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D. Pedro II recomendava a cadeia aos prevaricadores muito conhecidos do Supremo Tribunal. |
Realçar
as deficiências de nossa formação nacional não significa falta de patriotismo.
Bem ao contrário, tal procedimento é a condição sine qua non para que comecemos
a corrigi-las, abrindo assim novos rumos ao futuro deste país. O primeiro e
mais marcante desses vícios congênitos na formação da sociedade brasileira foi
o predomínio absoluto do interesse privado sobre o bem público;
incontestavelmente, o produto inelutável do espírito capitalista, que desde o
início animou o processo de nossa colonização.
Como
salientou o primeiro historiador do Brasil, Frei Vicente do Salvador, em sua
obra publicada em 1627, “nem um homem
nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem
particular”.
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Duarte Coelho em 1546; "Não sei se lhes chame povoadores ou lhes diga e chame salteadores". |
Para
tomarmos um só exemplo, a apropriação dos bens públicos pelos particulares não
representava à época escândalo algum, pois a confusão entre uns e outros fazia
parte do costume colonial. No Relatório apresentado em 1779 a seu sucessor, D.
Luís de Vasconcelos e Souza, o Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Brasil,
assinalou haver encontrado o Cofre Público do Rio de Janeiro em “grandíssima desordem”, e esclareceu: “Este cofre o tinha o tesoureiro na sua casa,
todo ao seu arbítrio”.
Por
sua vez, o Padre Antônio Vieira emprega análoga diatribe no Sermão alegórico de
Santo Antônio Pregando aos Peixes, pronunciado em São Luís do Maranhão, em
1654: “Importa que daqui por diante
sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o
apetite particular de cada um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a
muitos de vós diminuídos, vos venhais a consumir de todo”.
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Frei Vicente em 1627: ninguém aqui "zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular". |
O
segundo vício congênito da colonização portuguesa em solo americano foi fazer
do Brasil uma terra de degredo de criminosos. Para cá vieram desterrados os
autores dos mais graves crimes, conforme dispunha o Título CXL do Livro Quinto
das Ordenações Filipinas. Como declarou Duarte Coelho, primeiro Capitão-Geral
de Pernambuco, em carta enviada a Sua Majestade em 20 de dezembro de 1546, “não sei se lhes chame povoadores ou se lhes
diga e chame salteadores”.
O
fato é que o caráter delinquente do povo aqui instalado acabou por provocar a
endemia da corrupção, sobre a qual até há pouco os historiadores nacionais
faziam completo silêncio, em contraste com vários testemunhos de estrangeiros
que aqui habitaram.
O
inglês John Luccock, por exemplo, que aqui viveu dez anos no início do século
XIX, em seu livro Notas Sobre o Rio de Janeiro e Partes Meridionais do Brasil,
é categórico: “Raro se podia acreditar
nalguém, ainda mesmo em suas afirmações mais solenes; menos ainda os que
merecessem confiança, ainda mesmo após uma certa experimentação de sua
fidelidade. Imposturas e fraudes de toda a espécie eram tão comuns, sempre que
elas pudessem ser tentadas com a esperança da impunidade, que apenas provocavam
pequenos ressentimentos, transitórios e inoperantes”.
Sem
dúvida, a parte mais lastimável do serviço público durante o Brasil Colônia foi
o Judiciário. Sobre a generalidade dos casos de prevaricação de magistrados no
período colonial, é farta a documentação, constante dos ofícios de presidentes
dos Tribunais da Relação da Bahia e do Rio de Janeiro no século XVIII.
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Padre Vieira em 1654: "Importa que daqui por diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum". |
A
razão dessa corrupção generalizada resumiu-a o Visconde do Lavradio, no
Relatório apresentado a seu sucessor no vice-reinado do Brasil: “Os ordenados de todos estes ministros são
pequenos, e eles a sua principal ideia é a de não se recolherem uns com menos
cabedais do que se recolheram os outros”. Entenda-se: esse “recolhimento” é
a volta a Portugal.
Enfim,
como bem explicou o francês Auguste de Saint-Hilaire num de seus múltiplos
livros sobre o Brasil, “em um país no
qual uma longa escravidão fez, por assim dizer, da corrupção uma espécie de
hábito, os magistrados, libertos de qualquer espécie de vigilância, podem
impunemente ceder às tentações”. O fato é que a corrupção do Judiciário
perdurou inabalada muito depois de encerrado o período colonial.
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O Marques Lavradio ao esclarecer as razões da corrupção: "Os ordenados dos ministros são pequenos". |
Ao
final do seu reinado, D. Pedro II teve ocasião de desabafar com o Visconde de
Sinimbu, a respeito do mais importante tribunal do País: “A primeira necessidade da magistratura é a responsabilidade eficaz; e
enquanto alguns magistrados não forem para a cadeia, como, por exemplo, certos
prevaricadores muito conhecidos do Supremo Tribunal de Justiça, não se
conseguirá esse fim”.
Teremos
hoje logrado abolir todo abuso ou desvio de poder no quadro do Poder
Judiciário? Tenho sérias dúvidas a esse respeito. Tomemos, por exemplo, o
Supremo Tribunal Federal, que atua no ápice do sistema judiciário. Sua função
precípua consiste na “guarda da
Constituição” (Constituição Federal, art. 102, inciso I), a qual assegura “a todos, no âmbito judicial e
administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a
celeridade de sua tramitação” (art. 5º, inciso LXXVIII).
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Saint-Hilaire: a escravidão fez da corrupção uma espécie de hábito e os magistrados cedem às tentações. |
É,
porém, frequente que um ministro do Supremo, na qualidade de relator, uma vez
encerrada a instrução do processo, ou ao receber um recurso, decida reter os
autos durante anos, a seu bel-prazer; ou, então, que peça vista dos autos
durante uma sessão de julgamento e os enfurne pelo tempo que quiser, sem dar
satisfação a ninguém, com o claro objetivo de impedir a votação da matéria.
Quem
teria poder para impedir esse abuso e punir o ministro faltoso? Absolutamente,
ninguém. Esse tribunal e seus integrantes não estão sujeitos a poder algum.
Pelo menos neste mundo dos seres vivos. (Com informações de CartaCapital).
*Professor emérito da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.
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