O
Brasil era uma das maiores potências navais do mundo, destacando-se a sua
Esquadra Branca formada pelos encouraçados Minas Gerais e São Paulo, pelos
cruzadores Rio Grande do Sul e Bahia e por mais 18 navios. O Governo gastara
uma fortuna para modernizar sua esquadra, mas o código disciplinar da Marinha
era o mesmo do tempo da monarquia, assim como os arbitrários processos de
recrutamento. Criminosos e marginais, produtos de uma sociedade que lhes negava
maior sorte, eram colocados lado a lado com homens simples do interior para
cumprir serviço obrigatório durante 10 a 15 anos! As desobediências ao
regulamento eram punidas com chibatadas. Por isso, as revoltas ocorriam antes
mesmo do ingresso na corporação.
Publicado
originalmente em DNA
O
decreto nº 3, de 16 de novembro de 1889, um dia após a Proclamação da
República, extinguiu os castigos corporais na Armada, mas em novembro do ano
seguinte o marechal Deodoro, contraditoriamente, tornou a legalizá-los: "para as faltas leves prisão e ferro na
solitária, a pão e água; faltas leves repetidas, idem por seis dias; faltas
graves, 25 chibatadas".
Como
os reclamos dos marujos não foram ouvidos, eles passaram a conspirar. Uma
primeira advertência foi feita durante a ida de uma divisão da Marinha às
comemorações da Independência chilena, em que ocorreram 911 faltas
disciplinares, a maioria punida com açoites: "Venho por meio destas linhas pedir para não maltratar a guarnição deste
navio, que tanto se esforça por trazê-lo limpo. Aqui ninguém é salteador nem
ladrão", dizia um aviso ao comandante de um dos navios, assinado por
um marinheiro conhecido como Mão Negra.
Na
madrugada de 16 de Novembro a Guanabara estava repleta de navios estrangeiros
que aportaram para a posse do marechal Hermes da Fonseca na presidência da
República. Ao raiar do dia, toda a tripulação do navio Minas Gerais foi chamada
ao convés para assistir aos castigos corporais a que seria submetido o
marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes. Na noite anterior ele ferira a
navalhadas o cabo Valdemar, que o havia denunciado por introduzir duas garrafas
de cachaça no navio. Sua pena: 250 chibatadas e não mais 25 como vinha
acontecendo.
Junto
à tripulação do navio havia também oito carrascos oficiais. Depois de examinado
pelo médico de bordo e considerado em perfeitas condições físicas, Marcelino
foi amarrado pelas mãos e pés e submetido ao castigo. Durante o castigo,
Marcelino desmaiou de dor, mas a surra continuou. Ao fim das 250 chibatadas,
suas costas estavam banhadas em sangue, lanhadas de cima para baixo.
Desacordado, ele foi desamarrado, embrulhado num lençol e levado aos porões. Lá
jogaram iodo em suas costas e o deixaram estrebuchando no chão.
A
Campanha Civilista de Rui Barbosa à presidência da República, as revoltas
populares ocorridas no Rio de Janeiro na primeira década do século XX e o
descontentamento de diversos setores da sociedade com o tipo de República
liberal que foi instaurada no país, foram fatores que fizeram parte do contexto
no qual se insere a Revolta da Chibata, deixando à mostra o grande
descontentamento social presente no Brasil na época anterior a I Grande Guerra.
Expondo assim a inserção dos marinheiros na vida social da capital federal.
Tendo
que se adicionar ainda a esse painel a falta crônica de mão-de-obra para a
Marinha de Guerra, além do alistamento militar feito de maneira brutal,
engajando criminosos (muitas vezes capoeiras), separando famílias e engajando
homens e adolescentes por vinte anos, tempo que muitos deles não resistiam.
Apesar de já existirem as primeiras Casas de Aprendiz de Marinheiros, locais
destinados a órfãos e meninos pobres que eram educados para vida como praças da
Marinha de Guerra, eram homens mestiços ou negros, em sua maioria, que serviam
ao projeto de país e ao projeto civilizatório das massas perigosas, na visão
das elites. Todavia, tais homens entrando em contato não somente com o duro
labor, mas, também com populações do país inteiro sem esquecer das missões
internacionais, possivelmente proporcionaram uma maior compreensão da realidade
deles. Tornando cada vez mais latente e insustentável sua situação, a ponto de
após a renovação de parte da esquadra de guerra, com a aquisição de
encouraçados britânicos, deixou mais claro a falta de qualificação e o arcaísmo
das codificações da Marinha de Guerra. Para tanto os marinheiros sublevados
filtraram dos discursos políticos existentes algumas idéias para fundamentar
suas revindicações como revela uma carta enviada por um marinheiro sublevado
para o jornal Correio da Manhã de 25/11/1910:
“Rio
de Janeiro, 22 de novembro de 1910 – Ilustrado sr. redator do Correio da Manhã
– É doloroso o fato que ora se passa na nossa marinha de guerra, mas, sr.
redator, quem os culpados? Justamente os superiores da referida Armada, estes
que deviam encarar os seus subordinados como homens servidores da pátria; pelo
contrario, eles são tratados como desprezíveis e sujeitos, á simples falta, nos
castigos mais rigorosos possíveis. Têm hoje como símbolo do martírio desses
infelizes a palmatória, as algemas, e o chicote, e tudo isso, ilustre sr.
redator, na marinha que, conforme os plano do sr. ex-ministro dizia
civilizar-se. A escravidão terminou-se a 13 de maio de 1888, com a áurea lei da
liberdade, e os oficiais da nossa marinha de guerra, conquanto as leis militares
tivessem abolido castigos, não ligaram importância às leis militares e à
disciplina, castigando os seus subordinados com ódio com que os senhores
castigavam os mãos escravos. Sr. redator, é doloroso sim, ver-se a nossa
marinha de hoje passar fome e todas as privações, pelo descaso dos comandantes
de navios da Armada. Com um pessoal resumido e sofredor, eles querem o serviço
feito a tempo e hora, sem encarar o cansaço, isto quando em viagens longas,
como se deu nestas vindas das nossas unidades da Europa para aqui.
Os
nossos pobres marinheiros e foguistas vieram como verdadeiros escravos,
passando fome e sendo constantemente castigados com os ferros, a chibata e o
bolo; em um dos últimos navios chegados, o comandante, durante a viagem, em
alto mar, mandava amarrar o pobre marinheiro e fazia com este fosse lavar e
pintar o costado do navio. Foguistas, estes coitados, faziam 6 horas de quarto
e não tinham o direito ao descanso que, pela lei, lhes toca, porque eram logo
chamados para outros serviços. O verdadeiro navio negreiro. É necessário, sr.
redator, que publiqueis estas mal escritas palavras, afim de que, chegando elas
ao conhecimento das autoridades competentes, possam sanar o mal, e o fato igual
não mais se reproduza na nossa marinha de guerra. É necessário que os oficiais
da Armada compreendam que estamos no século da luz. Abaixo a chibata, as
algemas e a palmatória – Um marinheiro.”
O
uso do açoite, como visto, continuou sendo aplicado nos marinheiros como medida
disciplinar, como no tempo em que existia o pelourinho. Todos os marinheiros,
na sua esmagadora maioria negros, continuavam a ser açoitados às vistas dos
companheiros, por determinação da oficialidade branca.
Os
demais marujos eram obrigados a assistir à cena infamante no convéns das belonaves.
Com isto, criaram-se condições de revolta no seio dos marujos. Os seus membros
não aceitavam mais passivamente esse tipo de castigo. Chefiados por Francisco
Dias, João Cândido e outros tripulantes do Minas Gerais, navio capitânia da
esquadra, organizaram-se contra a situação humilhante de que eram vítimas. Nos
outros navios a marujada também se organizava: o cabo Gregório conspirava no
São Paulo, e no Deodoro havia o cabo André Avelino.
Num
golpe rápido, apoderaram-se dos principais navios da Marinha de Guerra
brasileira e se aproximaram do Rio de Janeiro. Em seguida mandaram mensagem ao
presidente da República e ao ministro da Marinha exigindo a extinção do uso da
chibata.
O
governo ficou estarrecido. Acharam tratar-se de um golpe político das forças
inimigas. O pânico apoderou-se de grande parte da população da cidade. Muitas
pessoas fugiram. Somente em um dia correram 12 composições especiais para
Petrópolis, levando 3 000 pessoas. Todos os navios amotinados hastearam
bandeiras vermelhas. Alguns navios fiéis ao governo ainda tentaram duelar com
os revoltosos, mas foram logo silenciados. Com isto os marujos criaram um
impasse institucional. De um lado a Marinha, que queria a punição dos
amotinados, em conseqüência da morte de alguns oficiais da armada. Do outro
lado, o governo e os políticos, que sabiam não ter forças para satisfazer essa
exigência. Mesmo porque os marinheiros estavam militarmente muito mais fortes
do que a Marinha de Guerra, pois comandavam, praticamente, a armada e tinham os
canhões das belonaves apontados para a capital da República.
Depois
de muitas reuniões políticas, nas quais entrou, entre outros, Rui Barbosa, que
condenou os “abusos com os quais, na gloriosa época do abolicionismo,
levantamos a indignação dos nossos compatriotas”, foi aprovado um projeto de
anistia para os amotinados. Com isto, os marinheiros desceram as bandeiras
vermelhas dos mastros dos seus navios. A revolta havia durado cinco dias e
terminava vitoriosa. Desaparecia, assim, o uso da chibata como norma de punição
disciplinar na Marinha de Guerra do Brasil.
As
forças militares, não-conformadas com a solução política encontrada para a
crise, apertaram o cerco contra os marinheiros. João Cândido, sentindo o
perigo, ainda tentou reunir o Comitê Geral da revolução, inutilmente.
Procuraram Rui Barbosa e Severino Vieira, que defenderam a anistia em favor
deles, mas sequer foram recebidos por esses dois políticos. Uniram-se, agora,
civis e militares para desafrontar os “brios da Marinha de Guerra” por eles
atingidos. Finalmente veio um decreto pelo qual qualquer marinheiro podia ser
sumariamente demitido. A anistia fora uma farsa para desarmá-los.
São
acusados de conspiradores, espalharam boatos de que haveria uma outra
sublevação. Finalmente, afirmaram que a guarnição da ilha das Cobras havia se
sublevado. Pretexto para que a repressão se desencadeasse violentamente sobre
os marinheiros negros. O presidente Hermes da Fonseca necessitava de um
pretexto para decretar o estado de sítio, a fim de sufocar os movimentos democráticos
que se organizavam. As oligarquias regionais tinham interesse em um governo
forte. Os poucos sublevados daquela ilha propuseram rendição incondicional, o
que não foi aceito. Seguiu-se uma verdadeira chacina. A ilha foi bombardeada
até ser arrasada. Estava restaurada a honra da Marinha.
João
Cândido e os seus companheiros de revolta foram presos incomunicáveis, e o
governo e a Marinha resolveram exterminar fisicamente os marinheiros.
Embarcaram-nos no navio Satélite rumo ao Amazonas.
Os
66 marujos que se encontravam em uma masmorra do Quartel do Exército e mais 31,
que se encontravam no Quartel do 1º Regimento de Infantaria, foram embarcados
junto com assassinos, ladrões e marginais para serem descarregados nas selvas
amazônicas. Os marinheiros, porém, tinham destino diferente dos demais
embarcados. Ao lado dos muitos nomes da lista entregue ao comandante do navio,
havia uma cruz vermelha, feita a tinta, o que significava a sua sentença de
morte. Esses marinheiros foram sendo parceladamente assassinados: fuzilados
sumariamente e jogados ao mar.
João
Cândido, embora não tenha participado do novo levante, também é preso e enviado
para a prisão subterrânea da Ilha das Cobras, na noite de Natal de 1910, com
mais 17 companheiros. Os 18 presos foram jogados em uma cela recém-lavada com
água e cal. A cela ficava em um túnel subterrâneo, do qual era separada por um
portão de ferro. Fechava-a ainda grossa porta de madeira, dotada de minúsculo
respiradouro. O comandante do Batalhão Naval, capitão-de-fragata Marques da
Rocha, por razões que ninguém sabe ao certo, levou consigo as chaves da cela e
foi passar a noite de Natal no Clube Naval, embora residisse na ilha.
A
falta de ventilação, a poeira da cal, o calor, a sede começaram a sufocar os
presos, cujos gritos chamaram a atenção da guarda na madrugada de Natal. Por
falta das chaves, o carcereiro não podia entrar na cela. Marques da Rocha só
chegou à ilha às oito horas da manhã. Ao serem abertos os dois portões da
solitária, só dois presos sobreviviam, João Cândido e o soldado naval João
Avelino. O Natal dos demais fora paixão e morte.
O
médico da Marinha, no entanto, diagnosticou a causa da morte como sendo
"insolação". Marques da Rocha foi absolvido em Conselho de Guerra,
promovido a capitão-de mar-e-guerra e recebido em jantar pelo presidente da
República.
João
Cândido continuou na prisão, às voltas com os fantasmas da noite de terror. O
jornalista Edmar Morel registrou assim seu depoimento pessoal: "Depois da
retirada dos cadáveres, comecei a ouvir gemidos dos meus companheiros mortos,
quando não via os infelizes, em agonia, gritando desesperadamente, rolando pelo
chão de barro úmido e envoltos em verdadeiras nuvens da cal. A cena dantesca
jamais saiu dos meus olhos.
João
Cândido enlouqueceu, sendo internado no Hospital dos Alienados.
Ele
e os companheiros só seriam absolvidos das acusações em 1912. Tuberculoso e na
miséria, conseguiu, contudo, restabelecer-se física e psicologicamente.
Perseguido constantemente, morreu como vendedor no Entreposto de Peixes da
cidade do Rio de Janeiro, sem patente, sem aposentadoria e até sem nome, este
herói que um dia foi chamado, com mérito, de Almirante Negro.
Os
que fizeram a Revolta da Chibata morreram ou foram presos, desmoralizados e
destruídos. Seu líder, como visto, terminou sem patente militar, sem
aposentadoria e semi-ignorado pela História oficial. No entanto, o belíssimo
samba "O Mestre-Sala dos Mares", de João Bosco e Aldir Blanc,
composto nos anos 70, imortalizou João Cândido e a Revolta da Chibata. Como diz
a música, seu monumento estará para sempre "nas pedras pisadas do
cais". A mensagem de coragem e liberdade do "Almirante Negro" e
seus companheiros resiste.