![]() |
Clóvis Moura. (FOTO | Reprodução |Adande). |
Clóvis Steiger de Assis Moura foi um intelectual negro sui generis. Ao longo da vida, dedicou-se a diversas atividades como jornalista, poeta, historiador, sociólogo e pensador marxista. Clóvis Moura nasceu em Amarante, município do estado do Piauí, em 10 de junho de 1925. Portanto, neste ano de 2025, completa-se o centenário de seu nascimento.
Em
virtude da importância desse intelectual para o pensamento social brasileiro,
vários eventos e atividades em homenagem a ele estão previstos para ocorrer ao
longo do ano, dos quais destaco as publicações (duas coletâneas serão editadas,
inclusive o autor deste artigo está na organização de uma dessas coletâneas),
uma exposição virtual, que pretende recontar aspectos da sua biografia e da sua
produção intelectual e militância política; e um seminário de estudo e
formação, cujo intuito é reunir especialistas na sua obra e no seu pensamento.
No
que diz respeito ao percurso de vida de Clóvis Moura, quando criança, ele se
mudou com a família para a cidade de Natal. Durante a adolescência, nova
mudança familiar; desta vez, para Salvador, cidade onde ele se integrou a
círculos de jovens intelectuais soteropolitanos. No decorrer da década de 1940,
residiu um período em Juazeiro, sertão baiano, quando ingressou no Partido
Comunista Brasileiro (PCB) e se intensificaram seus interesses literários,
políticos e intelectuais. Dali ele se transferiu para São Paulo, fazendo
carreira como jornalista, em variadas funções e em distintos veículos de
comunicação, na capital e no interior.
Paralelamente
ao jornalismo, dedicou-se às atividades políticas e intelectuais. Em 1959,
publicou o seu primeiro livro, Rebeliões da senzala, que apresentava uma
abordagem inovadora: apreender a experiência negra no Brasil à luz do
materialismo histórico. O livro procurou contrapor-se à concepção de que, no
Brasil, engendraram-se relações escravistas harmoniosas, uma antiga ideia
ressoada por Gilberto Freyre no início da década de 1930.[i]
Tomando
a dinâmica da sociedade escravista pela chave da violência e, sobretudo, da
resistência ao regime de cativeiro, Clóvis Moura centrou o seu olhar nas
revoltas e nos quilombos em várias regiões do Brasil, suas formas de
organização, seus projetos de liberdade, suas estratégias de luta, suas
relações com a sociedade envolvente e com outros movimentos sociais e
políticos. Além de apontar a rebeldia quilombola como expressão da contradição
fundamental do sistema escravista, Moura destacava o papel ativo da população
negra na formação civilizacional da nação, não só do ponto de vista cultural,
mas também do social, político e econômico.
Após
isso, ele publicou outras obras, como Introdução ao pensamento de Euclides da
Cunha (1964), O preconceito de cor na literatura de cordel (1976), O negro: de
bom escravo a mau cidadão? (1977), A sociologia posta em questão (1978) e
Diário da guerrilha do Araguaia (1979). Em fins da década de 1970 e início da
de 1980, Clóvis Moura se aproximou de setores do Movimento Negro, que o
reconhecia como um dos grandes mentores intelectuais. Este processo de diálogo
entre Moura e os ativistas negros se estreitou nas décadas de 1980 e 1990,
quando novas publicações vieram a lume: Quilombos e a rebelião negra (1981);
Brasil: as raízes do protesto negro (1983); Quilombos: resistência ao
escravismo (1987); Sociologia do negro brasileiro (1988); História do negro no
Brasil (1989) e As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira
(1990). Seus últimos livros foram: A sociologia da guerra camponesa: de canudos
ao MST (2000), A encruzilhada dos orixás: problemas e dilemas do negro
brasileiro (2003) e, postumamente, Dicionário da escravidão negra do Brasil
(2004).
A
obra de Clóvis Moura é um registro original da agência negra na história do
Brasil, questionando os postulados da historiografia e sociologia tradicionais,
que tenderam a escamotear ou secundarizar o papel desse segmento populacional
na formação e desenvolvimento da nação. Além de demonstrar a participação
proativa das pessoas de origem africana na construção da sociedade brasileira,
Clóvis Moura procurou inventariar a tradição radical negra em sua batalha
incansável, ora pela conquista da liberdade no período da escravidão; ora pela
conquista da igualdade no campo dos direitos e da cidadania, no período do
pós-Abolição.
Clóvis
Moura faleceu na cidade de São Paulo, em 2003, deixando uma vasta obra.
Intelectual erudito, não teve durante a vida o devido espaço no mundo
acadêmico, nem o justo reconhecimento na história da intelectualidade negra
brasileira. Talvez porque ele fosse um ponto fora da curva. Marxista, propugnou
a construção de uma sociedade igualitária e jamais descolou a luta antirracista
da luta classista, o que o fez crítico dos paradigmas que acentuavam o
reconhecimento da questão racial brasileira desvinculada da formação
capitalista ou, antes, articulavam o antirracismo dissociado de um projeto
emancipatório, de transformação estrutural da sociedade.
Ultimamente,
porém, a vida, a obra e o pensamento de Clóvis Moura têm sido estudados e
discutidos em diversas pesquisas (de mestrado, doutorado, artigos de
periódicos, capítulos de coletâneas, livros monográficos e até mesmo uma
biografia), em diferentes áreas, a partir de distintos pontos de vista. Sua
obra vem sendo reeditada, dossiês dedicados a ele têm sido publicados, como o
da revista Lutas Sociais (PUC-SP), nos dois números de 2023; e uma série de
debates e eventos, de caráter acadêmico e político, tem acontecido,
repertoriando a sua importância, tanto para o pensamento social brasileiro,
quanto para os embates em torno de raça e classe.
Que
neste ano do centenário de Clóvis Moura se aprofunde esse processo de
reconhecimento à altura desse intelectual negro, que foi um intérprete
relevante do Brasil e legou uma profícua contribuição para se pensar os
dilemas, impasses e desafios da nação. Sua postura crítica sinaliza que, para
além de se mergulhar no passado a fim de compreender melhor o presente, é
possível vislumbrar outro futuro: de um Brasil mais inclusivo, democrático e
equânime.
____
Texto de Petrônio Domingues, originalmente no Instituto Búzios.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!