28 de maio de 2023

Pesquisa mostra que apenas 15% dos jovens acima de 16 anos estudam

 

(FOTO | Reprodução).

Pesquisa revela o que leva alunos a deixarem a escola. O levantamento foi realizado pelo Sesi e Senai e aponta que apenas 15% dos brasileiros com mais de 16 anos estudam atualmente em alguma instituição de ensino. Foram ouvidas 2 mil pessoas em todo o país.  

Entre os que não estudam, apenas 38% alcançaram a escolaridade que desejavam; e 57% não tiveram condições de continuar os estudos por diferentes motivos, sendo o principal deles, 47%, a necessidade de trabalhar e manter a família. 

Os números apontam ainda que a razão para 18% dos jovens, de 16 a 24 anos, deixarem de estudar foi gravidez ou nascimento de filhos. A evasão escolar é maior entre mulheres, com 13%; moradores do Nordeste, 14%; e das capitais, 14%. O dobro da média nacional, que é de 7%.  

Geralda Rodrigues dos Carmo cresceu em Itaporanga, no interior da Paraíba. Veio para o Distrito Federal na adolescência. Ao longo desse tempo, trabalhou como empregada doméstica e auxiliar de serviços gerais. Aos 43 anos, mãe de três filhos, Geralda conta que nunca frequentou a escola e fala da falta que o estudo faz na sua vida.  

O diretor-geral do Senai e diretor-superintendente do Sesi, Rafael Lucchesi, explica que a pesquisa mostra que é preciso melhorar a educação no país. 

Os entrevistados pelo Sesi e Senai apontam que a alfabetização deve ser prioridade para o governo, com 23%; seguida pelas creches, com 16%; e ensino médio, 15%. 

Além disso, a alfabetização teve a pior avaliação de qualidade; e o ensino técnico foi o mais bem avaliado. Já a educação pública é vista como boa ou ótima por 30% da população, índice que sobe para 50%, na educação privada.

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Com informações da Agência Brasil e Notícia Preta.

27 de maio de 2023

Temendo perder não é possível vencer

 

(FOTO | Joédson Alves | Agência Brasil).
 

Por Fábio José, historiador

Certa vez, em uma entrevista, o falecido jornalista Clóvis Rossi falou: “A sabedoria convencional teme o radicalismo do PT; eu temo a moderação” (CULT, 2002, p.13). Ele referia-se ao primeiro governo de Lula, mas as palavras não caberiam também para o terceiro?

Há poucas semanas, escrevi um artigo no qual tratei do tema do medo da mudança que se apodera de setores progressistas, que apoiaram a eleição de Lula para mudar o Brasil e, agora, quase inexplicavelmente, temem lutar pelas transformações necessárias.

Atribui-se ao técnico de futebol, Vanderlei Luxemburgo, a frase “O medo de perder tira a vontade de ganhar”. Certamente, é uma frase que pertence ao universo do senso comum, e que o treinador ajudou a tornar ainda mais popular. A questão é: o que isso tem a ver com esta discussão?

Foi observado em várias ocasiões, ao longo da história, como o temor pela mudança e o medo de perder não são bons parceiros, nem na vida nem na política. O governo provisório, na velha Rússia do começo do ano de 1917, de tanto temer pôr em prática a decisão de tirar o país da guerra, perdeu autoridade e não demorou a sair da cena histórica, apesar do grande prestígio de que gozou inicialmente. O medo de João Goulart de um derramamento de sangue no Brasil, em larga medida, o impediu de coordenar a resistência ao golpe de 1964, cujos desdobramentos tingiram-se de sangue.

Evidentemente, o governo Lula não é o governo provisório nem o de Goulart, nem o Brasil de hoje é o de 1964 e, muito menos, a velha Rússia imediatamente pós-queda do czarismo. Trata-se de estabelecer analogias históricas para recordar ao leitor o quanto o medo paralisante não é uma boa saída política.

Nesse momento, diante de concessões que faz Lula da Silva ao “mercado’ e ao parlamento – dominado por forças de direita e extrema-direita -, esses amplos campos de interesse reclamam anuência do governo, ainda mais, às pautas que eles defendem ardorosamente.

Nessa contenda, o país não jaz diante de um cenário irreversível. É possível enfrentar o rolo compressor das forças reacionárias e deter medidas que ferem o presente e o futuro das pautas que dizem respeito ao serviço público, aos servidores públicos, aos indígenas e ao meio ambiente, duramente feridos pelas últimas decisões da câmara dos deputados.

Os que temem a mudança declaram que não há correlação de forças na sociedade e na vida política que permita que as transformações sociais reclamadas pelas forças progressistas possam, enfim, ganhar direito à cidadania. Mas não há como modificar a correlação de forças sem mover as nossas forças. É aqui que o medo de perder tira a vontade de ganhar.

A deliberação da bancada do PSOL de votar contra o arcabouço fiscal é um sinal de que há vida inteligente no planeta Brasil. Do mesmo modo, deve ser saudada a atitude corajosa e coerente das lideranças indígenas e ambientalistas, dentro e fora do governo, contra o desmonte das estruturas que, desde o interior do condomínio governamental, podem servir de suporte, por exemplo, às florestas e aos povos da floresta.

A luta está só começando. Os apressados já desistiram dela. Mas há esperança! Em relação a isso, só é preciso renunciar ao medo de perder. É a condição, não digo da vitória, sim da luta, e sem essa, seguramente, nunca houve, não há e nem haverá vitórias.

Por fim …

A dolorosa experiência dos últimos dias, e até mesmo das últimas horas, pode levar o sujeito social a abaixar-se diante do que parece inexorável. Nada mais equivocado! É preciso cuidar das feridas e se agarrar ao sentido mais profundo da canção popular: “Nada a temer senão o correr da luta/ Nada a fazer senão esquecer o medo”.

Isso é assim, sobretudo, porque não é possível vencer temendo perder.

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Texto publicado no Esquerda Online, replicado no Intelectual Orgânico e agora no blog Negro Nicolau).

26 de maio de 2023

Nicolau Neto defende obrigatoriedade de disciplina sobre História Afro-indígena em formação na EEM Patativa do Assaré

 

Nicolau Neto defende obrigatoriedade de disciplina sobre História Afro-indígena em formação na EEM Patativa do Assaré. (FOTO | EEM Patativa do Assaré).

Por Valéria Rodrigues, Colunista

A EEM Patativa do Assaré, localizada na Serra de Santana, zona rural do município de Assaré, realizou durante toda a manhã desta quinta-feira, 25 de maio, uma formação para parte do corpo docente. A formação - como explicou o diretor da instituição - o professor Flavio, visava refletir sobre os 20 anos da Lei 10.639/2003.

Queremos antecipadamente agradecer o professor Nicolau Neto por prontamente ter aceitado nosso convite para esse momento que será um conversa com nossos professores e professoras. O Estado escolheu esse ano a temática da cultura africana e afro-brasileira para seus eventos. Então, a gente trouxe o professor para dialogar sobre ‘os aspectos legais para trabalhar as relações étnico-raciais na educação’”, disse ele.

O momento foi aberto com a exibição de um vídeo produzido com os (as) estudantes da instituição durante a participação na fase escolar do evento Alunos que Inspiram que esse ao teve como tema “a cultura afro-brasileira e sua contribuição para uma educação antirracista”.

O professor Nicolau começou agradecendo o convite da escola e parabenizando-a por estar preocupada em refletir e traçar estratégias no combate ao racismo e, por tanto, em construir políticas pedagógicas que não só reconheça, mas valorize e propague os saberes do povo negro e indígena.

Nicolau destacou que seus objetivos com a conversa era analisar como os povos africanos e indígenas aparecem nos livros didáticos adotados e utilizados na EEM Patativa do Assaré, além de “refletir sobre a nossa prática do ensino” e indagou “onde aparece os saberes afro-indígenas no meu plano de curso”?

Analisar e refletir sobre o processo ensino-aprendizagem com base na relações étnico-raciais é uma necessidade urgente. Não há democracia plena onde o racismo ainda define lugares que pretos, pretas e indígenas devam ou não ocupar. Nesse sentido, a escola, como um dos mais importantes espaços de promoção e divulgação de saberes sistematizados, precisa assumir seu papel na construção de uma sociedade que respeita, valoriza e propaga os multisaberes, desarranjando toda forma de preconceito, discriminação e racismo. (Nicolau Neto durante a formação, 25/05/23).

Para corroborar com sua assertiva ele dialogou com uma fala do professor e artista plástico Abdias do Nascimento que em uma entrevista respondida por e-mail por sua esposa, Elisa, e subscrita por ele para O Inverso do Contraditório, destacou “o racismo no Brasil se caracteriza pela covardia. Ele não se assume e, por isso, não tem culpa nem autocrítica. Costumam descrevê-lo como sutil, mas isto é um equívoco. Ele não é nada sutil, pelo contrário, para quem não quer se iludir ele fica escancarado ao olhar mais casual e superficial”.

Segundo Nicolau, a fala de Abdias é atualizada a cada dia. Basta perceber o silenciamento em muitas instituições, inclusive nas escolas, quanto o assunto é o cumprimento das leis 10.639/2003 e 11.645/2008. Ambas falam da obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira e do ensino sobre História e Cultura indígenas no âmbito de todo o currículo escolar. “Há muita resistência”, pontuou Nicolau. “Quando muito se fala é em eventos esporádicos. Não há uma política educacional direcionada”, destacou.

Intelectuais como a filósofa Lélia Gonzales e o sociólogo Jessé Souza foram incorporados a fala de Nicolau para dizer que institucionalmente ainda estamos muito distantes de construir uma educação antirracista. De Lélia foi mencionado trechos do livro “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira (1984)” e de Jessé, o livro “Como o Racimo Criou o Brasil (2021)”.

Professor Nicolau Neto junto a professores e professoras da EEM Patativa do Assaré. (FOTO | EEM Patativa do Assaré).

A conversa foi regada a muitas intervenções e contribuições dos professores e professoras que entre outras reflexões mencionaram a questão da política de cotas raciais e da representatividade negra e indígena (a ausência, na verdade) nos espaços de poder.

Por fim, o professor Nicolau destacou diversos exemplos de como as leis mencionadas podem ser trabalhadas em sala e em todas as disciplinas e destacou que, apesar de esforços individuais e de algumas escolas, é preciso que se tenha uma modificação curricular. “Necessitamos de um currículo que seja de fato descolonizado. Que contemple os multisaberes que foram e continuam sendo apagados da história da educação brasileira” e defendeu a necessidade das disciplinas “História e Cultura afro-brasileira” e História e Cultura indígena” como obrigatórias e presenciais na educação básica.

Só assim para romper com as falas sobre a gente apenas em eventos esporádicos”, disse. “Mas enquanto isso não ocorre, o que eu enquanto professor e professora tenho feito? “Onde estão os saberes afro-indígenas no meu plano de curso”, indagou.

Nicolau citou além das duas leis mencionadas como marcos legais, a LDB/96 alterada, as diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana e o Projeto Político Pedagógico da Escola (PPP).

Portas, flores e molotovs

 

(FOTO | Reprodução).

Alexandre Lucas, Colunista

Parei. Os carros se cruzam, levando destinos. São sete horas. Sete horas e uma escadaria. A menina apressada desce os degraus, ainda lembra de recolher flores, no pé da calçada que não anda. Desaparece, entra pela porta azul, lá dentro tem várias salas, todas podem ser prisão com requintes de tortura, mas tem momentos de sonhos e de voo.

Prisioneira ou voadora, já não sei, apenas vi a menina passando apressada e carregada com algumas flores, nada mais sei.

Tudo está em movimento: os carros, a menina e eu me achando parada no tempo.  O horizonte é um redemoinho.

Ando. Os seios comprimidos pela censura. Vontade de picotar o sutiã e decretar a liberdade dos meus volumes. O salto alto me cansa, quero ter a altura das minhas utopias, mas o mercado sempre insiste com suas plataformas.

Anoto no caderno a lista de coisas que não se compra, mas parece que tudo está à venda: o terreno no céu, as bênçãos e a delicadeza da atendente da loja que usa o mesmo ritual para todas as clientes: o mesmo volume de sorrisos e as mesmas composições de palavras.

Agora sentada no pé da calçada que já não tem flores. Lembro-me da menina que não vejo sair pela porta azul e fico me perguntando se não existem outras portas.

24 de maio de 2023

Negros de pele clara

 

Sueli Carneiro. (FOTO | Reprodução).
     

Vários veículos de imprensa publicaram com destaque fotos dos candidatos selecionados que vão concorrer às vagas para negros da Universidade de Brasília (UnB). Veículos que vêm se posicionando contra essa política percebem, no largo espectro cromático desses alunos, mais uma oportunidade para desqualificar o critério racial que a orienta.

Uma das características do racismo é a maneira pela qual ele aprisiona o outro em imagens fixas e estereotipadas, enquanto reserva para os racialmente hegemônicos o privilégio de serem representados em sua diversidade. Assim, para os publicitários, por exemplo, basta enfiar um negro no meio de uma multidão de brancos em um comercial para assegurar suposto respeito e valorização da diversidade étnica e racial e livrar-se de possíveis acusações de exclusão racial das minorias. Um negro ou japonês solitários em uma propaganda povoada de brancos representam o conjunto de suas coletividades. Afinal, negro e japonês são todos iguais, não é?

Brancos não. São individualidades, são múltiplos, complexos e assim devem ser representados. Isso é demarcado também no nível fenotípico em que é valorizada a diversidade da branquitude: morenos de cabelos castanhos ou pretos, loiros, ruivos, são diferentes matizes da branquitude que estão perfeitamente incluídos no interior da racialidade branca, mesmo quando apresentam alto grau de morenice, como ocorre com alguns descendentes de espanhóis, italianos ou portugueses que, nem por isso, deixam de ser considerados ou de se sentirem brancos. A branquitude é, portanto, diversa e multicromática. No entanto, a negritude padece de toda sorte de indagações.

Insisto em contar a forma pela qual foi assegurada, no registro de nascimento de minha filha Luanda, a sua identidade negra. O pai, branco, vai ao cartório, o escrivão preenche o registro e, no campo destinado à cor, escreve: branca. O pai diz ao escrivão que a cor está errada, porque a mãe da criança é negra. O escrivão, resistente, corrige o erro e planta a nova cor: parda. O pai novamente reage e diz que sua filha não é parda. O escrivão irritado pergunta, “Então qual a cor de sua filha”. O pai responde, “Negra”. O escrivão retruca, “Mas ela não puxou nem um pouquinho ao senhor? É assim que se vão clareando as pessoas no Brasil e o Brasil. Esse pai, brasileiro naturalizado e de fenótipo ariano, não tem, como branco que de fato é, as dúvidas metafísicas que assombram a racialidade no Brasil, um país percebido por ele e pela maioria de estrangeiros brancos como de maioria negra. Não fosse a providência e insistência paterna, minha filha pagaria eternamente o mico de, com sua vasta carapinha, ter o registro de branca, como ocorre com filhos de um famoso jogador de futebol negro.

Porém, independentemente da miscigenação de primeiro grau decorrente de casamentos inter-raciais, as famílias negras apresentam grande variedade cromática em seu interior, herança de miscigenações passadas que têm sido historicamente utilizadas para enfraquecer a identidade racial dos negros. Faz-se isso pelo deslocamento da negritude, que oferece aos negros de pele clara as múltiplas classificações de cor que por aqui circulam e que, neste momento, prestam-se à desqualificação da política de cotas.

Segundo essa lógica, devemos instituir divisões raciais no interior da maioria das famílias negras com todas as implicações conflituosas que decorrem dessa partição do pertencimento racial. Assim teríamos, por exemplo, em uma situação esdrúxula, a família Pitanga, em que Camila Pitanga (negra de pele clara como sua mãe), e Rocco Pitanga (um dos atores da novela “Da cor do pecado”), embora irmãos e filhos dos mesmos pais seriam, ela e a mãe brancas, e ele e o pai negros. Não é gratuito, pois, que a consciência racial da família Pitanga sempre fez com que Camila recusasse as constantes tentativas de expropriá-la de sua identidade racial e familiar negra.

De igual maneira, importantes lideranças do Movimento Negro Brasileiro, negros de pele clara, através do franco engajamento na questão racial, vêm demarcando a resistência que historicamente tem sido empreendida por parcela desse segmento de nossa gente aos acenos de traição à negritude, que são sempre oferecidos aos mais claros.

Há quase duas décadas, parcela significativa de jovens negros inseridos no Movimento Hip Hop politicamente cunhou para si a autodefinição de pretos e o slogan PPP (Poder para o Povo Preto) em oposição a essas classificações cromáticas que instituem diferenças no interior da negritude, sendo esses jovens, em sua maioria, negros de pele clara como um dos seus principais ídolos e líderes, Mano Brown, dos Racionais MCs. O que esses jovens sabem pela experiência cotidiana é que o policial nunca se engana, sejam eles mais claros ou escuros.

No entanto, as redefinições da identidade racial, que vêm sendo empreendidas pelo avanço da consciência negra e que já são perceptíveis em levantamentos estatísticos, tendem a ser atribuídas apenas a um suposto ou real oportunismo promovido pelas políticas de cotas, fenômeno recente que não explica a totalidade do processo em curso.

A fuga da negritude tem sido a medida da consciência de sua rejeição social e o desembarque dela sempre foi incentivado e visto com bons olhos pelo conjunto da sociedade. Cada negro claro ou escuro que celebra sua mestiçagem ou suposta morenidade contra a sua identidade negra tem aceitação garantida. O mesmo ocorre com aquele que afirma que o problema é somente de classe e não de raça. Esses são os discursos politicamente corretos de nossa sociedade. São os discursos que o branco brasileiro nos ensinou, gosta de ouvir e que o negro que tem juízo obedece e repete. Mas as coisas estão mudando…

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Texto de Sueli Carneiro, originalmente no Jornal Correio Braziliense.

A cor e a raça nos censos demográficos nacionais

 

(FOTO | Reprodução | Google).


Branco, preto, pardo, amarelo e indígena. Essas são as cinco categorias de pertencimento racial com a qual estamos acostumados a nos identificar em censos, questionários e formulários pelo Brasil afora. Se essas cinco palavras são capazes de resumir as identidades étnico-raciais de cerca de 200 milhões de brasileiros/as, é outra questão. Fato é que convivemos com a necessidade de pensar nossa sociedade em termos de relações raciais e, para tanto, certas categorias mostram-se indispensáveis. Pensando nisso, neste texto discuto alguns aspectos históricos e culturais relativos à classificação racial nos censos demográficos brasileiros.

Longe de ser um procedimento meramente técnico, a realização dos censos demográficos refletem projetos políticos que se transparecem nas questões elaboradas, na metodologia empregada e, evidentemente, nas opções de respostas que são fornecidas. Assim, para se aproximar de alguma classificação racial da população brasileira, é necessário fazer escolhas de quais categorias sociais se pretende visibilizar em detrimento de outras e, em decorrência disso, forjar as lentes que poderão ser adotadas pela própria população para se enxergar como tal. É por isso que aquelas cinco palavrinhas não são fruto de uma percepção objetiva da demografia brasileira, senão reflexo de uma determinada ideologia racial que, em dadas circunstâncias, foi legitimada como um bom indicador da realidade social.

Na América Latina como um todo, pontuam Luis Angosto Ferrández e Sabine Kradolfer (2012), os censos demográficos nacionais passaram a ser criados a partir ou em torno da década de 1870, como uma decorrência de projetos de modernização das nações cujo mote era a ordeme o desenvolvimento. Dessa forma, os levantamentos de dados em caráter censitário se mostraram essenciais para a consolidação institucional do Estado, assim como para permitir uma governabilidade maior sobre a população. Nesse contexto, países como Argentina, Guatemala e Venezuela inauguraram seus censos, respectivamente, em 1869, 1870 e 1873.O Brasil seguiu na mesma linha e teve seu primeiro levantamento demográfico no ano de 1872.

Em tal recenseamento, o Estado dispôs de quatro categorias para a classificação racial: branco,preto, pardo e caboclo, entendendo pardos como a união de brancos e pretos, e caboclos como os indígenas e seus descendentes. Edith Piza eFúlvia Rosemberg (2012) ressaltam que o Censo de 1872 já utilizava um critério misto de fenótipo e descendência para a classificação racial, uma vez que as três primeiras categorias correspondem à cor, ao passo que a última tem uma origem racial. Esse nó, que vemos até hoje nos levantamentos atuais, acompanha nossa história desde os primeiros recenseamentos, tendo sido adotado também no segundo censo demográfico, de 1890, com a diferença de que este substituiu o termo pardo por mestiço.

Infelizmente, a cor/raça não foi apreendida nos dois recenseamentos subsequentes, quais sejam, em 1900 e 1920. José Luis Petruccelli (2012) nos recorda que imperavam, nessa época, correntes de racismo científico que associavam à negritude da população a traços de inferioridade sociocultural. Talvez por isso tenha parecido melhor, à elite vigente, evitar o levantamento de dados raciais enquanto operava, noutro plano, um projeto de embranquecimento da população brasileira. Foi nesse meio-termo – na passagem do século XIX para o XX – que se intensificou um processo de imigração europeia e, pouco depois, da chegada de asiáticos às terras tupiniquins.

A classificação racial retornou apenas em 1940, quando o Brasil entrou para o rol das nações que passaram a realizar censos modernos decenais, sob a responsabilidade de um órgão competente – o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na ocasião, o termocaboclo foi abolido e a cor parda foi retirada dos questionários (mas retornou nas análises posteriores). Ademais, surgiu o conceito de amarelo para contemplar os imigrantes de origem asiática e seus descendentes. Sem menção à categoria indígena, no Censo de 1950 justificou-se que esses poderiam se declarar pardos, uma categoria guarda-chuva que incluiria mulatos,caboclos, cafuzos etc. E assim permaneceu pelas décadas seguintes até a redemocratização, com exceção do ano de 1970, em plena ditadura militar, que, curiosamente, retirou dos questionários a classificação racial.

Em resumo, o Censo de 1940 iluminou um Brasil um tanto quanto diferente do que se via anteriormente. Em primeiro lugar, demonstrou que o projeto de embranquecimento foi bem sucedido, visto que os/as brancos/as passaram de 44% da população em 1890 para mais de 63% em 1940. Ao mesmo tempo, esboçava um “novo” segmento populacional – os amarelos. Já os indígenas ficaram invisíveis dentro da categoria pardos. E, para piorar, demorou meio século para eles retornaram aos nossos censos.

Em 1991, enfim, o censo demográfico consolidou-se no modelo que adotamos até hoje: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. Finalmente houve menção aos indígenas enquanto tais. Esse sistema de classificação foi reproduzido para as edições de 2000 e de 2010 dos censos demográficos. No último, aliás, vemos que, pela primeira vez desde o século XX, a população branca deixou de compor a maioria do povo brasileiro. Hoje, conforme o gráfico abaixo, temos 47,7% que se autodeclaram da cor branca, 43,1% parda e 7,6% preta, além de 1,1% amarela e 0,4% indígena. Com as técnicas de pesquisa atuais, reduziu-se o percentual de “não declarados” a praticamente zero.

Desse histórico, importantes questões devem ser observadas. Nota-se que, desde sempre, a corparda foi a mais permeável das classificações raciais (PIZA & ROSEMBERG, 2012): ora por agrupar um amplo e complexo gradiente que vai do branco ao preto, ora por supostamente incluir também os grupos indígenas e todas as misturas possíveis no caldo das “três raças”, os pardos atuaram como um coringa em uma nação multicolor cujo pertencimento racial, tão atravessado de outras variáveis imbrincadas a relações de poder, é inevitavelmente um desafio.

Outro importante movimento são algumas tendências na composição étnico-racial da população que apontam para o caráter fluído e ambíguo da classificação racial. A título de ilustração, o salto de menos de 300 mil indígenas em 1991 para pouco mais de 700 mil em 2000 não indica meramente um crescimento populacional, e sim uma revalorização de identidades, processo esse que encontra eco na história recente do Brasil, quando as mobilizações indígenas passaram a retomar fôlego após sucessivas ameaças e violências perpetradas pelo regime militar.

O mesmo pode estar acontecendo com as categoriaspreta e pardo, para as quais o fortalecimento do movimento negro tende a tornar mais recorrente, aceitável ou até mesmo desejável a autodeclaração em uma dessas duas opções, como uma maneira de reafirmar identidades coletivas em contexto de lutas e reivindicações. Não à toa, setores do movimento negro lançaram a campanha, durante o recenseamento de 1991, cujo slogan era: “Não deixe sua cor passar em branco”, fazendo uma alusão crítica à tendência de branquear-se como tática de reconhecimento ou ascensão social.

Agora, não se pode ignorar que as categorias de pertencimento racial no Brasil continuam tendo imprecisões que não resumem, com fidelidade, a ampla gama de cores, raças e etnias que caracterizam a sociedade brasileira. Afinal de contas, Petruccelli (2012) pontua que o nosso país privilegia a manutenção da série histórica em detrimento de um esforço concentrado sobre a produção de estatísticas mais fiéis e condizentes à nossa realidade. Em outras palavras, é preferível manter uma classificação racial imperfeita, mas que foi bastante assimilada, a ousar a reformulação desta, muito embora haja esforços por parte das autoridades competentes para se aprimorar esse levantamento de dados num futuro próximo.

De toda forma, temos em mãos um sistema de classificação racial com informações suficientes para se descrever registros históricos, apontar tendências futuras e refletir sobre a diversidade, as diferenças e as desigualdades sobre as quais se edificou a sociedade brasileira. Ainda que imperfeita, as categorias branca, preta, parda, amarela e indígena devem fornecer subsídios para a reflexão, a crítica e principalmente a superação das hierarquias que se reproduzem em sociedades racializadas e, pior que isso, racistas.

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Texto de Adriano Senkevics, originalmente no Ensaio de Gênero.

22 de maio de 2023

Ceará Científico 2023 tem edital lançado e valoriza educação para relações étnico-raciais

 

Estudantes do 3º Ano B, da EEMTI Pe. Luís Filgueiras, em Nova Olinda - CE. (FOTO | Prof. Nicolau Neto).


A Secretaria da Educação (Seduc) torna público o edital que estabelece normas para a realização do Ceará Científico 2023. A ação, integrante do Programa Ceará Educa Mais, tem como objetivo incentivar e apoiar iniciativas em educação científica, de forma que estudantes e professores se envolvam no desenvolvimento de projetos e pesquisas no cotidiano escolar e na participação de eventos científicos e culturais. Neste aspecto, a prática da pesquisa é entendida como um princípio pedagógico e metodológico de troca e de produção de conhecimento. O evento será desenvolvido em três etapas: escolar, regional e estadual.

A partir de 2023, o Ceará Científico amplia seus objetivos ao passar a constituir-se como uma ação estudantil, além de científica, solidária e cooperativa. Com o acréscimo do subtítulo “Ceará Científico: mais solidário, mais cooperativo” e com a determinação de categorias específicas voltadas para pessoas com deficiência e estudantes de Escolas Indígenas, Quilombolas, do Campo e Família Agrícola, a Seduc reforça sua atenção e cuidado quanto à inclusão das diversidades nesta iniciativa de incentivo à produção de pesquisa científicas, bem como, nas ações pedagógicas em todo o território cearense.

Por igualmente reconhecer a importância do debate em torno das relações étnico-raciais nos ambientes de ensino e aprendizagem, para a promoção da justiça social e da cultura antirracista, a Seduc, neste ano, traz a seguinte temática como norteadora de todos os trabalhos a serem apresentados: Educação científica e educação para as relações étnico-raciais.

Clique aqui e acesse o edital.

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Com informações da Seduc-Ce

21 de maio de 2023

O príncipe Ribamar da beira fresca e o projeto de modernização conservadora do cariri

 

Fotografia do Príncipe Ribamar da Beira Fresca em seus trajes cotidianos. (FOTO | Reprodução | Internet). 

Por César Pereira, Colunista

Joaquim Gomes Menezes seu nome, marceneiro de excelente arte para móveis, (principalmente caramanchões), também entalhava tesouras para os tetos das igrejas e santuários do Cariri. Era preto, negro, filho de pais que sempre foram pobres, nunca se casou, viveu sempre com a mãe e uma irmã que morreram bem antes dele, e dizem que estas morreram de fome.

Foi personagem muito conhecido em Juazeiro do Norte. Sempre visto em repartições públicas, saguões de hotéis, agências bancárias, escritórios, cartórios e na própria prefeitura municipal. Dele muito se falava. Falava-se dele na Rádio Progresso, falava-se dele na Rádio Iracema. Sobre ele escreviam os cronistas e os poetas. Era famigerado, pois seu nome era sempre propalado nas rodas de conversas, lembrado nas praças, nas feiras, nas bodegas.

Nos dias de festas, principalmente nas festas cívicas, dia do município e 7 de setembro, aparecia em público vestido roupa de gala. Nessas ocasiões trajava-se com apuro, pois aí envergava sua melhor vestimenta. Uma casaca com galões e botões dourados, dragonas e capa, calça de linho com vinco, cinto de couro e muitas medalhas, representando suas muitas condecorações e títulos honoríficos.

Nos dias comuns caminhava pelas ruas de Juazeiro do Norte vestindo terno, chapéu e pasta e guarda-chuva nas mãos. Dentro da pasta tinha tudo: cheques já descontados, documentos vencidos, cartas e uma fotografia da princesa Gioconda da Eslobóvia, também projetos de engenharia, ideias políticas e folhetos de cordel.

Os incautos o acreditavam doido, mente fraca, um homem que teria perdido o juízo. Muitos o tratavam com desdém e o viam apenas como o restolho de um mundo arcaico que o rápido progresso de Juazeiro do Norte ia tratando de eliminar para deixar a cidade limpa, pronta para receber os bons ventos da modernidade.

Para muitos, o príncipe era maluco, um pobre coitado com o cérebro derretido pelo sol do sertão. Riam dele, roubavam e escondiam o retrato da Gioconda. Nestes momentos, o príncipe se imobilizava, uma explosão de dor o congelava. Eu me lembro dele, assim privado da sua amada, feito uma estátua no meio da praça. Parecia tão triste e ausente de si que, eu juro, flutuava a meio metro do chão, pendurado no guarda-chuva branco. Quando uma alma boa lhe devolvia seu bem mais precioso, a felicidade saltava dos seus olhos como um raio na tempestade. Talvez ele fosse realmente louco. Mas uma loucura que fazia nascer uma tal felicidade e uma felicidade que vinha de um amor tão grande me deixavam na dúvida. (WILKER, 1995, disponível em: http://oberronet.blogspot.com/2011/07/principe-ribamar-o-sonhador-de-juazeiro.html, acesso em 21 de maio de 2023).

           

Na década de 1950 a cidade de Juazeiro do Norte já despontava como uma das mais promissoras do interior nordestino. Impulsionado pelas romarias em torno da figura e da memória do padre Cícero Romão Batista, o progresso econômico deste município do sul do estado do Ceará já era celebrado em todo o Brasil. Na década seguinte, isto é, 1960, as lideranças políticas de Juazeiro do Norte ganhariam força quando se posicionaram ao lado dos grupos hegemônicos na política cearense.

O período que vai de 1964 a 1985, ficou conhecido no Ceará como o do Ciclo dos coronéis. Isto porque ao longo desses vinte e um anos, os principais líderes da política do nosso estado foram homens ligados aos generais-presidentes que governaram a república brasileira durante a vigência da ditadura civil-militar.

Do início dos anos 1970 à metade da década seguinte, a política cearense foi compartilhada por três grupos oligárquicos liderados pelos coronéis do exército Virgílio Távora, Adauto Bezerra e César Cals. [...] o controle que os coronéis exerciam sobre o Ceará decorria, sobretudo, de um fator externo, isto é, o apoio que recebiam da ditadura militar brasileira. (FARIAS, 2015, p.493).

A atuação política do coronel Adauto Bezerra, juazeirense nascido em 1926, ao lado de outros líderes cearenses alinhados com a ditadura, transformou assim o estado do Ceará num forte reduto de apoio ao regime político implantado por meio de um golpe de estado no dia 31 de março de 1964.

Esse período de triste memória para a história de nosso país, marcou uma época de avanços econômicos no Cariri, em especial nas cidades de Juazeiro do Norte e Crato, os dois municípios onde se concentrava a atenção dos políticos caririenses.

Aos poucos essas cidades do Cariri iam perdendo sua base econômica agrária estruturada na lavoura de cana-de-açúcar, criação de gado, cotonicultura e na produção de mandioca, e enveredavam por um projeto de industrialização financiado por investimentos de capitais estrangeiros e do governo federal na região.

A economia das três principais cidades caririenses (Barbalha, Crato e Juazeiro do Norte), diversificou-se bastante. O comércio cresceu, bancos foram fundados, outros que já existiam e eram importantes casas financeiras em todo o país abriram agências nessas cidades. O crédito disponível aumentou o número de fábricas e novas casas comerciais foram abertas nesses municípios.

Ainda na década de 1970 e 1980, Juazeiro do Norte tornou-se o principal centro econômico do sul do Ceará. Dezenas de indústrias se instalaram no município e em consequência disto houve um rápido aumento demográfico na cidade. O progresso econômico também alterou o ritmo da metrópole regional e assim a relação dos seus habitantes com o espaço e o tempo também sofreu sensíveis rupturas.

Para se ter uma idéia da rapidez do desenvolvimento demográfico e econômico do Juazeiro, lembramos que em 1872, quando Padre Cícero lá chegou como capelão, aquele povoado contava aproximadamente duas mil almas. Em 1909, já contava 15.050 habitantes e, em 1940, 38.145, quase se equiparando ao Crato, que naquele ano contava 40.282 habitantes. Em 1940, a população urbana e suburbana de Juazeiro já era bem maior do que a do Crato: 24.155 habitantes, enquanto a zona urbana do Crato contava apenas 12.567 habitantes. Em 1950, a população de Juazeiro salta para 56.146 habitantes, enquanto que a do Crato vai para 46.408, mantendo-se a grande maioria dos habitantes do Juazeiro na zona urbana: 42.821, enquanto no Crato a maioria ainda habitava o campo, residindo na zona urbana apenas 16.776. Em 1960, a população de Juazeiro era de 68.494, dos quais 54.170 residiam na zona urbana, enquanto no Crato havia 59.464 habitantes, dos quais 29.308 habitando a zona urbana. (CORTEZ, 2000, p. 70).

 

Nos fins da década de 1930, Juazeiro do Norte era ainda vista como uma cidade arcaica. espécie de reduto do fanatismo religioso, antro de beatos, um lugar onde vicejavam as crendices e as práticas religiosas consideradas nefastas pela igreja católica. Padre Cícero Romão Batista havia falecido em 1934, o túmulo e os restos mortais de Maria de Araújo haviam sido destruídos em 1931, o beato José Lourenço havia sido expulso do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto em 1937, mas a população local teimava em manter viva as práticas religiosas heterodoxas da religiosidade popular.

As mentalidades do povo e os comportamentos dos “tipos” (romeiros, penitentes, beatos, rezadeiras, carpideiras, cegos, cantadores, pedintes), exasperavam as elites locais que sonhavam com uma cidade asséptica, uma cidade “civilizada”, onde prevalecesse principalmente a boa ordem cosmopolita que utopicamente existia nas grandes capitais brasileiras, modelos de cidades modernas para as demais.

O projeto de modernização conservadora que passou a ser efetivado no Ceará a partir da década de 1950 e logo foi igualmente introduzido no Cariri, este tinha como principal objetivo efetivar um ideal modernizador que favorecesse as elites locais em todos os aspectos: econômico, dispondo-lhes capitais para investirem em seus negócios;  culturais, abrindo escolas e faculdades para que os filhos dessa elite pudesse ter acesso a cultura “civilizada” do mundo; aspectos heterotópicos, criando espaços-outros., (FOUCAULT, 2001) (praças, parques municipais, balneários, clubes privados) onde essa elite pudesse divertir-se.

Mas enquanto a elite caririense ufanava-se com o aparente progresso do Cariri e acreditava haver enfim trazido a civilização para o sul cearense, indivíduos, grupos e mentalidades ditos “arcaicos” e que essa mesma elite desejava soterrar resistiam e sobreviviam impedindo a plena efetivação do projeto “civilizatório” da branquitude e do elitismo no Vale do Cariri.

Figuras populares como Maria Caboré, dona Pibite, Maria Dariú, beato da Cruz, Compadre Chico, Tandôr, Doida Amaral, João Mexe-bucho, Bilinha, se impunham como resistências ao projeto “civilizador” das elites. Assim, enquanto os grupos economicamente hegemônicos procuravam impor de cima para baixo seu ideal modernizador através do PLAMEG I (Primeiro Plano de Metas Governamentais), projeto de industrialização do estado do Ceará idealizado pelo coronel Virgílio Távora e toda a classe política conservadora que gravitava em torno do governador do estado, havia estratos, grupos, indivíduos que se impunham como resistência, fenda e desvio contra esse pacto pelo progresso das elites locais.

O Ceará sempre foi uma região de economia pouco dinâmica e periférica no Brasil, estado pobre distante dos grandes centros mundiais do capitalismo, sujeito a secas periódicas e de solos ruins, (pouco férteis e desgastados pela erosão, uso contínuo e falta de investimentos), apresentava uma estrutura latifundiária intocada e uma elevada concentração de renda, o que diminuía por demais o mercado consumidor interno. Sua economia no início dos anos 1960 era frágil baseada no comércio, na produção agropastoril, na lavoura de subsistência e nas atividades extrativistas. (FARIAS, 2015, p. 475).

Para superar este projeto econômico que vinha sendo a base da força política das elites cearenses desde o século XIX, o governado Virgílio Távora aderiu ao programa desenvolvimentista em voga no Brasil a partir da década de 1950:

Foi, portanto, com base nessas ideias desenvolvimentistas que Távora realizou sua gestão no Ceará. Não mudaria, é verdade, a estrutura fundiária nem diminuiria as abissais diferenças sociais, mas realizaria a “modernização conservadora” cearense – modernização no sentido de realização de grandes projetos estruturantes no sentido de ser feita baseada nos mesmos padrões políticos vigentes. (FARIAS, 2015, p.475).

          À medida que o projeto dessa modernização conservadora se aprofunda no Ceará ele chega ao Cariri e principalmente em Crato, Barbalha e Juazeiro do Norte, pois aí residia o grosso da elite política regional.

Essa modernização conservadora logo atinge os indivíduos e grupos tidos como “arcaicos” e que passam a ser vistos como sinônimo de atraso e incivilidade para a região. Esses grupos e indivíduos arcaicos, fanáticos, bárbaros vão sendo folclorizados ou somente postos a margem, e aqueles que resistem à folclorização e disciplinamento são extintos, caso ocorrido com as carpideiras de Nossa Senhora da Boa Morte.

Quem aceita o disciplinamento é conduzido para as margens da cultura oficial, sendo relegados a tomarem parte, mas estrito controle disciplinar por meio de contrato e cachês nas festas programadas pelo município ou a Igreja Católica, isto seu deu por exemplo com os grupos de penitentes, reisados, vendedores de cordel, cantadores, violeiros, artesãos. Homens e mulheres que não se alinharam ao modelo de modernidade projetado para as cidades de Crato, Juazeiro e Barbalha tornam-se logo incômodos e desapareceram sucumbidos ao esquecimento.

É neste período que as romarias antes manifestações espontâneas dos fiéis do Padre Cícero Romão Batista passam ao controle da Diocese do Crato que se faz representar em Juazeiro do Norte pela figura carismática do padre Murilo de Sá Barreto.

Por outro lado, todo centro de interesse peregrino surge de alguma teofania inaugural ou do anúncio de algum fato extraordinário à volta de determinada santidade. E Juazeiro, também nisso, não difere dos demais. Inegavelmente, porém, o que mais chama a atenção do estudioso desses fenômenos e que caracteriza ou particulariza as romarias do Juazeiro reside no fato de serem elas praticamente criadas e sustentadas autonomamente pelo povo e até, durante muito tempo indesejadas e reprimidas pela Igreja oficial ou sua hierarquia. (DIATAHY, 2004, p. 114).

Percebeu-se na segunda metade do século XX, que não se podia conter os movimentos religiosos no Cariri. Até então a atitude da Igreja Católica vinha sendo no sentido de fazer a repressão as romarias, ou quando muito tolerá-las. Mas a partir da década de 1960, uma aliança entre as forças políticas e religiosas locais adotou a estratégia da disciplina.

O objetivo das autoridades e elites regionais passou a ser explicitamente disciplinar. Não se combatia mais os movimentos religiosos em Juazeiro do Norte, procurava-se discipliná-los. A construção da estátua do Padre Cícero Romão Batista na Serra do Horto, a urbanização dos caminhos que davam acesso aos locais de devoção, o estabelecimento de calendários para as romarias oficiais, o credenciamento dos vendedores de santos, objetos sacros, pousadas, a criação de museus e galerias para abrigar os vestígios materiais e a memória do Padre Cícero, bem como os presentes e ex-votos dos romeiros foram aos poucos estabelecendo a ordem e a disciplina na espontaneidade dos movimentos religiosos caririenses.

esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar ‘disciplinas’. Muitos processos disciplinares existem há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois não fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes (FOUCAULT, 2010, p. 133).

 

O processo de disciplinamento das cidades do Cariri efetivar-se-ia ao longo da segunda metade do século XX. Para os resistentes contra esta “modernização” foram construídas as instituições disciplinares tradicionais. Na década de 1970 inaugurou-se no Crato o hospital psiquiátrico Santa Tereza para abrigar os loucos. Para esta instituição eram encaminhados além dos doentes mentais assim diagnosticados pelo saber médico, também aqueles que viviam pelas ruas das cidades “perturbando” os transeuntes, pondo em risco a boa fluidez do trânsito, trazendo incômodos e constrangimentos para os consumidores e visitantes da terra.

No mesmo período foi inaugurada a Colônia Penal de Santana do Cariri, para onde iam recolhidos os criminosos e marginais das cidades caririenses. Nessa colônia penal realizavam trabalhos agrícolas e em oficinas, aí os presos viviam numa espécie de regime disciplinar semiaberto.

A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em seu superpoderio; um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. Humildes modalidades, procedimentos menores, se os comprarmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes aparelhos do Estado (FOUCAULT, 2010, p. 164).

 

Por meio do disciplinamento do corpo procurava-se reeducar os marginais do Cariri. Assim, além do hospício e prisões outras instituições de caráter disciplinar foram construídas ao longo das décadas de 1960, 1970 e 1980 no Vale do Cariri. É dessa época que data a abertura da escola agrotécnica da região, a escola técnica de comércio em Crato, a escola normal rural de Juazeiro do Norte, os hospitais especializados de Crato e Barbalha.

Diante de todo esse poderoso aparato “modernizador”, “civilizatório”, e principalmente disciplinador, o que pode o corpo negro de Joaquim Gomes Menezes, mais conhecido como Príncipe Ribamar da Beira Fresca?

A presença do corpo desse homem negro nos espaços utópicos gestados pelas elites locais foi tão marcante que mesmo intelectuais a serviço desta elite local não puderam prescindir da sua presença. O corpo negro do Príncipe Ribamar da Beira Fresca se impôs no seu próprio tempo como um instrumento de rebeldia contra a projeto de modernização conservadora no Cariri e mais especificamente em Juazeiro do Norte.


O Príncipe Ribamar da Beira Fresca em sua melhor vestimenta pronto para o desfile cívico de 7 de setembro. (FOTO | Reprodução | Internet). 

Não trataremos como coincidência o fato de que a suposta loucura que acometeu Joaquim Gomes Menezes tenha se desencadeado nos meados da década de 1950, exatamente quando os pactos das elites locais para modernizar e disciplinar as cidades de Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha e a partir delas estender o modelo modernizador para toda a região se fizeram mais evidentes através da política de industrialização, modernização e desenvolvimento do Ceará proposta pelo PLAMEG I.

Sabemos que até fins da década de 1940, Joaquim Gomes Menezes vivia uma vida pacata em companhia de sua mãe e sua irmã nas proximidades do Rio Salgadinho em Juazeiro do Norte. Nessa época trabalhava como marceneiro, e era um profissional bastante requisitado para fabricar móveis, e criar tesouras para os tetos de prédios e igrejas da região. Consta que teria sido o criador das tesouras das que sustentam os tetos do santuário de São Francisco de Assis em Juazeiro do Norte e do Cine Eldorado na mesma cidade, também há notícias de ter sido este homem negro quem entalhou a tesoura que sustenta o teto da igreja matriz de Ipaumirim no Ceará.

O Príncipe Ribamar com seu Joaquim ele mesmo. (FOTO | Reprodução | Internet).

Relatos da época informam que era exímio entalhador de móveis e que tinha especial talento para criar caramanchões de jardim, muito comuns nos nas casas ricas daquelas décadas. Desse modo percebemos que Joaquim Gomes Menezes vivia como um trabalhador e um homem comum até princípios dos anos de 1950.

 

Em vários relatos sobre o Príncipe Ribamar temos o depoimento de que se tratava de um exímio carpinteiro, que abandonou a profissão para perambular pelas ruas de Juazeiro e mostrar as condecorações recebidas, simbolizadas em medalhas penduradas na sua incrementada vestimenta. Pelas suas qualidades de homem pacato e respeitador, todos lhe davam atenção. Era um excelente marceneiro: foi ele quem fez os cruzamentos e tesouras de madeira para a construção do Santuário São Francisco, cines Eldorado e Capitólio, caramanchões e outras obras em madeira. (João Caboclo, disponível em http://principeribamar.blogspot.com/, acesso em 21 de maio de 2023).

 

As primeiras notícias de que Joaquim Gomes Menezes adotara para si a personalidade de Príncipe Ribamar da Beira Fresca vem de relatos e crônicas de fins de 1950. Durante mais de duas décadas ele viveria em Juazeiro do Norte não mais como o marceneiro Joaquim Gomes, mas como o nobre Príncipe Ribamar a vagar pelo centro da cidade apresentando seus projetos para quem lhe desse a devida atenção.

Desse modo enquanto Juazeiro do Norte se “modernizava”, enquanto o progresso chegava e as elites se ufanavam dele, e enquanto essa mesma elite criava os espaços heterotópicos para seu gozo ou para disciplinamento biológico dos resistentes ao seu projeto de modernização conservadora, o Príncipe Ribamar da Beira Fresca rebelava-se com seu corpo negro contra os devaneios desenvolvimentistas das elites políticas e econômicas conservadoras regionais.

A rebelião do Príncipe Ribamar da Beira Fresca não se impunha somente pela presença do seu corpo negro rebelado contra as práticas disciplinares do ideal de modernidade da intelectualidade e da elite caririense. Além do seu corpo negro rebelde que se fazia presente nas festas e celebrações públicas dadas pela classe dominante para comemorar os fastos nacionais e municipais, havia toda uma estratégia de resistência nos gestos, nas falas e nas ideias do Príncipe Ribamar.

Segundo João Caboclo:

Figura bastante popular entre a população: cor morena, estatura elevada, físico esguio. Nos dias de festas, Dia do Município, 7 de setembro, trajava vestes reais: chapéu de penacho, sapatos com emblemas, muitas medalhas em metais luminosos lhe ornavam o peito, casaca de botões dourados, espada e outros aparatos que lhe davam aparência real. Usava óculos escuros e andava de forma imponente. Costumava conversar com pessoas eminentes, autoridades e frequentava diariamente as agências bancárias da cidade. (Disponível em: http://principeribamar.blogspot.com/, acesso em 21 de maio de 2023)

 

E Daniel Walker:

 

Quem conheceu o Príncipe Ribamar da Beira-fresca, em Juazeiro do Norte, sabe que ele tinha quatro grandes empreendimentos, tidos por todos como sendo coisas fantasiosas: 

1) Fábrica de desentortar banana; 

2) Fábrica de fumaça; 

3) Mina de espermatozoides e 

4) Cavalaria marítima. 

Ninguém o levava a sério, e ele morreu com muita gente acreditando tratar-se de mais um dos loucos da cidade. Mas isso pode não ser totalmente verdade, e talvez ele não tenha sido tão louco como se pensava... (Disponível em: http://principeribamar.blogspot.com/, acesso em 21 de maio de 2023).

 

A pasta de estadista Do Príncipe Ribamar da Beira Fresca trazia uma fotografia de sua dama prometida, a Princesa Gioconda de Eslobóvia e junto a fotografia dessa alteza real havia também documentos em que planejava como estabelecer a paz mundial, mas havia igualmente planos de gestão, ideias políticas, projetos de engenharia. Aos incrédulos tais projetos e planos semelhavam abusões geradas por um cérebro doente e uma mente ensandecida.

Desses ideais do Príncipe Ribamar costuma-se falar em tom geralmente chocarreiro e trocista. Se os seus contemporâneos ouviam-no falar ou tinham notícias de suas ideias para construir uma fábrica de fumaça, montar uma máquina de desentortar banana, aplainar a Serra do Horto para lá construir um sanatório para tratamento dos tuberculosos, trazer uma cavalaria marinha desde o mar através do curso do Rio Jaguaribe, Rio Salgado e Salgadinho para guarnecer Juazeiro do Norte ou instalar uma mina de espermatozoide, tratavam essas ideias como fantasias e produtos de uma mente doente.

Mas o que podemos perceber é que há uma evidente ironia subversiva nesses ideais surrealistas do Príncipe Ribamar. Vejamos alguns aspectos desses pensamentos. Sabemos que ao ser questionado sobre suas propriedades o Príncipe informou que se dedicava a criar macacos em sua fazenda, mas sua criação de símios estava sendo atacada por viventes humanos e para dar cabo da praga que atormentava seus macacos tinha passado a caçar tais viventes e com o couro destes fabricava cédulas de 5.000 e 10.000 cruzeiros que por isso possuíam alto valor monetário.

Esses e outros relatos sobre as falas e gestos públicos do Príncipe Ribamar da Beira Fresca mostram que sua lógica de pensamento se vinculava aos pensamentos oníricos dos surrealistas. Com efeito na lógica do surrealismo a realidade não se apresenta como foi gestada pela razão ocidental, os pensadores surrealistas, pintores, escultores, poetas, escritores, cineastas adotaram uma percepção maravilhosa da realidade.

Se a racionalidade extrema do século XIX, trouxe o caos para a
civilização, o Surrealismo, então, propôs uma nova lógica de pensamento., a realidade vista como espaço onde se funde o real e o maravilhoso, a antilógica surrealista se afirma como subversão da ordem burguesa. [...] o Surrealismo que preconizou quatro postulados: a liberdade, a poesia, o amor e o
maravilhoso. A liberdade no Surrealismo busca o desapego às regras sociais burguesas
religião, família, trabalho. (TIMBONI, 2012, p.3)

 

Ao inverter a lógica da racionalidade que se esperava de um homem disciplinado pelas luzes da modernidade o Príncipe Ribamar da Beira Fresca criava o estranhamento no seu ouvinte ou nas testemunhas dos seus atos e falas.

Máquina de desentortar banana? Fazenda de Macacos? O que significam essas ideias? Elas sugerem que o Príncipe Ribamar não se submetia aos princípios de uma racionalidade disciplinada gestada no âmago do projeto de modernidade e de sociedade “civilizada”, nem tampouco se submetia a lógica da “normalidade” burguesa transplantada ao longo do século XIX e XX para o Brasil.

Seus gestos depunham contra o sistema de valores impostos pela elite regional sobre a população caririense, isto é, enquanto a igreja e as autoridades políticas atuavam com o evidente objetivo de disciplinar os movimentos religiosos de Juazeiro do Norte e do Cariri em geral impondo aos romeiros práticas religiosas oficialmente construídas em torno da memória e da história do Padre Cícero Romão Batista, o Príncipe Ribamar circulava com suas vestes de alteza real pela cidade impondo sua presença e seu corpo negro àqueles que o queriam disciplinado.

Príncipe Ribmar da Beira Fresca e seus trajes de gala. (FOTO | Reprodução | Internet).


Ao não se sujeitar a ser recolhido ao hospício do Crato ou a colônia penal de Santana do Cariri, ao não aceitar ser medicalizado ou reeducado pelas instituições do biopoder local, o Príncipe Ribamar passou a representar toda uma estratégia de resistência contra os instrumentos de disciplinamento que vão tomando conta do Cariri e de Juazeiro do Norte ao longo da segunda metade do século XX.

Seus gestos são os gestos de um homem que se rebela contra os poderes constituídos, mas esta não é uma rebelião que agita bandeiras ou discursos inflamados, esta é a rebelião de um homem infame, de um homem que possuindo um corpo rebelde e uma inteligência sagaz deles faz uso para através da existência autêntica impor seu modo de ser contra as formas de existir criadas pela modernidade.

Como vimo a vida, os gestos e o corpo do Príncipe Ribamar da Beira Fresca nunca foram compreendidos pelos seus contemporâneos, não se percebeu que ele era um burlador, um Dom Quixote contra os moinhos de vento, um homem rebelado contra uma modernidade que submetia multidões a servidão voluntária e concedia privilégios as elites fechadas nos seus próprios nichos heterotópicos.

Diante da impossibilidade de viver de acordo com os princípios daquela sociedade disciplinar Joaquim Gomes Menezes criou para si a singular existência do Príncipe Ribamar da Beira Fresca, existência esta que cinquenta anos após seu desaparecimento ainda permanece como um desafio à sociedade disciplinar e à modernidade conservadora do Cariri.

REFERÊNCIAS

CORTEZ, Antônia Otonite de Oliveira. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960), disponível em https://cariridasantigas.com.br/wp-content/uploads/2018/09/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Otonite.pdf

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Mana Ermantina Galvão – São Paulo: Martins fontes, 1999.

MENESES Eduardo Diatahy Bezerra. Romarias e o Juazeiro do Padre Cícero. In: Anais do III Simpósio Internacional sobre o Padre Cícero. Juazeiro-CE, 2004.

TIMBONI, Kétina Allen da Silva. O Surrealismo em Salvador Dalí, Pablo
Picasso e Eugenio Granell
, disponível em:
https://www.ufrgs.br/ppgletras/wp-content/uploads/2020/06/TIMBONIKetina.pdf.

WILKER, José. Revista Globo Rural, Editora Globo, Rio de Janeiro, 1995.