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Processos por racismo aumentam 64% no Brasil. (FOTO | Guito Moreto). |
Para a gerente de uma pet shop de Salvador, Camilla Ferraz Barros se identificou como juíza, disse que poderia prendê-la e a chamou de “petista, baixa e preta”, ao reclamar do atendimento. A repercussão de um vídeo das ameaças feitas no sábado nas redes sociais levou à revelação de que Camilla na verdade é enfermeira e, em seguida, à perda de seu emprego em um hospital. A enfermeira também vai responder a um inquérito por injúria racial, agressão e ameaça. Mas, embora a polícia e a Justiça sejam cada vez mais buscadas para denunciar casos de racismo, as punições podem não ser tão rápidas quanto a demissão de Camilla.
Dados
do Painel de Monitoramento Justiça Racial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
apontam que no ano passado o Brasil registrou o maior número de processos sobre
racismo: foram 5.552, uma alta de 64% em relação a 2023. Advogados e promotores
que acompanham processos sobre o tema dizem que a maior conscientização sobre
como o racismo pode se manifestar na prática, e como ele pode ser punido, está
ligada a esse aumento. Mas os processos ainda são lentos e as punições são
brandas: geralmente, acabam em indenizações ou penas alternativas como doações
de cestas básicas.
Desde
que o CNJ começou a registrar processos por racismo, em 2020, as ações penais
aumentaram mais de 4.100%. O número do ano passado foi recorde, e outubro foi o
mês com mais ações, com a abertura de 745 processos, mais do que o dobro do
contabilizado no mesmo período em 2023. No entanto, o país tem 12.095 processos
criminais por racismo pendentes de julgamento. A maioria (98%) tramita na
Justiça estadual.
Cestas de R$ 100
O
bancário L., de 38 anos, que preferiu não se identificar, processou uma cliente
que o chamou de “macaco” em julho de 2020. A ação criminal demorou dois anos
para ser julgada, e resultou na condenação ao pagamento de oito cestas básicas
no valor de R$ 100, além de prestação de serviço à sociedade. Um processo por danos
morais está em andamento.
—
Vemos tantos casos que ficam impunes, mas denunciei porque queria causar ao
menos algum desconforto na agressora, para que ela ficasse ao menos
constrangida de ter cometido um crime. Quis acreditar que ela seria penalizada
de algum modo — afirma.
No
caso de Amanda Pereira, há quase dois anos a estudante de 16 anos e seus
parentes aguardam o julgamento de um processo movido contra uma loja no
Shopping Praça da Moça, em Diadema, na Região Metropolitana de São Paulo. Em
janeiro de 2023, Amanda foi acusada de roubo por uma vendedora e levada até uma
sala isolada para ser revistada por seguranças. Depois de ficar constatada a
inocência da estudante, os pais denunciaram o estabelecimento em busca de
reparação. Na esfera criminal, o caso foi arquivado por falta de provas, mas a
ação por danos morais ainda aguarda julgamento.
—
Minha filha menor de idade foi abordada e levada para uma sala sozinha porque
estava olhando presentes na loja com o irmão e primos, que também são negros.
Depois o segurança pediu desculpas, mas isso não basta. Minha filha ficou
traumatizada. Nenhum dinheiro anula o ocorrido, mas é uma forma de justiça —
afirma Jorge Pereira.
Em
nota, o Shopping Praça da Moça informou que “está alinhado com os princípios universais de ética e diversidade”
e ressaltou que “a situação ocorreu entre
a loja e a denunciante”.
“Reiteramos que o processo não envolve o
centro de compras. O empreendimento repudia qualquer ato de discriminação e
preconceito”, concluiu o comunicado.
Para
o advogado Estevão Silva, presidente da Associação Nacional da Advocacia Negra
(Anan), um dos fatores que contribuem para a morosidade é o fato de o
Judiciário não tratar como prioridade casos de discriminação.
—
Grande parte dos processos, não somente de racismo, enfrenta lentidão porque há
uma sobrecarga geral do Judiciário. No entanto, apesar de haver cobranças de
instituições e da sociedade, não há ações efetivas dos tribunais, também por
ser um ambiente majoritariamente branco. Tirar um mês voltado a priorizar esses
casos, como ocorre com a Lei Maria da Penha (que pune a violência contra a
mulher), seria uma boa saída para desafogar as pendências. A Justiça precisa
criar soluções para não cair no descrédito — defende.
Bahia tem mais ações
Estado
com a maior proporção de pessoas pretas, segundo o Censo 2022 do IBGE, a Bahia
onde Camilla ameaçou a funcionária da pet shop teve o maior número de ações por
racismo abertas em quatro anos, com 4.693 processos. Em seguida vêm Pernambuco,
com 1.009, e Paraná, com 777 casos. Metade das vítimas desses crimes tem entre
26 e 45 anos, e 57% são mulheres.
De
acordo com a promotora de Justiça no Ministério Público da Bahia Lívia
Sant’Anna Vaz, a trajetória dos movimentos negros na luta por igualdade racial
confluiu, no ano de 2020, para uma maior visibilidade e debate público sobre o
tema. Sobretudo a partir das mortes de George Floyd, em 25 de maio de 2020, nos
Estados Unidos, e de João Alberto Silveira Freitas, no mesmo ano, em Porto
Alegre, no dia 19 de novembro, véspera do Dia da Consciência Negra.
A
promotora diz que a evolução da legislação antirracista no Brasil também
contribuiu para o crescente no número de processos:
— O
Brasil deu passos relevantes para o enfrentamento ao racismo, envolvendo:
renovação e aperfeiçoamento das cotas raciais, alterações na legislação
criminal tendentes a uma efetiva responsabilização por práticas racistas,
absorção da Convenção Interamericana contra o Racismo no texto constitucional,
adoção de ações afirmativas, protocolos de julgamento e pactos antirracistas no
sistema de justiça — enumera Lívia.
No
Brasil, o racismo é considerado um crime inafiançável e imprescritível,
conforme a Constituição. Em 2023, a legislação foi atualizada para equiparar a
injúria racial — quando alguém ofende a honra de outra pessoa com referência à
sua raça, cor ou etnia — ao crime de racismo. Em 2019, o Supremo Tribunal
Federal reconheceu que homofobia e transfobia são equiparáveis ao racismo.
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Texto de Pâmela Dias, originalmente no O Globo e replicado no Geledés.
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