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Do Afreaka: O Egito Antigo e a África NEGRA


Representação de Piye, o Faraó Negro. Fonte: National Geographic.
Na Bíblia, no Antigo Testamento, mais especificamente no livro de Isaías, há muitas referências ao Antigo Egito, em uma delas encontramos: “Vai, mensageiro veloz, até o povo alto e bronzeado, ao povo sempre temido, à nação poderosa e conquistadora cujas terras os rios dividem”.

Apesar da ênfase nas características físicas, chamando os egípcios de “povo alto e bronzeado”, ainda hoje é necessário reafirmar o seguinte truísmo: o Antigo Egito, uma das mais conhecidas civilizações do mundo antigo, tão presente no imaginário das pessoas e tão desconhecido ao mesmo tempo, não era exclusivamente branco, ele era, também, negro e não existia somente com sua face virada para o Norte (Mediterrâneo) e Leste (Oriente Médio), mas também estava intimamente ligado ao seu entorno africano, especialmente o Sul.

Os motivos para um desconhecimento tão flagrante são muitos e vão desde as produções cinematográficas hollywoodianas, passando por novelas brasileiras, com súditos, reis e rainhas de olhos claros e cabelos lisos até trabalhos acadêmicos de muitos pesquisadores que escreveram toneladas de monografias e livros sobre o Antigo Egito esquecendo que este também estava inserido em um contexto africano. Trocando em miúdos, “contexto africano” quer dizer: em profunda relação com outros povos do continente.

Cena da novela "Os dez mandamentos", da Tv Record. Foto: Reprodução.
Mas porque é preciso repensar o Antigo Egito para além das delimitações e categorias tradicionais dos livros de história ou do cinema? Ora, porque tais delimitações foram estabelecidas séculos depois por olhares, quase sempre, estrangeiros: primeiramente grego – Heródoto, o “pai” da história, fez uma viagem ao Egito para relatar aquele “estranho” povo em que “homens urinam sentados e mulheres em pé” – e muito posteriormente pelos Estados nacionais europeus a partir do século XVI. Estes últimos interpretaram o Antigo Egito a partir de seus próprios anseios e filtros culturais, representando-o mais como um antepassado europeu, em seu estado infantil, do que como uma civilização diferente e intrinsecamente envolvida com a África.

Porém, a relação entre o Antigo Egito e a África Negra pode ser averiguada, antes de qualquer coisa, pela dependência egípcia do comércio africano de diversos produtos, como pedras preciosas e marfim, que chegavam via rotas comerciais milenares do Sul e através do Saara ao Oeste. E é sabido que onde há troca comercial há, também, troca cultural.

Pôster do filme "O Faraó", 1954.
Foto: Reprodução.
Na antiguidade, a região que hoje denominamos Sudão, por exemplo, sempre representou para os egípcios uma enorme fonte de mão de obra, de animais e de minerais. Os sudaneses, ou núbios, denominação dos povos que viviam nessa região, eram extremamente valiosos para a composição do exército, desempenhando um importante papel nas conquistas do Império durante boa parte da história do Antigo Egito. Os núbios eram famosos por suas habilidades com o arco e flecha. Seus feitos deixaram vestígios e podem ser vislumbrados em belas estatuetas encontradas no século XIX, na tumba de Mesehti em Asyut. Na ocasião daquela escavação, foram encontradas pequenas peças de madeira pintada representando arqueiros núbios e soldados com escudos e lanças, todos eles devidamente representados com feições negras.

A importância dos Núbios, porém, não se limitava aos arqueiros, mas também na ação de hábeis “burocratas” que auxiliavam os faraós em diversas funções administrativas do Império. Tal papel culminou com a ascensão de um faraó núbio, em torno de 740 a.C., que deu origem à uma dinastia “etíope” chamada Koushita, representada pelo faraó negro Piye, rei da XXV dinastia egípcia.

Estatuetas de madeira representando arqueiros núbios. Foto: Reprodução.
Entretanto, a ascensão de uma dinastia “etíope” é muitas vezes representada, em livros didáticos ou sites de História Antiga, como uma invasão estrangeira ou, pior, como a decadência de uma suposta pureza egípcia, porém, como sugere historiadores africanos como Hamid Zayed, tal “invasão” ocorreu, sobretudo, por causa das transformações internas das forças políticas e sociais decorrente das relações culturais hibridas entre o Antigo Egito e o seu entorno africano.

De qualquer forma, a dinastia “etíope” alargou a dimensão africana e ficou registrada não apenas nos sítios arqueológicos egípcios, mas também nos relatos de povos vizinhos, o que demonstra que os núbios se constituíram como parte da história do Egito e que assim devem ser reconhecidos.

Outra representação do Faraó Negro Piye. Fonte: National Geographic.

Além desse olhar mais abrangente, pode-se afirmar que a existência de rotas comerciais refletiu em um intenso fluxo cultural entre as diversas regiões africanas transbordando, até mesmo, para as margens do deserto do Saara ao Oeste e Sul. É o que parece demonstrar a existência de cultos análogos em diversas regiões da África, como a adoração ao carneiro, animal sagrado de Âmon, adorado no sul distante de Kush e também entre os Ioruba e os Fon, bem como o intrigante parentesco entre o hausa, o wolof ou o songhai, línguas faladas na África Ocidental, como  o egípcio, que era falado há cinco mil anos.

Em suma, pode-se chegar à conclusão que os estudos da História Antiga devem um maior olhar para a África na antiguidade, para além mesmo das representações consagradas do Antigo Egito.

Um Egito Negro incomoda muita gente


A lista de mulheres reais egípcias representadas por atrizes brancas é praticamente infindável. Pensemos apenas nas cleópatras desde Helen Gardner, Theda Bara e Claudette Colbert. Passando por Vivien Leigh e Sophia Loren, Lyz Taylor e Monica Bellucci até Kate Perry e agora… Angelina Jolie, que já foi mostrada como uma blackface sempre é bom lembrar. O produtor do filme declarou que a atriz tem o ~visual perfeito~ insistindo na farsa de que Cleópatra era branca. Bastante apropriado agora que foi comprovado que a rainha era de fato ~negra~. Sigamos.

Gina Torres como Cleópatra. 
Há quem diga com bastante cinismo que pensar num Antigo Egito Negro é ~tudo confusão com os núbios~, uma civilização negra também próxima ao Nilo. ~Não eram negros, mas brancos de pele morena~. Sim, nesses termos e com essas palavras, pode pesquisar. Parece coisa do século 19 mas não é. Um erro dessa natureza e magnitude não acontece por má fé ou ignorância, só a irresponsabilidade intelectual e o racismo explicam. A proposta aqui é outra, tomar como ponto de partida essencial A origem dos antigos egípcios de Cheikh Anta Diop, texto que integra a coleção História Geral da África (Unesco).

Ali são reunidos relatos dos historiadores clássicos que descreveram um povo negro.Também são mostradas evidências sobre a proximidade entre o antigo idioma egípcio e o walaf, de origem senegalesa e ainda em uso. E o mais importante, Diop explica que os antigos egípcios representaram a si mesmos imagética e literalmente como um povo negro por meio da palavra <3 KMT<3 que significa nada menos que preto como carvão, coisa mais que linda. Daí teria surgido a personagem bíblica de Cam. Apesar de tantas evidências…

Um Egito Negro incomoda muita gente porque a África é um continente de conquistas e feitos, onde se produziu e se produz arte, ciência, tecnologia, filosofia. Porque é fonte de orgulho, de deleite. A solução para esse incômodo foi espalhar por aí que a Antiga Grécia é o berço de nossa civilização, esquecendo que tudo aquilo que os gregos produziram não foi um milagre que aconteceu por geração espontânea. Que é impossível deixar pra lá que a África e em especial o Antigo Egito (que até mesmo para os antigos gregos era uma antiga civilização) tem um papel mais que central nessa estória.

Uma pista muito simples nos oferece a magnitude do problema. Foram os antigos egípcios que inventaram uma das primeiras mídias portáteis do mundo, o papiro. Não por caso Alexandria tinha uma das maiores bibliotecas do mundo antigo. Mas teria sido um grego Calímaco durante uma viagem à cidade egípcia que ~inventou~ o primeiro sistema de catalogação de livros, muito similar ao que é usado pela biblioteca do congresso norte-americano e que foi utilizado por Roma. Mais uma vez, o Egito Antigo Negro e portanto a África tem seu conhecimento extirpado para outro continente e se tornam apenas uma citação. O nome disso pra mim é roubo.

Usurpar patrimônio africano não basta, também é necessário embranquecer seus sujeitos. Tanto na série José do Egito (atualmente em reprise pela Record) quanto em Êxodo: Deuses e Reis as personagens são majoritariamente brancas. Os realizadores são incapazes de reconhecer que todo um complexo sistema de crenças, filosofia, arte, arquitetura, astronomia e medicina são coisas de preto. Qualquer movimento diferente disso, mesmo a simples hipótese de que os antigos egípcios era negros, é vandalismo demais para aguentar.

O que acontece em José do Egito não é nenhuma novidade, o racismo não precisa inventar a roda. As personagens masculinas retratando antigos egípcios quase sempre são blackfaces como é o caso do novo Ramsés de Ridley Scott em Êxodo: Deuses e Reis. O ator escalado para o papel é ninguém menos que Joel Edgerton que até onde sei, tem olhos azuis , é loiro. A solução foi reeditar a maquiagem usada pelo russo Yul Brynner em Os dez mandamentos, com muita cobertura de pele para sugerir o bronzeado de quem passa muito tempo tomando sol, jamais um tom de pele indiscutivelmente negro.

Também é esperado que o faraó seja amargurado e invejoso, jamais um grande estadista e estrategista. Contra o único deus possível, à imagem e semelhança de um homem branco, um líder negro se torna herege, um perdedor. Por outro lado, também é quase certeza que a educação egípcia de Moisés seja menosprezada, algo que está em completa oposição ao deus verdadeiro. As entidades egípcias e sua influência precisam ser destruídas, pelo menos em tese, para que apareça um novo deus em quem se pode acreditar.

Para Hollywood também é perfeitamente possível que a realeza egípcia seja branca, enquanto assassinos, ladrões e populares são negros, vide Êxodo: Deuses e Reis. O que está por trás dessa manobra é a ideia racista de que a nobreza egípcia não poderia ser africana mesmo que inexistam evidências de que a origem desses indivíduos, nobres ou plebeus, esteja fora da África. Aliás, ainda que se reconheça que nessa sociedade pessoas de diferentes tons de pele conviveram, não há registros de que houvesse qualquer segregação motivada pela cor da pele.

As antigas mulheres egípcias são todo um caso a parte, tanto no cinema e na televisão. Sempre muito brancas, de acordo com um padrão de beleza racista, delicado como porcelana. No contexto de uma civilização do deserto, a sugestão sexista é a de que o território da mulher não a cidade como acontece com muitas personagens femininas de José do Egito. Também é comum que seu papel político seja diminuído à intrigas motivadas pelo amor e pela paixão ao exemplo de Nefertari em Os dez mandamentos. Uma das maiores rainhas egípcias parece não ter nada mais a fazer do que sentir ciúmes de Moisés.

Para Ridley Scott, a rainha negra que adotou Moisés (Tuya) é a atriz Sigourney Weaver. Antes que me digam que estou de implicância, até mesmo a Disney Dreamworks a retratou como negra. O recado de Hollywood é cristalino – não há espaço para todas as atrizes como Viola Davis cuja atuação provocaria lágrimas e ranger de dentes mas seria fundamental para o empoderamento de mulheres negras como eu e você que também somos deusas e rainhas. Na verdade não precisamos pensar muito. Termino com a lembrança e a ótima sensação proporcionada pela Cleópatra interpretada por Gina Torres em Xena.



A análise é de Charô Nunes e foi publicado originalmente no Blogueiras Negras