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Cruz (detalhe), Arcabas (Jean-Marie Pitot), Igreja do Espírito Santo e de S. Alessandro Mártir, Arquidiocese de Portoviejo, Equador. (Foto: Reprodução/ Outras Palavras. |
Nesta
Sexta-Feira da Paixão, Caminho Pra Casa publica artigo exclusivo de um dos
maiores biblistas vivos, o frade italiano Alberto Maggi. A tradução é do
biblista brasileiro padre Francisco Cornélio. No texto, Maggi demole duas
ideias que estão na base do cristianismo falsificado que os integristas
sustentam há séculos: 1) Jesus teria
sido morto “pelos nossos pecados”; 2) essa seria “a vontade de Deus”. A versão
é insustentável com um exame realista e honesto dos textos bíblicos. Os Evangelhos são claríssimos: Jesus morreu
porque confrontou o Templo, um sistema de dominação e exploração dos pobres de
Israel. Jesus não inaugurou o tempo da culpa, mas o da misericórdia e o da vida
plena para os pobres. A íntegra do artigo a seguir.
Jesus
Cristo morreu pelos nossos pecados. Essa é a resposta que normalmente se dá
para aqueles que perguntam por que o Filho de Deus terminou seus dias na forma
mais infame para um judeu, o patíbulo da cruz, a morte dos amaldiçoados por
Deus (Gl 3,13).
Jesus
morreu pelos nossos pecados. Não só pelos nossos, mas também por aqueles homens
e mulheres que viveram antes dele e, portanto, não o conheceram e, enfim, por
toda a humanidade vindoura. Sendo assim, é inevitável que olhando para o
crucifixo, com aquele corpo que foi torturado, ferido, riscado de correntes e
coágulos de sangue expostos, aqueles pregos que perfuram a carne, aqueles
espinhos presos na cabeça de Jesus, qualquer um se sinta culpado … o Filho de
Deus acabou no patíbulo pelos nossos pecados! Corre-se o risco de sentimentos
de culpa infiltrarem-se como um tóxico nas profundezas da psiquê humana,
tornando-se irreversíveis, a ponto de condicionar permanentemente a existência
do indivíduo, como bem sabem psicólogos e psiquiatras, que não param de atender
pessoas religiosas devastadas por medos e distúrbios.
No
entanto, basta ler os Evangelhos para ver que as coisas são diferentes. Jesus
foi assassinado pelos interesses da casta sacerdotal no poder, aterrorizada
pelo medo de perder o domínio sobre o povo e, sobretudo, de ver desaparecer a
riqueza acumulada às custas da fé das pessoas.
A
morte de Jesus não se deve apenas a um problema teológico, mas econômico. O
Cristo não era um perigo para a teologia (no judaísmo havia muitas correntes
espirituais que competiam entre si, mas que eram toleradas pelas autoridades),
mas para a economia. O crime pelo qual Jesus foi eliminado foi ter apresentado
um Deus completamente diferente daquele imposto pelos líderes religiosos, um
Pai que nunca pede a seus filhos, mas que sempre dá.
A
próspera economia do templo de Jerusalém, que o tornava o banco mais forte em
todo o Oriente Médio, era sustentada pelos impostos, ofertas e, acima de tudo,
pelos rituais para obter, mediante pagamento, o perdão de Deus. Era todo um
comércio de animais, de peles, de ofertas em dinheiro, frutos, grãos, tudo para
a “honra de Deus” e os bolsos dos
sacerdotes, nunca saturados: “cães
vorazes: desconhecem a saciedade; são pastores sem entendimento; todos seguem
seu próprio caminho, cada um procura vantagem própria” (Is 56, 11).
Quando
os escribas, a mais alta autoridade teológica no país, considerando o
ensinamento infalível da Lei, vêem Jesus perdoar os pecados a um paralítico,
imediatamente sentenciam: “Este homem
está blasfemando!” (Mt 9,3). E os blasfemos devem ser mortos imediatamente
(Lv 24,11-14). A indignação dos escribas pode parecer uma defesa da ortodoxia,
mas na verdade, visa salvaguardar a economia. Para receber o perdão dos
pecados, de fato, o pecador tinha que ir ao templo e oferecer aquilo que o
tarifário das culpas prescrevia, de acordo com a categoria do pecado, listando
detalhadamente quantas cabras, galinhas, pombos ou outras coisas se deveria
oferecer em reparação pela ofensa ao Senhor. E Jesus, pelo contrário, perdoa gratuitamente,
sem convidar o perdoado a subir ao templo para levar a sua oferta.
“Perdoai e sereis perdoados” (Lc 6,37) é,
de fato, o chocante anúncio de Jesus: apenas duas palavras que, no entanto,
ameaçaram desestabilizar toda a economia de Jerusalém. Para obter o perdão de
Deus, não havia mais necessidade de ir ao templo levando ofertas, nem de
submeter-se a ritos de purificação, nada disso. Não, bastava perdoar para ser
imediatamente perdoado…
O
alarme cresceu, os sumos sacerdotes e escribas, os fariseus e saduceus ficaram
todos inquietos, sentiram o chão afundar sob seus pés, até que, em uma reunião
dramática do Sinédrio, o mais alto órgão jurídico do país, o sumo sacerdote
Caifás tomou a decisão. “Jesus deve ser
morto”, e não apenas ele, mas também todos os discípulos porque não era
perigoso apenas o Nazareno, mas a sua doutrina, e enquanto houvesse apenas um
seguidor capaz de propagá-la, as autoridades não dormiriram tranquilas (“Se deixarmos ele continuar, todos
acreditarão nele … “, Jo 11,48). Para convencer o Sinédrio da urgência de
eliminar Jesus, Caifás não se referiu a temas teológicos, espirituais; não, o
sumo sacerdote conhecia bem os seus, então brutalmente pôs em jogo o que mais
estava em seu coração, o interesse: “Não
compreendeis que é de vosso interesse que um só homem morra pelo povo e não
pereça a nação toda?” (Jo 11,50).
Jesus
não morreu pelos nossos pecados, e muito menos por ser essa a vontade de Deus,
mas pela ganância da instituição religiosa, capaz de eliminar qualquer um que
interfira em seus interesses, até mesmo o Filho de Deus: “Este é o herdeiro: vamos! Matemo-lo e apoderemo-nos da sua herança”
(Mt 21,38). O verdadeiro inimigo de Deus não é o pecado, que o Senhor em sua
misericórdia sempre consegue apagar, mas o interesse, a conveniência e a cobiça
que tornam os homens completamente refratários à ação divina. (Por
Alberto Maggi | Tradução: Francisco
Cornélio, no Outras Palavras).
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Alberto Maggi,
biblista italiano, frade da Ordem dos Servos de Maria, estudou nas Pontíficias
Faculdades Teológicas Marianum e Gregoriana de Roma e na Escola Bíblica e
Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversos livros, como A loucura
de Deus: o Cristo de João, Nossa Senhora dos heréticos
Francisco Cornélio,
sacerdote e biblista brasileiro, é professor no curso de Teologia da Faculdade
Diocesana de Mossoró (RN). Fez seu bacharelado no Ateneo Pontificio Regina
Apostolorum, em Roma. Atualmente, está em Roma novamente, para o doutorado no
Angelicum (Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino), onde fez seu mestrado