Confesso
que tenho cada vez menos paciência para casos patológicos de burrice violenta.
Aquela que não fica no seu cantinho, mas mostra os dentes e morde.
Antes de prosseguir, vale o aviso: burrice não
é a falta de um conhecimento específico. Um camponês de uma comunidade isolada
pode não saber navegar na internet. Mas duvido que você saiba produzir alimento
a partir da terra como ele. É impossível saber sobre tudo e a beleza de estar
em sociedade é a complementaridade dos saberes, a ponto de precisarmos uns dos
outros para sobreviver.
Burro
também não é quem separa sujeito e predicado por vírgula. Muita gente não
entende isso e desvaloriza a opinião do outro por não compartilhar dos mesmos
padrões de fala ou do mesmo universo simbólico. Algumas das pessoas mais sábias
que conheci são iletradas. E alguns dos maiores idiotas têm doutorado.
Significa que os iletrados são melhores que os doutores?. Não. Então, o
contrário? Também não. Pois é burrice achar que usar ou não a norma culta da
língua é condição para participar do debate público.
Trato
aqui da burrice de quem menospreza o conhecimento, seja ele qual for, chegando
a odiar quem o detém ou quem busca aprendizado.
Da
burrice prepotente e apressada, que xinga um texto ou vídeo na rede sem ter
consumido nada além de seu título ou visto o nome do autor ou autora. E, diante
das críticas sobre a superficialidade desse comportamento, rosna, dizendo - no
melhor estilo Donald Trump – que tudo o que é importante pode ser escrito em
uma linha ou um tuíte. Ou que acredita que um produto é ruim simplesmente por
não ter ido com a cara do rótulo.
O
burro é aquele que vê seu preconceito violento como sabedoria.
Essa
burrice, montada na soberba, pensa que já sabe de tudo a ponto de tachar os que
discordam de sua visão de mundo como mal informados, comprados ou manipulados
sem apresentar dados e fatos que corroborem a crítica. Ou tenta calar as vozes
diferentes da sua por encarar a dissonância como ruído e não como música.
Pois
a burrice sempre tenta destruir o conhecimento que ameaça jogar luz sobre ela
própria.
Antes,
se alguém me mostrasse uma imagem de pessoas enlouquecidas em torno de
montanhas de livros em chamas, eu me lembraria de ''Fahrenheit 451'', de
François Truffaut (1966). No filme, livros são proibidos, sob o argumento de
que tornam as pessoas infelizes e improdutivas. Quem lê é preso e
''reeducado''. Se uma casa tinha livros, ''bombeiros'' eram chamados para
queimar tudo.
Hoje,
se me mostrassem uma imagem assim, logo me perguntaria: onde foi desta vez?
Algum grupo fundamentalista islâmico, cristão, judeu ou budista?. Interior dos
Estados Unidos? Neonazistas europeus? África? Coreia do Norte? China? São
Paulo, Rio ou uma grande cidade brasileira?.
No
dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de
diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da
literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões impostos. Centenas
de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Freud, entre outros, foram
perseguidos por pensarem diferente da maioria. A Alemanha ''purificou pelo
fogo'' as ideias imundas deles, da mesma forma que, durante a Contra-Reforma, a
Santa Inquisição purificou com fogo a carne, o sangue e os ossos daqueles que
ousaram discordar de sua interpretação da bíblia.
A
burrice também é incapaz de aceitar o próprio erro, transferindo a culpa para o
outro. Ou, diante de um questionamento, foge da autocrítica, dizendo que outra pessoa
ou partido também faz a mesma coisa. A burrice não pede desculpa.
Pois
a burrice de um indivíduo acha que é absolvida pela burrice de outro indivíduo
ou do coletivo.
Nesta
semana, a página de um grupo de extrema direita fez uma enquete entre seus
seguidores, questionando quem eles ''jamais'' votariam para presidente. Muitos
interpretaram mal a pergunta e responderam o inverso, em quem votariam. Até aí,
tudo bem. Quem nunca?.
Então,
os administradores da página informaram várias vezes sobre o erro de
interpretação. O que fizeram os seguidores? Culparam o grupo por ter feito uma
pergunta ''errada''. A certa seria a pergunta de sempre, sem a inversão do
''jamais'', ou seja, aquilo que não levasse à reflexão. Neste caso, pensar foi
visto como um erro e tratado como tal.
A
burrice não aceita a existência de outra versão que interprete os fatos além da
sua. É incapaz de reafirmar sua visão e, ao mesmo tempo, conviver com análises
divergentes. Enxerga a opinião alheia como ''notícia falsa'' não por
desconhecer a diferença entre formatos de textos narrativos e opinativos, mas
por não admitir o conteúdo. A burrice de alguns seguidores de políticos que não
aceitam a existência de divergências ocorre da direita à esquerda, ou seja, não
é monopólio de ninguém.
Isso
só vai ser resolvido com a qualificação do debate público. De acordo com o
sociólogo Bernard Charlot, um saber só tem valor e sentido por conta da relação
que ele produz com o mundo. Quando o debate público for mais qualificado, a
pessoa se sentirá mais motivada a procurar se informar melhor e de maneira mais
plural a fim de conviver com seus pares nas redes sociais ou mesmo na vida
offline.
Ler
coisas com as quais concordamos e com as quais não concordamos é um primeiro
passo. Ler fontes de informação que não sejam anônimas, ou seja, que se
responsabilizam pelo que divulgam, é outro. Preferir fontes que baseiam seus
relatos em provas e não em suposições ou teorias da conspiração. Que são
gostosas, mas burras.
A
escola deve promover debates e reuniões para que todos entendam que tipo de
mensagem estão passando a seus filhos – ainda mais neste ano eleitoral. Dois
pais ou duas mães que defendam o voto em um candidato X e dois pais ou duas
mães que defendam o voto em um candidato Y podem ser convidados para apresentar
seus pontos de vista para os alunos em uma turma, de forma respeitosa. Pois a
aprender como fazer a discussão de valores com respeito a ideias divergentes é
tão importante quanto absorver conhecimento técnico. Quando uma escola fecha os
olhos a isso, transmite uma ideia. Em outras palavras, o silêncio não é neutro.
A
opinião pública e parte dos intelectuais alemães se acovardaram ou acharam
pertinente o fogaréu nazista descrito acima, levado a cabo por estudantes que
apoiavam o regime. Deu no que deu. Hoje, vemos muitos se acovardarem diante de ondas
burras, intolerantes e violentas frente ao conhecimento. Não, não estou
comparando nossa sociedade com a nazista. Apenas dizendo que a burrice pode ser
atemporal. E universal.
Como
sempre digo: falta amor no mundo, mas falta interpretação de texto. E calmante
na água de muita gente. (Por Leonardo
Sakamoto, em seu Blog).
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(Foto: Reprodução/ Blog do Sakamoto). |