13 de abril de 2023

Como Amilcar Cabral inspirou a pedagogia de Paulo Freire

 

Ilustração de Anastasya Eliseeva.


A influência de Frantz Fanon no pensamento de Paulo Freire é bem conhecida, mas o patrono da educação brasileira também se inspirou muito em Amílcar Cabral, o intelectual revolucionário de Guiné-Bissau.

Amílcar Cabral nasceu em 12 de setembro de 1924 em Bafatá, Guiné-Bissau, uma das colônias africanas de Portugal. Foi morto em 20 de janeiro de 1973 por assassinos fascistas portugueses poucos meses antes de o movimento de libertação nacional, no qual desempenhou um papel central, para conquistar a independência da Guiné-Bissau.

Cabral e os demais líderes do movimento entenderam que estavam travando uma luta anticolonial mais ampla e numa guerra de classes global e, como tal, seus inimigos imediatos não eram apenas os governos coloniais de determinados países, mas o colonialismo português em geral. Durante 500 anos, o colonialismo português foi construído a partir do tráfico de escravos e da pilhagem sistemática das suas colônias africanas: Moçambique, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola e Cabo Verde.

Apesar do enfoque mundial na luta do Vietnã, o dinamismo inspirador da campanha travada na Guiné-Bissau – juntamente com a figura de Cabral – chamou a atenção internacional. Na introdução a uma das primeiras coletâneas de escritos e discursos de Cabral, Basil Davidson descreveu ele como alguém que expressou um genuíno “interesse duradouro por todos e tudo que veio em seu caminho”.

Como resultado de seu papel como líder do movimento de libertação nacional por cerca de 15 anos, Cabral tornou-se um teórico amplamente influente da descolonização e da reafricanização não determinística e criativa. O educador de renome mundial Paulo Freire, numa apresentação em 1985 sobre as suas experiências na libertação da Guiné-Bissau como uma espécie de consultor militante, conclui que Cabral, juntamente com Che Guevara, representam “duas das maiores expressões do século XX”. Freire descreve Cabral como “um marxista muito bom, que fez uma leitura africana de Marx”. Cabral, para Freire, “viveu plenamente a subjetividade da luta. Por essa razão, ele teorizou” enquanto liderava.

Embora não seja totalmente reconhecida no campo da educação, a teoria e prática anticolonial de Cabral também aguçou e influenciou a trajetória do pensamento de Freire. Através do processo revolucionário liderado por Cabral, a Guiné-Bissau tornou-se líder mundial no que agora se poderia denominar como formas descoloniais de educação, o que comoveu Freire profundamente.

Cabral sabia que o povo não deve apenas compreender abstratamente a interação das forças por trás do desenvolvimento da sociedade, mas deve forjar uma prática anticolonial que concreta, coletiva e criativamente, se veja como uma dessas forças.

Cabral sabia que para derrotar o colonialismo português na Guiné-Bissau, a luta de libertação não poderia apenas reproduzir as táticas de lutas de outros contextos, como o de Cuba. Em vez disso, cada luta particular deve basear suas táticas em uma análise das especificidades de seu próprio contexto. Por exemplo, embora reconhecendo o valor dos princípios gerais que Che Guevara delineou em sua Guerra de Guerrilha, Cabral comentou que “ninguém comete o erro, em geral, de aplicar cegamente a experiência alheia ao seu próprio país. Para determinar as táticas de luta em nosso país, tivemos que levar em consideração as condições geográficas, históricas, econômicas e sociais de nosso próprio país.”

Cabral se concentrou nos desenvolvimentos políticos necessários para a construção de um movimento unido pela libertação nacional. Em suas formulações, ele argumentou que a luta armada estava intimamente ligada à luta política, ambas parte de uma luta cultural mais ampla.

A resistência, para Cabral, também é uma expressão cultural. O que isto significa é que “enquanto parte dessa gente pode ter uma vida cultural, a dominação estrangeira não pode ter a certeza da sua perpetuação”. Nessa situação, então, “em um dado momento, dependendo de fatores internos e externos … a resistência cultural … pode assumir novas formas (políticas, econômicas e armadas), a fim de … contestar a dominação estrangeira”. Na prática, as culturas indígenas ainda vivas que conduziram séculos de resistência anticolonial iriam se fundir organicamente com, e emergir de dentro, da libertação política e nacional dos movimentos socialistas.

Na prática, Cabral promoveu o desenvolvimento da vida cultural do povo. Cabral encorajou não apenas um esforço militar mais intensificado contra os portugueses, mas um esforço educacional mais intensificado nas áreas libertadas da Guiné-Bissau. Mais uma vez, embora o movimento anticolonial e o processo educacional de descolonização do conhecimento sejam muitas vezes falsamente apresentados como distintos ou mesmo antagônicos, Cabral os conceituou como dialeticamente inter-relacionados:

Criar escolas e difundir a educação em todas as áreas libertadas. Selecionar jovens entre 14 e 20 anos, aqueles que tenham completado pelo menos o quarto ano, para continuar sua formação. Opor sem violência todos os costumes preconceituosos, os aspectos negativos das crenças e tradições de nosso povo. Obrigue cada membro responsável e educado de nosso partido a trabalhar diariamente para o aprimoramento de sua formação cultural. 

Uma parte central do desenvolvimento dessa consciência revolucionária foi o processo de re-africanização. Não se tratava de um apelo ao passado, mas sim de uma forma de recuperar a autodeterminação e construir um novo futuro no país.

Opor-se entre os jovens, principalmente os maiores de 20 anos, a mania de deixar o país para estudar em outro lugar, a ambição cega de se formar, o complexo de inferioridade e a ideia equivocada que leva a crer que quem estuda ou faz os cursos se tornarão, assim, privilegiados em nosso país amanhã.

Cabral incentivou uma pedagogia de paciência e compreensão como a abordagem correta para conquistar e fortalecer o movimento.

Por isso Paulo Freire descreve Cabral como um daqueles “líderes que está sempre com o povo, ensinando e aprendendo mutuamente na luta de libertação”. Como pedagogo da revolução, para Freire, a “preocupação constante” de Cabral era a “paciente impaciência com que invariavelmente se entregava à formação política e ideológica dos militantes”.

Este compromisso com o desenvolvimento cultural do povo como parte de uma luta mais ampla pela libertação influenciou seu trabalho educacional nas zonas libertadas. Paulo Freire escreve que também informava “a ternura que demonstrava quando, antes de ir para a batalha, visitava as crianças nas escolinhas, compartilhando suas brincadeiras e sempre tendo a palavra certa para lhes dizer. Ele as chamava de ‘flores da nossa revolução’”.

Como pedagogo da revolução, Davidson se refere a Cabral como “um educador supremo no sentido mais amplo da palavra”.

A importância da educação foi elevada a novos patamares por Cabral a cada oportunidade. Portanto, fazia sentido para a Comissão de Educação da Guiné-Bissau recém-libertada convidar o maior especialista do mundo em abordagens descoloniais da educação, como Paulo Freire, para participar do desenvolvimento de seu sistema de educação.

Paulo Freire fazia parte de uma equipe do Instituto de Ação Cultural do Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas. Sua tarefa era ajudar a erradicar o resíduo colonial que restou como consequência de gerações de educação colonial destinadas a desafricanizar o povo. Assim como o modelo capitalista de educação terá que ser substituído ou severamente refeito, o modelo colonial de educação teve que ser desmontado e reconstruído novamente.

A educação colonial herdada tinha como um dos seus principais objetivos a desafricanização dos nacionais. Foi discriminatório, medíocre e baseado no verbalismo. Não poderia contribuir em nada para a reconstrução nacional porque não foi constituída para este fim.

O modelo colonial de educação foi projetado para fomentar um sentimento de inferioridade na juventude. A educação colonial com resultados predeterminados busca dominar os alunos tratando-os como se fossem objetos passivos. Parte desse processo foi negar a história, cultura e línguas do povo. Da forma mais cínica e perversa, a escola colonial transmitia a mensagem de que a história dos colonizados realmente só começava “com a presença civilizadora dos colonizadores”.

Na preparação para a visita, Freire e sua equipe estudaram as obras de Cabral e aprenderam o máximo possível sobre o contexto. Refletindo sobre um pouco do que aprendeu com Cabral, apesar de nunca o ter conhecido, Freire diz o seguinte:

Com Cabral, aprendi muitas coisas… Mas aprendi uma coisa que é necessária para o educador progressista e para o educador revolucionário. Eu faço uma distinção entre os dois: para mim, um educador progressista é aquele que trabalha na sociedade de classes burguesas como a nossa, cujo sonho vai além de apenas melhorar as escolas e o que precisa ser feito. E vai além porque o que [eles] sonham é a transformação radical de uma sociedade burguesa de classes em uma sociedade socialista. Para mim, este é um educador progressista. Considerando que um educador revolucionário, a meu ver, é aquele que já se encontra situado em um nível muito mais avançado, tanto social quanto historicamente, dentro de uma sociedade em processo.

Para Freire, Cabral foi certamente um educador revolucionário avançado. Rejeitando a predeterminação e o dogmatismo, a equipe de Freire não construiu planos de aula ou programas antes de ir para a Guiné-Bissau para serem impostos ao povo.

Ao chegar no país, Freire e seus colegas continuaram a ouvir e discutir o que aprenderam com as pessoas. Somente aprendendo sobre o trabalho educacional do governo revolucionário eles poderiam avaliá-lo e fazer recomendações. A orientação, isto é, não pode ser oferecida fora da realidade concreta do povo e de sua luta. Esse conhecimento não pode ser conhecido ou construído sem a participação ativa dos alunos como um coletivo.

Freire tinha consciência de que a educação que estava sendo criada não poderia ser feita “mecanicamente” e deveria ser formulada pelo “projeto da sociedade a ser criada”. Embora Cabral tenha sido assassinado, seus escritos e sua liderança ajudaram na criação de uma força com a clareza política necessária para conter a resistência emergente daqueles que ainda carregavam a velha ideologia.

Por meio deste processo, os líderes revolucionários encontrariam professores “capturados” pela velha ideologia que trabalhavam conscientemente para minar a nova prática descolonial. Outros, no entanto, também conscientes de que são capturados pela velha ideologia, ainda assim se esforçavam para se libertar dela. O trabalho de Cabral sobre a necessidade da classe média, incluindo os professores, cometer suicídio de classe, foi instrutivo. A classe média tinha duas opções: trair a revolução ou cometer suicídio de classe.

O trabalho para construir um sistema de educação reconstituído já estava em andamento durante a guerra nas zonas libertadas. O desafio pós-independência era melhorar tudo o que havia sido realizado em áreas que foram liberadas antes do fim da guerra. Nessas áreas libertadas, concluiu Freire, os trabalhadores, organizados através do partido, “tomaram nas mãos a questão da educação” e criaram “uma escola de trabalho, intimamente ligada à produção e dedicada à formação política dos educandos”.

Ao descrever a educação nas zonas libertadas, Freire afirma que ela “não só expressou o clima de solidariedade induzido pela própria luta, mas também o aprofundou. Encarnando a presença dramática da guerra, buscou o passado autêntico do povo e se ofereceu para o seu presente”.

Depois da guerra, o governo revolucionário decidiu não fechar as escolas coloniais restantes enquanto um novo sistema estava sendo criado. Em vez disso, eles “introduziram algumas reformas fundamentais capazes de acelerar as transformações radicais”. Por exemplo, os currículos que estavam saturados de ideologia colonialista foram substituídos. Os alunos, portanto, não aprenderiam mais a história da perspectiva dos colonizadores. A história da luta de libertação contada pelos ex-colonizados foi um acréscimo fundamental.

No entanto, uma educação revolucionária não se contenta em simplesmente substituir o conteúdo a ser consumido passivamente. Em vez disso, os alunos devem ter a oportunidade de refletir criticamente sobre seu próprio processo de pensamento em relação às novas ideias. Para Freire, esse é o caminho pelo qual os sujeitos passivos da doutrinação colonial começam a se tornar sujeitos mais ativos.

Freire e sua equipe procuraram “ver o que realmente estava acontecendo nas limitadas condições materiais que sabíamos que existiam”. O objetivo claro era, portanto, “descobrir o que poderia ser feito de melhor nessas condições e, se isso não fosse possível, pensar em formas de melhorar as próprias condições”.

O que Freire e sua equipe concluíram foi que “os alunos e trabalhadores estavam engajados em um esforço preponderantemente criativo”, apesar dos muitos desafios e poucos recursos materiais. Ao mesmo tempo, caracterizaram “os erros mais evidentes” que observaram como resultado da “impaciência de alguns dos professores que os levou a criar as palavras em vez de desafiar os alunos a fazê-lo por si próprios”.

O trabalho e a prática de Freire inspiraram o que se tornou um movimento pedagógico crítico mundial. Cabral é uma influência centralmente importante, embora em grande parte não reconhecida, desse movimento. No último livro escrito antes de sua morte, intitulado Cartas a quem ousa ensinar, a influência de Cabral sobre Freire parece ter permanecido central, pois ele insistiu que o livro era “importante para lutar contra as tradições coloniais que trazemos conosco”.

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Com informações do Jacobin.

Mário Frias, ex-ministro de Bolsonaro, é punido por racismo contra o historiador Jones Manoel

 

(FOTO | Reprodução).

O deputado federal e ex-secretário Mário Frias foi censurado pela Comissão de Ética Pública por fazer publicações racistas em redes sociais. Em 2021, Frias fez um comentário racista sobre o historiador e ativista negro Jones Manoel. O post foi apagado pela rede social por violar o padrão da comunidade.

A Comissão de Ética Pública também aplicou sanções ao ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, devido às suas manifestações públicas consideradas antiéticas em relação às Universidades Federais. Em uma entrevista em 2019, o ex-ministro fez acusações infundadas de que as universidades estavam envolvidas no cultivo de maconha e produção de drogas sintéticas em seus laboratórios.

Weintraub já havia sido condenado pela Justiça Federal de Minas Gerais em um processo que se iniciou em 2019, resultando em uma indenização de R$ 40 mil pelo mesmo comentário, como publicou o G1. A Comissão de Ética Pública analisou o caso e também tomou medidas punitivas contra o ex-ministro.

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Com informações da Mídia Ninja.

12 de abril de 2023

Professor Nicolau Neto realiza oficina sobre saberes afro-indígenas nos livros didáticos

 

Professor Nicolau Neto realiza oficina sobre saberes afro-indígenas nos livros didáticos. (FOTO | Material da Oficina). 


Por Nicolau Neto, editor

Em 9 de janeiro deste ano a Lei 10.639/2003, que tornou o ensino da História e Cultura afro-brasileira e africana em escolas públicas e particulares do Brasil, completou 20 anos. Esta mesma lei foi alterada em 2008, que versa acerca da obrigatoriedade da História e Cultura afro-brasileira e indígena e, ambas modificaram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDB/96). Apesar de tantos anos que entraram em vigor, elas ainda não são cumpridas em sua plenitude e, em alguns casos se limitam apenas ao artigo 79-B que foi inserido na LDB, tratando da inclusão no calendário escolar do “dia 20 de novembro como o dia Nacional da Consciência Negra”.

9 de abril de 2023

PT de Nova Olinda reitera sua posição por permanecer na oposição

 

Vereador Aureliano Souza. (FOTO | Acervo pessoal).


Por Nicolau Neto, editor

Um dos assuntos mais comentados nos últimos dias em Nova Olinda, município da região do cariri cearense, foi a decisão tomada por uma das principais lideranças sindicais e do Partido dos Trabalhadores (PT) local em aderir ao grupo do atual prefeito para assumir cargo na gestão.

No sábado, 08, o diretório do partido se reuniu para avaliar a decisão individual e tomar uma posição. Em nota lançada nas redes sociais de integrantes da agremiação, constata-se que nada mudou em relação a oposição a gestão municipal.

As decisões políticas de membros do partido em assumir cargos na prefeitura são pessoais e não correspondem às posições das suas lideranças”, diz trecho da nota assinada pelo vereador e presidente da sigla, Aureliano Souza.

Na Câmara, a oposição vem sendo defendida principalmente por dois parlamentares. Além do supracitado, tem também a vereadora e sindicalista Andreia Silva, presidente do Partido Democrático Trabalhista (PDT).

Confira abaixo a nota:




8 de abril de 2023

Petronilha Gonçalves: brasileiro ainda quer ser visto como herdeiro dos europeus

 

(FOTO | Reprodução | YouTube | UFPR TV).


Passados 20 anos desde que lei tornou obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira, houve avanços, mas implementação ainda enfrenta entraves, avalia a Profa. Doutora, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva.

Sancionada há 20 anos, a lei 10.639 estabelece a obrigatoriedade do ensino sobre história e cultura afro-brasileira nas escolas do país. Celebrada como forma de apresentar aos estudantes novos aspectos do passado do Brasil, a legislação ainda enfrenta entraves quanto à sua aplicação.

A avaliação é da professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pós-doutora em Ciências Humanas pela University Of South Africa (Unisa) e atualmente professora da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).

Petronilha foi relatora da comissão que regulamentou a lei, estabelecendo as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. De acordo com a professora, 20 anos após a lei ser sancionada, ainda falta um acompanhamento mais estruturado sobre esse ensino nos níveis federal, estadual e municipal.

Caberia ao Ministério da Educação, às secretárias de educação estadual e municipal estabelecer um programa sistemático de avaliação. Não há uma ação que cubra todo o país. [Falta dizer] ‘vamos agora avaliar o que está sendo feito no Brasil sobre a lei 10.639’, identificar o que as escolas têm feito na prática, os planos de ensino dos professores, o projeto político-pedagógico”, afirma.

Apesar dos avanços e da maior disseminação da cultura afro-brasileira nas escolas e na sociedade de maneira geral, Petronilha acredita que o sucesso da lei nos próximos anos depende de um projeto de país. “O brasileiro ainda tem o anseio de ser visto como se fosse herdeiro unicamente dos europeus. Nós avançamos, mas ainda há um longo caminho pela frente. E tudo vai depender do projeto de nação.”

Passados 20 anos desde que a lei 10.639 foi sancionada, o Brasil conhece bem a cultura afro-brasileira?

Essa é uma avaliação particular a partir do que tenho visto nos projetos com que tive contato desde que a lei foi implementada. Essa avaliação recai sobre o poder que o texto legal tem para influir em um processo de educação e de sociedade. E o que nós temos visto é que há uma construção conjunta para o estudo da história dos povos africanos, afro-brasileiros e da própria cultura do país. No meio disso tudo, há uma disputa sobre distintos tipos de sociedade. Há uma construção conjunta, mas que nem sempre é colaborativa. E há um grupo que ainda se baseia no Brasil do século 16, onde uma parcela da população devia ser tratada de maneira distinta a partir da sua origem étnica-racial. O brasileiro ainda tem o anseio de ser visto como se fosse herdeiro unicamente dos europeus. Nós avançamos, mas ainda há um longo caminho pela frente. E tudo vai depender do projeto de nação.

A lei tem cumprido o papel de aplacar o racismo no Brasil?

Digo que sim e não. Muitas pessoas não negras passam a se dar conta do tipo de sociedade em que vivem e das relações que elas mantêm, por exemplo, no ambiente de trabalho, no transporte público, no supermercado, no bairro e nas igrejas. As pessoas passam a identificar o lugar do outro na construção da nação, nesse caso, das populações africanas e indígenas. A lei, portanto, visa também atuar nesse microcosmo das relações individuais sociais, na organização de uma sociedade ampla e na compreensão de que, assim como pertencemos a uma família, a um determinado grupo étnico-racial, nós também estamos em contato com outros núcleos com outros tipos de humanidade. É um salto difícil de dar, mas não é por isso que nós vamos desistir.

Há como medir se a aplicação da lei de fato tem acontecido nas escolas?

No geral, as experiências [bem-sucedidas] que nós conhecemos estão relacionadas a pessoas engajadas, com projetos de sociedade em que todos sejam respeitados, negros e não negros. Mas são ações quase sempre individuais. Caberia ao Ministério da Educação, às secretárias de educação estadual e municipal estabelecer um programa sistemático de avaliação. Não há uma ação que cubra todo o país. [Falta dizer] ‘vamos agora avaliar o que está sendo feito no Brasil sobre a lei 10.639’, identificar o que as escolas têm feito na prática, os planos de ensino dos professores, o projeto político-pedagógico. Não apenas dizer se a lei está sendo implementada. Mas como está sendo implementada, o que precisamos fazer agora e aonde queremos chegar. Talvez nos falte ainda uma linguagem comum, inclusive com o Ministério da Educação, para fazer uma grande avaliação com os estados para definir novos e diferentes rumos para a aplicação da lei. A política educacional não pode ser de um professor ou de uma instituição.

Diante dessas dificuldades, como avançar?

Penso que as escolas e os professores precisam discutir um projeto de sociedade. Qual projeto nós queremos para o Brasil. Essa é uma discussão que acontece de maneira reservada em alguns ambientes, em iniciativas específicas, mas que precisa alcançar um outro nível de amplitude. Profundidade e frequência. A convivência na escola, entre alunos, professores e servidores nos indica para qual caminho enquanto país? Se não dialogarmos em busca de um caminho comum, que abarque nossa sociedade de maneira mais igualitária, não vamos avançar. E é importante dizer que isso não deve ser restrito apenas aos profissionais negros. Professores não negros têm a responsabilidade de levar para a sala de aula a temática da lei.

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Com informações do Instituto Búzios.

7 de abril de 2023

Fundação Palmares revoga ato de Bolsonaro que dificultava regularização de quilombolas

 

Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Agenda da luta dos quilombolas parcialmente atendida pela revogação de portaria de Bolsonaro contra comunidades. (FOTO|© Marcello Casal Jr | Agência Brasil).

A Fundação Cultural Palmares revogou medidas baixadas pelo governo de Jair Bolsonaro que dificultavam o reconhecimento de comunidades quilombolas. A portaria, publicada nesta quinta-feira (6) no Diário Oficial da União, restabelece normas editadas em 2007 para a instituição do Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos.

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnicos raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com formas de resistência à opressão histórica sofrida”, diz a portaria assinada pelo presidente da Fundação Palmares, João Jorge Rodrigues.

De acordo com o texto, também foi instituído um grupo de trabalho para elaborar um novo ato normativo para o Cadastro Geral de Remanescente dos Quilombos e estabelecer os procedimentos para expedição da Certidão de Autodefinição pela Palmares. O grupo terá duração máxima de 90 dias e pode ser prorrogado uma vez.

Entraves

Em 2007, o então governo Lula estipulou e simplificou as regras para o reconhecimento das comunidades quilombolas. Entre elas, por exemplo, era necessária a apresentação de ata de reunião em que o grupo se autodefinia como remanescente de quilombolas. Também se exigiam dados, documentos e um relato “sintético” que atestassem a história do grupo.

Passou a ser solicitado, por exemplo, um relato detalhado da trajetória do grupo, com dados, documentos ou estudos realizados. Era preciso, ainda, que a comunidade tocasse o processo por e-mail, quando antes todos os documentos poderiam ser remetido pelos Correios. A exigência praticamente impediu o acesso à certidão, já que a maioria das comunidades quilombolas não têm internet.

Lutas quilombolas

A revogação das medidas impostas pelo governo anterior deverá destravar milhares de pedidos de regularização das comunidades, que têm na certificação emitida pela Palmares, a etapa inicial de reconhecimento para posterior titulação das áreas. A medida também constava no relatório da equipe de transição do governo do Lula.

A portaria revogada foi uma das demandas do movimento com relação ao atual governo, já para os primeiros 100 dias de gestão. Foi um ganho político do movimento, da luta quilombola”, destacou Biko Rodrigues, coordenador-executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

É algo que indica que há sinais claros de que poderemos avançar. A gente já vinha cobrando o Estado que revogasse essa portaria. Ela estava dificultando o reconhecimento e a certificação dos territórios quilombolas”, completou o ativista.

Longa jornada

Pelas contas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em um estudo de 2019, existiam 5.972 localidades quilombolas no Brasil. A pesquisa foi feita a partir da base territorial do Censo 2022 e de dados do Censo 2010.

Desse total, cerca de 3,5 mil já estão certificadas pela Palmares, mas apenas 206 estão tituladas. A etapa final de regularização, que termina justamente na titulação e posse definitiva das terras, é conduzida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em processos de desapropriação semelhantes aos de reforma agrária.

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Com informações da RBA.

O silêncio como norma de conduta

 

(FOTO | Reprodução | Internet).

Por Karla Alves, Colunista

O silêncio de uma mulher é um eficiente sistema simbólico de reprodução cultural dos estereótipos e preconceitos que sustentam a dominação masculina. Este silêncio faz parte de um sistema de governo da palavra no campo familiar, assim como também ocorre em outras instituições do campo religioso ou político, por exemplo. Isso está relacionado com a forma como a sociedade tem moldado, através da cultura, os espaços de poder de gênero, nos mostrando de maneira evidente que as diferenças de gênero e as desigualdades permanecem em vigor, mantendo intactos os espaços tradicionais de poder cultivados por meio do uso da linguagem.

A linguagem é, portanto, uma das formas de reprodução e perpetuação da dominação masculina onde seus beneficiários se negam a refletir sobre suas práticas impositivas de silenciamento e sobre sua necessidade de anular e/ou invalidar qualquer discurso que o leve a refletir sobre si mesmo e sobre sua constante (consciente ou não) prática de manutenção do seu "direito" de comandar, controlar e oprimir para comandar.

A linguagem possui o poder de construir representações simbólicas do mundo social e é através dela, seja qual for o modo de expressão (linguagem visual, musical, corporal, escrita, falada, etc.), que vamos percebendo e apreendendo as estruturas históricas da ordem vigente. Por isso considerei tão simbólico o fato de eu estar sendo, pela segunda vez, ameaçada de morte por um homem (meu vizinho e parente dos meus filhos) que alegou ter me visto “dando língua” a ele. É pertinente, para este assunto a que venho tratar aqui, destacar o episódio em que este mesmo homem me ameaçou de morte, uma primeira vez, incomodado pelo uso que fiz da minha fala. Nesta segunda vez seu delírio fantasiou a minha imagem lhe destinando a língua, como se eu estivesse a lhe apontar uma arma, o que fez despertar em mim a necessidade de refletir sobre este ato simbólico que está diretamente relacionado à linguagem como mecanismo de dominação que exige o silêncio como forma de se efetivar.

Como parte indissociável da linguagem, o silêncio também comunica e também expressa a estrutura histórica de dominação ao qual está submetido, pois faz parte de um trabalho de socialização que tende a diminuir, invalidar, negar e anular com o objetivo de conduzir a uma "aprendizagem das virtudes negativas da abnegação, da resignação e do silêncio" (BOURDIEU), muitas vezes levando a pessoa silenciada a acreditar que tais virtudes negativas sejam, para ela, positivas.

E por se tratar de uma forma de dominação que se estabelece por meio de vias simbólicas da produção de representações e de imagens, na maior parte das vezes esse tipo de violência passa invisível aos olhos da consciência da própria vítima, já que é levada a perceber a ordem social através de "esquemas inconscientes" de apreciação da estrutura histórica (BOURDIEU) da ordem em vigor, que também é transmitida por herança social, como podemos perceber no caso das mulheres através das imagens e representação da delicadeza, sensibilidade, emotividade exacerbada e sem controle que "dificultariam" sua expressão por meio de uma linguagem racional. Isso tem servido de justificativa para a suposta necessidade de proteção, de tutoria e de um mentor ou porta voz que regule, controle, comande e, portanto, substitua o protagonismo das mulheres sobre sua própria expressividade. Não é que a mulher não possa ser delicada e sensível, a questão é pensar sobre o uso que disso é feito para dar sustentação a um exercício de poder e dominação a partir da interpretação transmitida através das imagens e representações sobre essa delicadeza e essa sensibilidade.

Outro caso de imagens e representações que visam comunicar o silêncio como norma de conduta se refere à população negra, aonde o silêncio como mecanismo de controle vem sendo socialmente herdado desde a escravidão e que por meio do parlamento pré-abolicionista foi muito bem arquitetado para garantir a tutoria sobre suas práticas nas mãos do mesmo senhoril que através da escravização humana exerceram violentas formas de controle para, assim, explorar a população negra e que no pós-abolição controlariam essa mesma população através da "necessidade de proteção aos libertos" (JOSELI NUNES MENDONÇA) para garantir que a população negra liberta permanecesse trabalhando para seus “ex” senhores (e, doravante, para os herdeiros destes “ex” senhores).

Porém, ao invés das imagens representativas de delicadeza, sensibilidade e emotividade relacionada às mulheres, aqui as imagens e representações visam comunicar a ignorância, a incapacidade de dirigir-se, a incapacidade civil, a indolência, a selvageria, o baixo desenvolvimento mental, dentre outras características racialmente atribuídas por uma ideologia racista e dominante, justificando, com isso, a mesma necessidade de proteção, de tutoria e de um mentor ou porta voz que regule, controle, comande e, portanto, substitua o protagonismo desta população quanto a seu modo de ser e de estar no mundo.

Contudo, a proteção aqui mencionada está mais para proteger o restante da sociedade desta possível ameaça que precisa ser vigiada e controlada para não oferecer perigo, não se tratando, portanto, de uma proteção patriarcal que se relaciona mais ao exemplo das mulheres a que me referi acima. Aqui a proteção assume um caráter racista associado à imagem de ameaça a qual a população negra vem sendo representada ao longo da história.

E quando o machismo se une ao racismo articulando uma linguagem que expresse e transmita imagens e representações sobre a mulher preta para uma sociedade submetida a um regime patriarcal e estruturalmente racista, sendo mulher, apenas o atributo relativo ao descontrole emocional lhe acompanha por passar uma ideia que a fará ser vista pela virtude negativa da raiva descontrolada, por exemplo, associando esta mulher preta à imagem e representação da agressividade como algo inato à sua natureza.

Aqui a imagem de “descontrole emocional” atribuído às mulheres assume um caráter racial, criando a representação racista de uma mulher que oferece ameaça. Sendo Preta, a esta mulher serão associadas imagens e representações que visam comunicar a ignorância, a incapacidade de dirigir-se, a incapacidade civil, a indolência, a selvageria, o baixo desenvolvimento mental e outros atributos racistas que servem de justificativa para o domínio público sobre seu corpo e suas ideias (geralmente não conferidas a ela), assim como para destinar a estas mulheres o lugar de servidão na sociedade, não somente para os homens beneficiários do poder hegemônico.

Este lugar de servidão também é destinado às mulheres pretas pelos homens pretos e pelas mulheres brancas e, algumas vezes, pelas próprias mulheres pretas pertencentes a classes sociais mais distantes e acima da pobreza e da miséria, já que a ascensão econômica cria a ilusão de distanciamento das imagens e representações racialmente construídas e transmitidas numa sociedade de classes que é também patriarcal e estruturalmente racista, cuja linguagem articulada entre estes fatores se estabelece como forma de reprodução e perpetuação de dominação.

(FOTO | Reprodução | Internet).


Então, se o sistema de governo da palavra se utiliza do poder que a linguagem possui de construir representações simbólicas do mundo social, através das quais vamos percebendo e apreendendo as estruturas históricas da ordem vigente por meio de "esquemas inconscientes" de apreciação da estrutura histórica, fazendo com que o silêncio de uma mulher se torne um eficiente sistema simbólico de reprodução cultural dos estereótipos e preconceitos que sustentam a dominação masculina por estarmos inseridas num processo de socialização que tende a diminuir, invalidar, negar e anular o poder de fala das mulheres com o objetivo de conduzir a uma "aprendizagem das virtudes negativas da abnegação, da resignação e do silêncio" (BOURDIEU), e se as mulheres pretas sustentam o peso de toda essa estrutura de negação e silenciamento por estarem na extrema ponta contrária de quem ocupa o lugar de poder nessa estrutura de dominação (homens/brancos), consequentemente, se esta mulher preta desobedece ao sistema de governo da palavra que lhe é imposto e que cobra dela a correspondência necessária a manutenção e perpetuação da dominação masculina através de seu absoluto silêncio ela, através de sua voz, será vista como uma enorme ameaça que deve ser contida como a um animal abatido. Sua língua é, portanto, uma arma apontada para o sistema de dominação.

E para que volte ao lugar de servidão que foi destinado a esta mulher preta, ela deverá ser invalidada e controlada, seja por meio da desqualificação verbal, geralmente cometida através da representação simbólica de “doida” ou “louca”, seja através da ameaça física utilizada sempre que o mecanismo simbólico da linguagem não surte o efeito esperado. Assim a violência se faz absolutamente necessária em nossa sociedade, para manter a tradição de dominação prevista pela estrutura histórica que mantém a ordem de dominação social vigente.

O meu silêncio garante a paz injusta dos homens que se beneficiam deste tipo de opressão. O meu silêncio mantém a ordem que beneficia aos dominadores e os mantém confortáveis em seus lugares sociais, ainda que seja numa micro esfera de poder, como o campo familiar. É através desta micro esfera que o poder hegemônico se constitui. E o meu silêncio ajuda a manter viva esta doença no núcleo da célula que compõe o grande organismo chamado sociedade, que permanece doente e delirante no seu desejo sádico de dominação.

É para romper com esta ordem violentamente opressora que se fez a minha língua, o meu corpo, o meu coração, a minha inteligência, a minha coragem, a minha liberdade e a minha voz. Eu sou o elo que quebra essa corrente. Avante Mulheres Pretas.


REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da abolição: escravos e senhores no Parlamento e na justiça. São Paulo: Fundação Perceu Abramo, 2001.


6 de abril de 2023

Lei Orgânica do Município de Altaneira completa 33 anos

 

Mesa Diretora da Câmara de Altaneira por ocasião da última sessão. (FOTO/ Ricardo Justino).

Por Nicolau Neto, editor

Na última sexta-feira, 31 de março, a Lei Orgânica do município de Altaneira completou 33 anos de sua promulgação. A passagem foi lembrada e celebrada pelo presidente da Câmara, o vereador Deza Soares (PT).

O momento ocorreu durante a abertura da sessão realizada nesta quarta-feira, 05. No ensejo, Deza trouxe para a cena a lembrança daqueles que participaram da construção e promulgação do documento que teve como presidente o vereador constituinte Raimundo Nogueira Soares, popularmente conhecido por Mundim Soares, que é seu irmão.

Segundo Deza, à época os constituintes promoveram avanços significativos ao município tendo como suporte legal a Lei Orgânica e destacou que em 2011, sob a sua presidência interina, realizou a primeira revisão da lei. “Apresentamos nova Proposta de Emenda à Lei Orgânica Municipal, com a finalidade de realizar uma ampla revisão e atualização da nossa Carta Municipal, com alterações, revogações e implementação de atualização jurídico-política, para harmonizá-la aos avanços de nossa sociedade, inclusive, oportunizado a participação popular com realização de Sessões Itinerantes”, comentou e aproveitou para agradecer aos (as) parlamentares, assessorias, servidores (as), representantes do Executivo e a comunidade como um todo.

Este ano a Lei Orgânica está passando por uma nova reformulação tendo a mesma metodologia da realizada em 2011, indo a cada comunidade e ouvindo-a.