Doença
sempre foi algo associado à anormalidade, à disfunção, a tudo aquilo que foge
ao funcionamento regular. Na área médica, a doença é identificada por sintomas
específicos que afetam o ser vivo, alterando o seu estado normal de saúde. A
saúde, por sua vez, identifica-se como sendo o estado de normalidade de
funcionamento do organismo.
Numa
analogia com os organismos biológicos, o sociólogo Émile Durkheim também
sugeriu como identificar saúde e doença em termos dos fatos sociais: saúde se
reconhece pela perfeita adaptação do organismo ao seu meio, ao passo que doença
é tudo o que perturba essa adaptação.
Então,
ser saudável é ser normal, é ser adaptado, certo? Não necessariamente: apesar
de Durkheim, há quem considere que do ponto de vista social, ser normal demais
pode também ser patológico, ou pode levar a patologias letais.
Os
pensadores alternativos Pierre Weil, Jean-Ives Leloup e Roberto Crema chamaram
isto de Normose, a doença da normalidade, algo bem comum no meio acadêmico de
hoje. Para Weil, a Normose pode ser definida como um conjunto de normas,
conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir, que são
aprovados por consenso ou por maioria em uma determinada sociedade e que
provocam sofrimento, doença e morte. Crema afirma que uma pessoa normótica é
aquela que se adapta a um contexto e a um sistema doente, e age como a maioria.
E para Leloup, a Normose é um sofrimento, a busca da conformidade que impede o
encaminhamento do desejo no interior de cada um, interrompendo o fluxo evolutivo
e gerando estagnação.
Estes
conceitos, embora fundados sobre um propósito de análise pessoal e existencial,
são muito pertinentes ao que se vive hoje na academia. Aqui, pela Normose não é
apenas o indivíduo que adoece, que estagna, que deixa de realizar o seu
potencial criador, mas o próprio conhecimento. E não apenas no Brasil, também
em outras partes do mundo.
Peter
Higgs, Prêmio Nobel de Física de 2013 disse recentemente que não teria lugar no
meio acadêmico de hoje, que não seria considerado suficientemente produtivo, e
que, por isso, provavelmente não teria descoberto o Bosão de Higgs (a
“partícula de Deus), descrito por ele em 1964 mas somente comprovado em 2012,
quase 50 anos depois, com a entrada em funcionamento de uma das maiores
máquinas já construídas pelo homem, o acelerador de partículas Large Hadron
Collider. Higgs contou ao The Guardian que era considerado uma “vergonha” para
o seu Departamento pela baixa produtividade de artigos que apresentava, e que
só não foi demitido pela possibilidade sempre iminente de um dia ganhar um
Nobel, caso sua teoria fosse comprovada. Ele reconheceu que, nos dias de hoje,
de obsessão por publicações no ritmo do “publique ou pereça”, não teria tempo
nem espaço para desenvolver a sua teoria. À sua época, porém, não só o ambiente
acadêmico era outro como ele próprio era um desajustado, um anormal, uma
espécie de dissidente que trabalhava sozinho em uma área fora de moda, a física
teórica expeculativa. Então, sua teoria é também fruto desta saudável
“anormalidade”.
A
mim, embora não surpreendam, as declarações de Higgs soam estarrecedoras: ou
seja, com os sistemas meritocráticos de avaliação de hoje, que privilegiam a
produção de artigos e não de conhecimentos ou de pensamentos inovadores, uma
das maiores descobertas da humanidade nas últimas décadas, que rendeu a Higgs o
Nobel em 2013, provavelmente não teria ocorrido, como certamente muitos outros
avanços científicos e intelectuais estão deixando de ocorrer em função dos
sistemas atuais de avaliação da “produtividade em pesquisa”. É a Normose
acadêmica fazendo a sua maior vítima: o próprio conhecimento.
Aliás,
nunca se usou tanto a autoridade do Nobel para apontar os desvios doentios do
nosso sistema acadêmico e científico como em 2013. Randy Schekman, um dos
ganhadores do Nobel de Medicina deste ano, em recente artigo no El País, acusou
as revistas Nature, Science e Cell, três das maiores em sua área, de prestarem
um verdadeiro desserviço à ciência, ao usarem práticas especulativas para
garantirem seus mercados editoriais. Schekman menciona, por exemplo, a
artificial redução na quantidade de artigos aceitos, a adoção de critérios
sensacionalistas na seleção dos mesmos e um absoluto descompromisso com a
qualificação do debate científico. E afirmou que a pressão para os cientistas
publicarem em revistas “de luxo” como estas (de alto impacto) encoraja-os a
perseguirem campos científicos da moda em vez de optarem por trabalhos mais
relevantes. Isto explica a afirmação de Higgs sobre ser improvável a descoberta
que lhe deu o Nobel no mundo acadêmico de hoje.
O
próprio Schekman publicou muito nestas revistas, inclusive as pesquisas que o
levaram ao Nobel: diferentemente de Higgs, que era um dissidente, Schekman
também já sofreu de Normose. Porém, agora laureado, decidiu pela própria cura e
prometeu evitar estas revistas daqui para adiante, sugerindo não só que todos
façam o mesmo, como também que evitem avaliar o mérito acadêmico dos outros
pela produção de artigos. Foi preciso um Nobel para que se libertasse da
doença.
A
atual Normose acadêmica se deve à meritocracia produtivista implantada nas
universidades, cujos instrumentos, no Brasil, para garantir a disciplina e esta
doentia normalidade são os sistemas de avaliação de pesquisadores e programas
de pós-graduação, capitaneados principalmente pela CAPES e CNPq. Estes sistemas
têm transformado, nas últimas décadas, docentes e alunos em burocráticos
produtores de artigos, afastando-os dos reais problemas da ciência e da
sociedade, bem como da busca por conhecimentos e pensamentos realmente novos. A
exigência de produtividade é um estímulo ao status quo, obstruindo a
criatividade, a iniciativa, o senso crítico e a inovação, pois inovar, criar,
empreender, fugir ao normal pode ser perigoso, pode ser incerto, pode ser
arriscado quando se tem metas produtivas a cumprir; portanto, não é desejável:
o mais seguro é fazer “mais do mesmo”, que é ao que a Normose acadêmica
condenou as universidades e seus integrantes ao redor do mundo.
Eu
escrevi em um artigo de 2013 que a meritocracia leva a uma ilusão de eficiência
e progresso que não podem se realizar, porque as meritocracias modernas são
burocracias. Como bem ensinou Max Weber, a burocracia é uma força modeladora
inescapável quando se racionaliza e se regulamenta algum campo de atividade,
como acontece no sistema científico atual. Para supostamente discriminar por
mérito pessoas e organizações acadêmicas, montou-se um tal sistema de regras,
critérios avaliativos, hierarquias de valor, indicadores, etc., que a
burocratização das ações acadêmicas tornou-se inevitável. Agora é este sistema
que orienta as ações dos acadêmicos, afastando-os de seus próprios valores,
desejos e convicções, para agirem em função da conveniência em relação aos
processos avaliativos, visando controlar os benefícios ou penalidades que eles
impõem. Pessoas sob regimes de avaliação meritocráticos se tornam burocratas
comportamentais; e burocratas, como se sabe, pela primazia da conformidade
organizacional a que se submetem, tornam-se inexoravelmente impessoalistas, formalistas,
ritualistas e avessos a riscos e a mudanças. Tornam-se normóticos, preferindo,
no caso da academia, uma produção sem significado, sem relevância, sem
substância inovadora porém segura, a aventurarem-se incertamente em busca do
novo.
Agora,
depois de já ter escrito isto naquele artigo, descubro que o Nobel de Medicina
de 2002, o sul-africano Sydney Brenner, em entrevista de fevereiro deste ano à
King’s Reviw, afirmou exatamente o mesmo. Dentre outras coisas, disse ele que
as novas ideias na ciência são obstruídas por burocratas do financiamento de
pesquisas e por professores que impedem seus alunos de pós-graduação de
seguirem suas próprias propostas de investigação. É ao menos alentador perceber
que esta realidade insólita não é apenas uma versão tupiniquim da busca tardia
e equivocada por um lugar o sol no campo acadêmico atual, mas uma deformação
que assola também os “grandes” da arena científica mundial. E também constatar
que os laureados com a distinção do Nobel tem se percebido disto e denunciado
ao mundo.
De
certa forma, todos na academia sabem que estes sistemas de avaliação acadêmicos
têm levado a um produtivismo estéril, mas isto não tem sido suficiente para
mudar nem as condutas pessoais, nem as diretrizes do sistema, porque a Normose
é uma doença coletiva, não individual. Ela advém da necessidade de legitimação
do indivíduo frente ao sistema de regras, normas, valores e significados que se
impõe a ele. Por isto é que o pesquisador australiano Stewart Clegg afirmou,
certa vez, que “pesquisadores que buscam legitimação profissional podem com
muita facilidade ser pressionados a aprender mais e mais sobre problemas cada
vez mais desinteressantes e irrelevantes, ou a investigar mais e mais soluções
que não funcionam”.
Mas
agora me advém uma questão curiosa: por que tantos Nobéis tem denunciado este
sistema? Creio que porque do alto da distinção recebida, eles já não tem mais
nenhum compromisso com a meritocracia acadêmica, e podem falar do dano que ela
causa às ideias realmente inovadoras que, inclusive, podem levar à láurea. Mas
também porque o Nobel foge à lógica da meritocracia, ele não é um mecanismo
meritocrático, portanto, não é burocrático. Ele é até mesmo político, antes de
ser meritocrático e burocrático! É um reconhecimento de “mérito” sem ser uma
“cracia”. Ou seja, não há, através dele, um sistema de governo das atividades
científicas, e por isso ele não leva a uma racionalidade formal, pois ninguém
em consciência normal pautaria sua atividade acadêmica quotidiana pela
improvável meta de, talvez já na velhice, ganhar o Nobel; e mesmo que tivesse
este excêntrico propósito como pauta, teria que fugir da meritocracia que
governa os sistemas científicos atuais para chegar a um lugar reconhecidamente
distinto, pois ser normal não leva ao Nobel.
Mas
este não é o mundo da vida dos seres acadêmicos de hoje, aqui vivemos em uma
meritocracia burocrática, e num contexto assim, pouco adiantam as advertências
da editora-chefe da revista Science, Marcia McNutt, publicados no Estadão, de
que a ciência brasileira precisa ser mais corajosa e mais ousada se quiser
crescer em relevância no cenário internacional. Segundo ela, para criar essa
coragem é preciso aprender a correr riscos, e aceitar a possibilidade de
fracasso como um elemento intrínseco do processo científico. Mas quando as
pessoas são penalizadas pelo fracasso, ou são ensinadas que fracassar não é um
resultado aceitável, elas deixam de arriscar; e quem não arrisca não produz
grandes descobertas, produz apenas ciência incremental, de baixo impacto, que é
o perfil geral da ciência brasileira atualmente, segundo ela. É a Normose
acadêmica “a brasileira” vista de fora.
Somos
todos normóticos em um sistema acadêmico de formação de pesquisadores e de
produção de conhecimentos que está doente, e nossa Normose acadêmica tem feito
naufragar o pensamento criativo e a iniciativa para o novo em nossas
universidades. Sem eles, porém, não há futuro significativo para a vida
intelectual dentro delas, nem na ciência nem nas artes.
Texto publicado no E-Book:
NASCIMENTO, L.F.M. (Org.) Lia, mas não escrevia (livro eletrônico): contos,
crônicas e poesias. Porto Alegre: LFM do Nascimento, 2014.