brasileiros, um negro tem mais chances de ser morto do que um não negro, com exceção do Paraná e de Roraima que, em 2019, apresentaram taxa de homicídios de não negros superior a de negros”, segundo o Atlas.

No entanto, um aspecto pontuado pelo diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Renato Sérgio de Lima, aponta que o Paraná já foi considerado uma unidade federativa em que morriam mais brancos do que negros, mas esse dado não condiz com a realidade.

Isso se deu porque no Paraná havia uma dificuldade de registrar as crianças como pretas ou pardas, e a autodeclaração não é significativa. Na verdade, os negros morreram mais lá também, mas captar dados nessas condições é mais complicado”, pontua.

Mulheres negras são 66% das vítimas de assassinato no Brasil

A análise ainda aponta que 66,0% do total de mulheres assassinadas no Brasil são negras, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 4,1, em comparação a taxa de 2,5 para mulheres não negras.

O Atlas mostra também que, em 2009, a taxa de mortalidade entre mulheres negras era de 4,9 por 100 mil, ao passo que entre não negras a taxa era de 3,3 por 100 mil. Um pouco mais de uma década depois, em 2019, a taxa de mortalidade de mulheres negras caiu para 4,1 por 100 mil, redução de 15,7%; e entre não negras para 2,5 por 100 mil, redução de 24,5%.

Se considerarmos a diferença entre as duas taxas verificamos que, em 2009, a taxa de mortalidade de mulheres negras era 48,5% superior à de mulheres não negras, e onze anos depois a taxa de mortalidade de mulheres negras é 65,8% superior à de não negras”, ressalta o estudo.

A análise dos últimos onze anos indica também que, enquanto os homicídios de mulheres nas residências cresceram 10,6%, entre 2009 e 2019, os assassinatos fora das residências apresentaram redução de 20,6% no mesmo período, indicando um provável crescimento da violência doméstica.

Apesar dos dados alarmantes, a diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Samira Bueno, pondera que “não podemos esquecer dos avanços conquistados para a manutenção da segurança das mulheres, o que inclui a Lei Maria da Penha e também do feminicídio, sancionado em 2015”.

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Com informações do Alma Preta.

31 de agosto de 2021

Atlas da Violência: assassinatos de indígenas sobem 22% em uma década

 

Pelo menos 2.074 indígenas foram assassinados entre 2009 e 2019 no Brasil. Atlas da Violência 2021 também faz um retrato sobre as agressões contra a população LGBTQIA+ e pessoas com deficiência. (FOTO/ Mídia Ninja/ MNI).

A violência letal contra os povos indígenas recrudesceu na última década, de acordo com o Atlas da Violência 2021, divulgado nesta terça-feira (31). A publicação revela, com base em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, que ao menos 2.074 pessoas indígenas foram assassinadas entre 2009 e 2019. Um aumento de 21,6% na taxa de homicídios, na contramão dos homicídios em geral no país, que registraram queda de 20%, no mesmo período, segundo a publicação.

Foram 15 mortes de indígenas por 100 mil habitantes em 2009 para 18,3 por 100 mil habitantes, em 2019. Isso ante a redução geral de 27,2 mil para 21,7 mil por 100 mil habitantes. Essa é a primeira vez que os dados sobre a violência letal contra os povos originários foram analisados no Atlas elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN). A publicação levou em conta também dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) da Saúde.

Para retratar a violência no Brasil contra essa população específica, o estudo analisou os números de homicídios nos municípios com terras indígenas e sem terras indígenas. A comparação mostrou que nas cidades com Terras Indígenas (TIs), as taxas de homicídios foram maiores, chegando a uma taxa de 20,4 para 100 mil habitantes, enquanto que os municípios sem territórios indígenas fecharam o período com uma taxa de assassinatos de 7,7 para 100 mil habitantes. Nos estados com TIs, Amazonas (49), Roraima (41), Mato Grosso do Sul (39) e Amapá (30,1), registraram os maiores índices de violência letal. Em alguns estados, a situação, segundo o Atlas, “é ainda mais grave relativamente” porque a taxa de homicídios contra pessoas indígenas supera os índices de assassinatos no geral.

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Com informações da RBA.

Resistência negra e as páginas rasgadas da ditadura

 

Movimento Contra a Discriminação Racial, nas escadarias do Teatro Municipal, em São Paulo, no ano de 1978. (FOTO/ Reprodução/ Outras Palavras).

Lideranças perseguidas e assassinadas. Escolas de samba e bailes soul monitorados. Pesquisas e debates sufocados. Militares agiram para vender ao mundo a falaciosa “democracia racial” — uma história que, agora, começa a ser contada

No carnaval passado, a Estação Primeira da Mangueira abalou a Sapucaí com o samba-enredo Histórias para ninar gente grande em que dizia cantar “A história que a História não conta”, seguindo uma tradição importante do samba brasileiro de crítica social e de transmissão de memória coletiva. Da mesma forma, faz quarenta anos que se conta na tradição oral das rodas de samba paulistas que a composição de Geraldo Filme, Silêncio no Bixiga, fora entoada no enterro de Pato N´água, exímio sambista, que teria sido assassinado pelos esquadrões da morte, na então “cidade da garoa”, nos tempos mais sombrios da ditadura militar.

Geraldo Filme, talvez já ciente dos apagamentos intencionais ou não da história, e frente ao contexto de forte repressão militar, deixou registrado na memória afetiva e intelectual afro-brasileira e popular o samba que até hoje faz parte das boas rodas de São Paulo. A homenagem que fez ao “sambista de rua” ficou conhecida também, em algumas versões, como um registro sensível da experiência negra durante os anos de chumbo.

 

(…) Escolas

Eu peço silêncio de um minuto

O Bixiga está de luto

O apito de Pato N’água emudeceu

Partiu

Não tem placa de bronze

Não fica na história

Sambista de rua morre sem glória (…) (FILME, 1969)

 

O icônico samba ainda é um guardião das memórias até hoje não reveladas da última ditadura, já que nenhum livro de História que circula nas salas de aula das  escolas brasileiras, públicas ou privadas, discute o impacto da ditadura militar sobre a população negra e suas expressões culturais e políticas. De fato, a historiografia nacional e a produção acadêmica especializada no assunto, no Brasil e fora dele, construíram uma narrativa sobre o período que deixou à margem segmentos sociais expressivos do povo brasileiro. A Comissão Nacional da Verdade, um marco para o escrutínio da memória do nosso passado recente e que trouxe grandes contribuições para o enfrentamento dos tabus do regime autoritário vigente entre 1964 e1985, reproduziu o racismo estrutural ao silenciar-se sobre a temática racial e sobre as formas de resistência negras durante o período. Essa lacuna tem efeitos perversos pelos menos em dois aspectos: 1) na invisibilidade ou no apagamento da presença negra nas lutas (armadas) e outras formas de resistência ao regime militar; e 2) nos desdobramentos dos efeitos da ditadura – sejam em termos de um pensamento autoritário ou em formas e técnicas de repressão – sobre a população negra e periférica durante e após o período autoritário. Não à toa, quando jornalistas e jovens investigadores se deparam com documentos oficias sobre a questão racial ou com casos no contexto democrático que se assemelham ao período do regime militar (a exemplo de prisões ilegais e arbitrárias, da tortura, dos assassinatos ou dos desaparecimentos forçados de pessoas negras e periféricas sob o poder das autoridades policiais) não sabem ao certo a quem recorrer para dar maior inteligibilidade à “caixa preta” do período autoritário e seus efeitos deletérios no período democrático.

Afinal, como a ditadura militar impactou a vida dos negros brasileiros?

O estabelecimento do regime militar teve múltiplos impactos sobre a questão racial no Brasil. Censura, controle de informação, guerra ideológica, vigilância, exílios, cassações, perseguições, prisões, remoções em favelas, tortura, assassinatos, omissões no enfrentamento aos grupos de extermínio, de justiçamento e de esquadrões da morte, desaparecimentos forçados, desarticulação do ativismo e de organizações negras, além do sufocamento do debate sobre o preconceito, a discriminação e as desigualdades raciais no país. Nos termos de Lélia Gonzalez, após o Golpe de 1964, houve um verdadeiro “silenciamento, a ferro e fogo, dos setores populares e de sua representação política” (1982, p.11).

Um exemplo paradigmático, porém pouco conhecido, é o caso de Esmeraldo Tarquinio, deputado negro pela Baixada Santista. Atento às demandas populares e negras da região, a trajetória do então deputado foi marcada por um conflito racial com os militares. Logo após o Golpe, Tarquino fez discurso sobre a retração democrática no país, ao que um general violentamente retrucou: “Se no Brasil não tivesse democracia, um preto comunista que nem você não seria deputado”.  E logo acrescentou: “Vá para Rússia lavar latrina. Lá que é o seu lugar!”. O referido episódio permaneceu na memória do ex-deputado e, sempre que teve oportunidade, remontava esse caso como fator explicativo para a sua cassação anos depois, o que o impediu de assumir o cargo de prefeito na cidade de Santos, para o qual fora eleito democraticamente. Em seu lugar, o General Costa e Silva nomeou um interventor federal, já que Tarquinío teve seus direitos políticos suspensos por dez anos e nunca mais teve oportunidade de exercer sua vocação política; em 1982, quando novamente pôde se candidatar, morreu às vésperas das eleições.

Poucos sabem, mas o silenciamento oficial durante o regime também gerou a supressão da pergunta sobre raça/cor no censo de 1970.  Pela primeira vez na história do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não se pôde coletar dados capazes de informar sobre as diferenças nas condições de vida da população brasileira segundo o seu pertencimento racial. A supressão da pergunta impactou diretamente a produção acadêmica e a luta antirracista, que se nutria desses dados oficiais para realizar as análises e denúncias sobre as fortes e persistentes desigualdades raciais brasileiras.

Acrescente-se a este a retração dos estudos acadêmicos sobre a temática racial. A agenda de pesquisa sobre relações raciais desenvolvida no processo de institucionalização do campo científico das ciências sociais, a exemplo das pesquisas realizadas por Florestan Fernandes e seus orientandos, perdeu o espaço que tinha na principal universidade brasileira, posto que os militares interferiram diretamente na carreira universitária de estudiosos cujos resultados das investigações questionavam o mito da democracia racial, de um lado, e o argumento da ausência de preconceito racial, de outro.  Como certa vez disse o historiador Thomas Skidmore, os militares não chamavam de subversivos apenas os guerrilheiros com suas armas, mas também os cientistas com suas ideias.  Nas palavras do sociólogo Antônio Sérgio Guimarães, “foi nesse período que a democracia racial passou a ser um dogma, uma espécie de ideologia do Estado brasileiro” (1999, p. 66). É irônico notar que, em pleno contexto de retração de direitos civis, políticos e sociais, a diplomacia brasileira tenha insistido tanto em mostrar para o mundo as supostas relações harmônicas entre negros e brancos, livres de preconceitos e discriminações de cunho racial, escondendo graves violações aos direitos humanos e negando ou minimizando os casos de crescentes desigualdades.

Esse discurso ideológico, no entanto, foi confrontado pelas lideranças negras. Talvez, uma das mais expressivas delas tenha sido aquela realizada pelo exilado Abdias do Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro, que deixou o Brasil, em 1968, rumo aos Estados Unidos, de onde passou a denunciar para o mundo a existência de racismo no Brasil. O confronto entre Nascimento e o governo militar ficou registrado no livro Sitiado em Lagos (1981), em que o autor revela as tentativas de difamação e de guerra ideológica do Itamaraty para colocar em descrédito e silenciar as denúncias do intelectual negro exilado.

Internamente, a forma coletiva de confronto mais expressiva desse contexto foi a formação do Movimento Contra a Discriminação Racial, nas escadarias do Teatro Municipal, em São Paulo, no ano de 1978. Sublinhe-se que um dos motores daquela manifestação foi o caso de Robson Silveira da Luz, que, acusado de roubar frutas, foi levado à delegacia da zona Leste de São Paulo, onde veio a óbito.  Mortes como essa, com nítidas evidências de tortura sequer são arroladas no quadro das vítimas da ditadura militar. Isso revela que há muito a se problematizar sobre a frágil, mas “sagrada” divisão entre “presos políticos” e “presos comuns” no período de 1964 a 1985.

Assim como muitas organizações críticas ao regime, lideranças, atos, encontros e seminários negros estiveram sob vigilância cerrada dos agentes de segurança, uma vez que, sob aquele regime, falar do racismo era entendido como um ato subversivo, como se tratar do assunto gerasse o “ódio racial”, tema arrolado na lei de segurança nacional, conforme nos revelou a pesquisa pioneira de Karin Kössling. Curiosamente, até onde se sabe, nenhum grupo ou ato racista foi investigado pelos militares, os militantes negros que combatiam a discriminação racial, todavia, tiveram suas vidas sistematicamente controladas pelos aparatos da repressão.

As ações de monitoramento e de censura não se limitavam aos espaços tradicionais do “fazer política”, a exemplo de sindicatos, jornais, movimentos sociais, organizações estudantis e partidos, havia também monitoramento constante dos agentes de segurança e repressão aos territórios e espaços de sociabilidade negra – como escolas de samba e bailes soul. Sem contar, as censuras e alterações de trechos de letras das composições de samba-enredo. Ainda no plano da produção artística, o crítico de cinema e sociólogo Noel Carvalho mostrou o impacto da censura no filme Compasso de espera, que tinha como tema central os preconceitos e conflitos raciais na sociedade brasileira. O conteúdo era considerado de teor subversivo, em contraste com a imagem de paraíso racial que o regime imprimia para dentro e para fora do país.

Talvez sejam por essas e outras razões que o diretor baiano Wagner Moura escolheu negritar as linhas tortuosas da ditadura militar, ao levar para telas de cinema a vida do guerrilheiro Carlos Marighella, na pele de Seu Jorge. Guardadas as devidas peculiaridades históricas, em som e em imagem, há que se notar em Moura, assim como em Geraldo Filme, a preocupação de demover dos escombros da ditadura alguns dos seus silêncios e silenciamentos. Cada um a seu modo, ambos registram fatos e experiências históricas, disputam os símbolos e as narrativas vividas sob a ditadura militar e trazem à memória social dos brasileiros e das brasileiras seus traumas coletivos. Tarefa ainda mais urgente num contexto político assolado por apologia à tortura, pelos clamores de grupos  (ainda) minoritários nas ruas em favor do retorno ao regime militar, pelo aparelhamento ideológico da extrema direita nas instituições de cultura (a exemplo da Cinemateca), pela desqualificação das comissões da verdade e das investigações sobre as vítimas, os crimes e criminosos da ditadura (vide as recentes bravatas presidenciais  e suas declarações indignas  direcionadas ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e à ex-presidente  do Chile e atual Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), Michelle Bachelet, pela legitimação das violações aos direitos humanos por parte de governantes do poder executivo (casos das declarações e atos aberrantes dos governadores do Rio de Janeiro e de São Paulo, que incentivam e legitimam assassinatos em favelas e em territórios periféricos), pela censura às expressões plurais de ideias e formas de viver o amor (a recente cruzada ideológica do Crivella na Bienal do livro), pela militarização das favelas, pelas intervenções nas universidades públicas, pelas ameaças às liberdades  de cátedra, de associação e organização política, aos direitos individuais e conquistas sociais.

Com efeito, falar da ditadura militar e trazer os fatos e a verdade sobre esse período tornou-se, mais do que nunca, dever imperioso e ético de nossos tempos, seja para explicar o passado e seus vínculos com o presente ou para compreender e confrontar os agentes, os discursos e as práticas de violência rotinizadas pelos atuais representantes do Estado brasileiro. Em tempo: confrontar a história é lição que aprendemos no carnaval passado.  É aprendizado para não esquecer jamais.

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Por Flavia Rios, publicado originalmente no Outras Palavras.

30 de agosto de 2021

ONU usa Lei da Anistia como exemplo da “cultura de impunidade” contra ditaduras

 

Dilma Rousseff em tribunal da Ditadura (FOTO/ Arquivo)

Reportagem de Jamil Chade nesta segunda-feira (30) no portal Uol revela que a Organização das Nações Unidas (ONU) vai usar a Lei da Anistia, decretada por João Batista Figueiredo no fim da Ditadura Militar no Brasil, como exemplo da “cultura de impunidade” da violação de direitos humanos por regimes autoritários.

O caso brasileiro, que anistiou militares pelos crimes cometidos durante a Ditadura – louvada hoje por Jair Bolsonaro -, consta em um relatório de Fabián Salvioli, relator da ONU para a promoção da verdade, justiça e reparação.

O documento já teria sido enviado a governos e será colocado em debate ainda em setembro durante reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Muitos países, incluindo Argentina, Brasil, Chile, República Democrática do Congo, El Salvador, Serra Leoa, Espanha, África do Sul e Uruguai, promulgaram leis de anistia que barraram investigações criminais e a punição dos responsáveis quando estavam embarcando em processos de justiça transitórios a fim de facilitar acordos ou negociações políticas”, diz Salvioli em seu relatório, que afirma ainda que “as anistias violam uma série de direitos humanos, como o direito das vítimas de serem ouvidas por um juiz e o direito à proteção judicial por meio de um recurso efetivo”.

Elas também abrem o caminho para a impunidade, impedindo a investigação, perseguição, captura, acusação e punição das pessoas responsáveis pelas violações dos direitos humanos”, afirma o texto.

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Com informações da Revista Fórum.

‘Não importa o tempo que será necessário, faremos Palmares de novo’, diz Sueli Carneiro

 

Sueli Carneiro, 71 anos (FOTO/ Andre Seiti/Divulgação).

Apesar de não ser muito afeita a entrevistas, as palavras são a principal ferramenta de trabalho de Sueli Carneiro. Há mais de três décadas, a filósofa e ativista escreve incansavelmente e, por meio de suas palavras, contundentes como espada afiada, luta pela construção de um país antirracista, mais justo, igual e solidário. Aos 71 anos, completados em junho de 2021, ela é uma das intelectuais negras mais atuantes no país e um dos nomes que abriram os caminhos do feminismo negro brasileiro.

Da menina nascida no bairro da Lapa, zona oeste da capital paulista, à doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP), sua trajetória foi recentemente recontada na biografia “Continuo preta” (Ed. Companhia das Letras), escrita pela jornalista Bianca Santana, e agora é celebrada na Ocupação Sueli Carneiro, inaugurada no sábado (28), no Itaú Cultural, em São Paulo. A exposição segue em cartaz até 31 de outubro.

— A Sueli faz parte de uma geração que ajudou a construir o movimento de mulheres negras e o movimento negro como um todo. Então, contar a história dela é contar uma historia coletiva e poder celebrá-la em vida é algo muito bom — afirma Santana, que também é cocuradora da exposição.

A geração a qual a biógrafa se refere é aquela que, em 1978, fundou o Movimento Negro Unificado (MNU), visando “defender a comunidade afro-brasileira contra a secular exploração racial e humana”. Inserida neste contexto, Sueli foi uma das primeiras a argumentar que era preciso incluir no debate os recortes de gênero, raça e classe.

Em 1985, ela lançou seu primeiro livro, “Mulher negra: política governamental e a mulher”, escrito com Thereza Santos e Albertina de Oliveira Costa, seguido de “Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil”. Mais tarde, em 1988, fundou o Instituto da Mulher Negra, o Geledés, onde passou a colocar em prática sua visão como socióloga e militante.

Com mais de 140 itens, entre fotografias, documentos, vídeos, artigos e livros, a Ocupação Sueli Carneiro celebra a construção da obra e da militância da ativista, sua ancestralidade, suas memórias pessoais, a paixão pelo futebol, a força e a simbologia de sua religiosidade e sua jornada de formuladora de debates fundamentais sobre o país.

Nesta rara entrevista, ela reflete sobre como é ver sua história contada em livro e exposição e o que mais a emociona ao olhar para trás. Sueli também fala sobre a atuação da Fundação Cultural Palmares sob o governo Bolsonaro: “Não importa o tempo que será necessário, faremos Palmares de novo”.

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Com informações do Geledés. Clique aqui e confira a íntegra da entrevista.