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Cena urbana no Rio de Janeiro escravocrata do século 19, pintada por Jean-Baptiste Debret | Foto: Acervo Espaço Olavo Setubal/Itaú Cultural. |
Em
1883, Rita entrou com uma ação na Justiça da Imperial Cidade de São Paulo
contra o Tenente Julio Nunes Ramalho. Poderia ser mais um processo qualquer,
não fosse um fato notável: Rita não era considerada cidadã pela lei brasileira.
Era escrava. Já o Tenente Ramalho era seu proprietário. O objeto do caso era o
interesse de Rita de comprar sua liberdade.
De
Rita, a Justiça sabia pouco. Não tinha sobrenome, nem idade certa – “38 anos
aproximadamente”. As informações eram apenas que tinha aptidão para o trabalho
e era cozinheira, escravizada por Ramalho.
Por
não ser livre, Rita não tinha direito a procurar a Justiça diretamente e
precisou de um intermediário para representá-la. Tendo obtido uma doação de 200
mil réis “em moeda corrente deste Império”, queria comprar sua alforria. Pedia,
então, que seu proprietário fosse intimado para declarar se aceitava ou não a
quantia. Seu representante conclui o pedido dizendo que o fazia “a rogo da
suplicante, que não sabe escrever”.
O
Brasil estava mudando. Depois de mais de três séculos, a escravidão se
aproximava do fim. Em 1850, havia sido proibido o tráfico negreiro. Em 1871,
foi aprovada a Lei do Ventre Livre, que estabeleceu a liberdade para filhos de
mulheres escravizadas nascidos dali em diante – como o menino Benedito, a quem
Rita deu à luz três anos após a lei.
Além
disso, a Lei do Ventre Livre deu às pessoas escravizadas o direito de juntar
dinheiro – fosse fruto de doações, do próprio trabalho ou de economias – e, com
ele, comprar sua própria alforria, independentemente da autorização do seu
proprietário.
Essa
alteração legal multiplicou nos tribunais as chamadas ações de liberdade. A de
Rita é uma delas. Está armazenada no Acervo Público do Tribunal de Justiça de
São Paulo, junto com dezenas de outros processo centenários, em papel
envelhecido e texto manuscrito, movidos por pessoas escravizadas contra seus
senhores. Além de São Paulo, há casos semelhantes em diversos pontos do país.
“A
ação de liberdade quebra a autoridade senhorial, porque passa a existir uma
forma de se libertar da escravidão independentemente da vontade do senhor”,
afirma a historiadora Keila Grinberg, professora da Unirio e da New York
University, e uma das maiores especialistas neste tema no Brasil.
“Isso
quebra o mito de que a alforria era apenas uma forma de reconhecimento do
senhor (aos seus escravos). Nada disso! Eles também foram para a Justiça para
conquistar sua liberdade”, completa Lúcia Helena Silva, professora da Unesp,
que pesquisou as ações de liberdade em Campinas.
Porém,
as ações de liberdade não eram um caminho fácil. “Apenas a minoria das pessoas
escravizadas conseguia entrar na justiça. A maioria dos escravos nascia e
morria escravo”, pondera Grinberg.
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Pilha de ações impetradas por pessoas escravizadas no final do século 19, parte do Acervo do Tribunal de Justiça de São Paulo | Foto: Amanda Rossi/BBC Brasil |
Negociação
na Justiça
Junto
ao pedido de Rita, foi anexado um atestado médico: “Atesto que a preta Rita
sofre de anemia e de artrite crônica, moléstias que por muitas vezes a
inabilitam para qualquer trabalho”. A informação tinha um objetivo estratégico.
“Normalmente, o escravo usava a estratégia de se desvalorizar”, explica Lúcia
Helena Silva.
“Já
o senhor fazia tudo possível para dizer que seu escravo valia muito”. No caso
de Rita, o Tenente Ramanho respondeu à intimação dizendo que não aceitava os
200 mil réis oferecidos. “Considero ser de maior valor a minha escrava. Há três
meses, a comprei pela quantia de 800 mil réis”.
Quando
não havia concordância sobre o valor da liberdade, como no caso entre Rita e
Ramalho, não era o fim do processo. Cabia ao Estado fazer a arbitragem do
preço, que as duas partes seriam obrigadas a aceitar. Para isso, o primeiro
passo era a pessoa escravizada ser mandada para uma avaliação.
“Depois
de haverem examinado a dita escrava Rita, tendo em consideração a idade, saúde
e profissão da mesma, (os avaliadores) apresentam os seguintes laudos: Salvador
avaliava-a em 500 mil réis. Fernando em 320 mil réis. Em consequência da
divergência havida, foi aceito o laudo de 320 mil réis”.
O
resultado da avaliação foi uma vitória para Rita. O valor estava mais próximo
dos 200 mil réis que ela tinha proposto do que dos 800 mil réis pedidos por seu
senhor. Por intermédio de seu representante livre, Rita apresentou à Justiça os
120 mil réis que estavam faltando e requereu “que lhe fosse passada a carta de
liberdade”.
Depois
de três meses na Justiça, Rita, que nasceu submetida à escravidão no Brasil, se
tornou finalmente uma mulher livre.
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Pintura de Jean-Baptiste Debret retrata desembargadores chegando ao Palácio de Justiça no Rio de Janeiro | Foto: Acervo Espaço Olavo Setubal/Itaú Cultural |
Redes
de apoio nas cidades
“Apesar
de o Estado e suas leis abrirem portas para dar visibilidade a questões dos
escravos, não era fácil iniciar um processo judicial e, menos ainda,
terminá-lo”, explica a historiadora Heloísa Maria Teixeira, que pesquisou a
compra de alforrias em Mariana, Minas Gerais.
Em
geral, os escravos que recorriam à Justiça viviam nas cidades. Ali, tinham mais
acesso a informação. Também podiam receber apoio de redes de solidariedade,
formadas por outras pessoas escravizadas e libertas, além de terem contato com
ideias e movimentos abolicionistas. Já para aqueles escravizados na zona rural,
entrar na Justiça era muito mais difícil.
Ao
consultar os documentos mineiros, Heloísa encontrou o caso da menina Eva,
escrava de “mais ou menos 14 anos”, nascida na década de 1850. Sua história
mostra como o fato de estar na cidade facilita o surgimento de uma rede de
apoio.
A
madrinha de Eva, que não tinha dinheiro, passou a pedir esmolas na cidade com o
intuito de libertar a menina. O processo de Eva, inclusive, elenca uma lista de
pessoas que participaram da arrecadação de fundos para compra de sua liberdade.
Ao final, a madrinha conseguiu reunir 120 mil réis em dinheiro. O valor foi
complementado por um burro entregue pelo pai da menina, no valor de 80 mil
réis. Com os 200 mil réis totais, foi comprada a carta de alforria de Eva.
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Capa da ação de liberdade da escrava Rita contra o Tenente Ramalho | Foto: Amanda Rossi/BBC Brasil |
Além
de processos de compra de alforria, houve no Brasil diversas ações de liberdade
baseadas na ilegalidade da escravidão. Em 1883, por exemplo, Antonio – também
sem sobrenome – entrou na Justiça de São Paulo argumentando que sua matrícula
de escravo informava ser ele africano e ter 51 anos.
Logo,
Antonio teria nascido na África em 1832. Porém, uma lei brasileira de 1831
declarou que era livre todo o escravo vindo de fora do Império do Brasil a
partir daquela data. Foi a primeira legislação a tentar coibir o tráfico de
pessoas escravizadas para o Brasil. Desta forma, como Antonio nasceu depois da
lei, ele havia sido trazido para o país de forma ilegal. Por consequência, sua
escravidão também era ilegal.
Seu
proprietário tentou contra-argumentar. Afirmou que a matrícula do escravo
estava errada e que, na verdade, ele tinha nascido cinco anos antes da lei. Em
termos práticos, isso faria com que Antonio não tivesse direito à liberdade.
Por outro lado, essa linha de argumentação implicaria o reconhecimento de que
um menino de cerca de 5 anos tivesse sido transportado nos navios negreiros e
vendido ainda criança no Brasil.
Mas
a argumentação do dono de Antonio não foi bem sucedida. O juiz do caso concedeu
a carta de liberdade ao “africano”. Mas sob a condição estabelecida pelo
proprietário: de que o agora ex-escravo prestasse serviços por mais quatro anos
para seu antigo senhor e sua esposa. Assim, Antonio ficaria livre apenas em
1887 – um ano antes da Lei Áurea ser sancionada pela Princesa Isabel,
decretando oficialmente o fim da escravidão no Brasil.
“Esses
juízes e tribunais não eram abolicionistas. Tomavam a decisão baseados naquele
caso específico. Ninguém ali estava defendendo o fim da escravidão”, diz
Grinberg.
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Serviços de barbeiros, cabelereiros, vendedoras – retratados nesse pintura de Debret – eram formas de juntar dinheiro para a alforria | Foto: Acervo Espaço Olavo Setubal/ Itaú Cultural |
Dificuldade
para juntar dinheiro
As
pessoas escravizadas nas zonas urbanas também tinham mais possibilidade de
juntar dinheiro para comprar sua liberdade. Alguns deles, além do trabalho
forçado, realizavam pequenos serviços remunerados. As mulheres, por exemplo,
vendiam quitutes, hortaliças, eram babás, amas-de-leite, lavadeiras. Os homens eram
sapateiros, barbeiros, carregadores.
Nas
cidades, também eram mais comuns os chamados “escravos de ganho” – quando as
pessoas escravizadas prestavam serviços para terceiros, sendo obrigadas a
entregar o dinheiro para seus proprietários, ficando apenas com uma pequena
parte.
Ainda
assim, não era nada fácil que esses trabalhos rendessem o suficiente para
comprar a alforria. Em geral, no final do século 19, o preço da liberdade
variava de 200 mil réis a 2 contos de réis (equivalente a 2 milhões de réis). “A
maior parte das pessoas não deve ter conseguido juntar o suficiente. Depois que
o tráfico foi proibido, o preço do escravo subiu ainda mais”, explica Grinberg.
E
onde os escravos guardavam dinheiro? Uma das possibilidades era colocar na
poupança.
Documentação
histórica da Caixa Econômica, ainda pouco estudada, mostra diversas cadernetas
pertencentes a escravos. Fundada em 1860, a Caixa não permitia que pessoas não
livres fossem depositantes. Mas, após a Lei do Ventre Livre, em 1871, isso
mudou.
A
caderneta de poupança número 43 da Caixa Econômica de São Paulo, datada de
1875, pertencia a Judas, escravo de Manuel de Andrade. O formulário do banco
trazia a palavra “senhor” antes do nome do depositário. Mas, no caso de Judas,
a palavra foi riscada. Afinal, sua condição de pessoa escravizada impedia que
fosse tratado por “senhor”. Por isso também, Judas não tinha sobrenome
reconhecido.
Judas
tinha 54 anos, era hortelão, morava em São Paulo, era casado e não sabia ler e
escrever. Naquele ano, tinha juntado na poupança 24 mil réis. Muito distante
dos preços praticados pela liberdade naquela época.
“Pelos
valores depositados nas poupanças, a gente vê era que era muito difícil comprar
alforria com base nesse dinheiro. Mas existe, sim, uma relação entre poupanças
e compra de alforria, embora seja pouco”, fala Grinberg.
“De
toda forma, era algo significativo, porque mostra outras formas de resistência
à escravidão. Os escravos conseguiam brechas para entrar no sistema financeiro
e juntar dinheiro, apesar de tudo que era imposto a eles”, considera o
historiador Thiago Alvarenga, professor da Universidade Federal Fluminente, um
dos responsáveis por resgatar o arquivo de cadernetas de poupança do século 19
da Caixa Econômica.
Na
sua pesquisa, Alvarenga encontrou um caso intrigante: um homem escravizado que
tinha uma poupança de 4 contos de réis, valor que seria mais que suficiente
para comprar sua liberdade. “Pode ser que estivesse juntando dinheiro para
libertar várias pessoas da sua família”, considera o historiador.
Já
outras cadernetas de poupança da Caixa mostram a saída de dinheiro para comprar
a alforria. Um dos casos é o de Margarida Luíza, escrava de Joaquim José
Madeira, cuja conta foi encerrada três anos depois de criada, retirando os 353
mil réis acumulados para obter sua liberdade.
Embora
a historiografia já tenha desvendado muito sobre as diferentes formas de
resistência das pessoas feitas escravas no Brasil, ainda há perguntas sem
respostas e espaço para novas pesquisas.
“O
que não falta é documento da escravidão. Eles estão espalhados pelo Brasil em
cartórios, igrejas, tribunais, bancos, e precisam ser salvos, literalmente. E
isso se faz com política pública. São arquivos importantíssimos! Sem eles, a
gente perde a chance de conhecer melhor nossa história”, afirma Keila Grinberg.
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Texto
de Amanda Rossi, Da BBC.
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