Na semana passada, sem muito alarde, a reforma tributária brasileira sofreu mais um duro golpe. O Ministro do STF Alexandre de Moraes decidiu extinguir, sem analisar o mérito, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) proposta pelo Governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), a qual pedia a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF).
Do
Justificando - A ADO é uma espécie de
ação que só pode ser proposta por algumas autoridades nos casos em que uma
norma constitucional não esteja sendo posta em prática por omissão de um dos
Poderes. No caso do IGF, a Constituição (art. 153, VII) prevê a regulamentação do
imposto através de lei complementar, mas, mesmo após quase três décadas, tal
lei ainda não foi criada.
No
caso em questão, Alexandre de Moraes decidiu extinguir a ação por acreditar que
o Governador Flávio Dino não demonstrou a pertinência temática para seu pedido.
Isso porque os governadores, apesar de legitimados a propor uma ADO no STF,
devem demonstrar qual o interesse de seu Estado no pedido, ao contrário de
outras autoridades como o Presidente ou o Procurador Geral da República, que
podem ingressar com a ação independente da pertinência.
Fato
é que, mais uma vez, uma simples canetada freou qualquer possibilidade de
mudança no injusto sistema tributário brasileiro. Caso semelhante ocorreu
quando Haddad, então prefeito de São Paulo, viu sua proposta de mudanças no
IPTU ser barrada também pelo Judiciário em 2013. Paralelamente, desde a
redemocratização, o Legislativo vem se omitindo quando o assunto é a reforma
tributária, e os editoriais de jornalões da grande mídia sempre chiam quando o
aumento de impostos para os mais ricos surge como solução a cada nova crise
econômica do país.
Com
a forte reação de setores da elite conservadora, bem simbolizada pela campanha
“Não vou pagar o pato” protagonizada pela FIESP, o Brasil segue tendo um dos
sistemas tributários mais injustos do mundo. Segundo levantamento do IBPT, mais
de 41% dos rendimentos dos brasileiros são “consumidos” por tributos. Mas para
além do problema de que o povo não vê o retorno dessa arrecadação na forma de
serviços públicos de qualidade, uma análise mais detalhada demonstra que ela é
feita de maneira desigual. Isso porque, desse total arrecadado, mais de 56% se
dá através da tributação do consumo da população, enquanto apenas 44% incide
sobre renda e patrimônio.
Deve-se
lembrar que a maior parte do consumo tributado é de bens de primeira
necessidade, consumidos por qualquer brasileiro, e que as prateleiras de
supermercado não conseguem fazer distinção entre os consumidores pobres e ricos
na hora de incidir impostos, salvo em raros casos de artigos de luxo. Segundo o
IBPT, 42,43% da arrecadação tributária sobre o consumo é relacionada com gastos
com habitação, 23,81% com transporte, 14,73% com alimentação e 5,45% com
vestuário.
Esse
sistema que prefere a cobrança de impostos sobre o consumo, ao invés de renda e
patrimônio, aumenta ainda mais a desigualdade do país, além de doer mais no
bolso dos mais pobres. É o que chamamos de sistema tributário regressivo, em
contraste com o progressivo, que se caracteriza por cobrar mais dos mais ricos através
de impostos sobre renda e patrimônio. Não à toa, em 2011 o IPEA constatou que
os 10% das famílias mais pobres do país destinavam 32% de sua renda para pagar
tributos, enquanto os 10% mais ricos dispunham apenas de 21% de sua renda para
tanto.
Como
contraponto à regressividade do sistema tributário brasileiro, temos vários
exemplos mundiais de sistemas progressivos, que dão ênfase na cobrança de
impostos sobre a renda e o patrimônio, desonerando o consumo da população. Tais
sistemas não só aquecem o mercado interno como contribuem para a redução de
desigualdades, pois permitem que o Estado foque sua arrecadação em impostos
onde é possível distinguir se quem os paga são pobres ou ricos.
É
possível, por exemplo, diferenciar se a família que reside em uma casa é de uma
classe alta ou não ao analisar o tamanho do terreno construído, o bairro em que
se localiza e o valor de mercado do imóvel. Dessa forma, pode-se cobrar um alto
imposto sobre uma mansão de um bairro nobre ao mesmo tempo que se isenta o morador
de uma favela. Essa diferenciação não é possível sobre um saco de feijão à
venda no mercado, por exemplo.
Três
dos principais impostos progressivos que existem, e que tem maior capacidade de
distribuir renda, são justamente os impostos sobre renda, grandes fortunas e
heranças e doações. No Brasil, este último é conhecido como ITCMD, cuja
arrecadação compete aos governos estaduais e as alíquotas raramente ultrapassam
pífios 5%. São Paulo, por exemplo, possui uma alíquota única de 4% e, a exemplo
de outros Estados, não possui faixas de progressividade. Por isso mesmo o ITCMD
representou, em 2014, apenas 0,25% do total da arrecadação da Receita Federal.
A situação contrasta com a alíquota de outros países mais iguais e
desenvolvidos. A média dos países da OCDE, por exemplo, é de 15%. Na Bélgica,
na França e no Reino Unido, ela ultrapassa os 40%, e no Japão ela chega a 55%.
Nos EUA, sede do capitalismo liberal mundial, o valor chega a 30%.
Quando
o assunto é imposto de renda, mais uma vez o Brasil fica atrás. Enquanto o país
apresenta uma alíquota de baixa progressividade com um percentual mínimo para
os não isentos de 7,5% e um máximo de apenas 27,5%, países mais desenvolvidos
não têm medo de cobrar altas alíquotas para as classes mais ricas. Nos EUA, as
faixas vão de 10% a 35% e, na Austrália, de 15% a 45%. O Brasil está atrás da
média de alíquota máxima dos países da OCDE (41,58%), da América Latina
(31,87%) e da União Europeia (33,78%).
Já
na questão do imposto sobre grandes fortunas (IGF), o Brasil segue sem uma
legislação que o regulamente, apesar da cobrança estar prevista na
Constituição. Países desenvolvidos e com bons índices de igualdade social como
Holanda, França, Suíça, Noruega, Luxemburgo, Hungria, Espanha e Islândia adotam
o tributo. Aliás, nestes dois últimos países, o IGF surgiu justamente como uma
medida para combater os efeitos da crise econômica de 2008. Nosso vizinhos
Uruguai e Argentina também são adeptos do imposto.
Já
no Brasil, a criação do IGF continua esbarrando na inércia do Legislativo e,
agora, na caneta do Judiciário. Em tempos de crise econômica, a elite política
e financeira não se envergonha de propor austeridade e cortes de direitos na
área trabalhista como soluções mágicas para o país. Ao mesmo tempo, ignoram
estudos que apontam que a criação do IGF, mesmo com uma alíquota média bastante
baixa, de apenas 1%, e incidindo apenas entre os 5% mais ricos do país, poderia
ter uma capacidade arrecadatória de 100 bilhões de reais ao ano, algo
semelhante à extinta CPMF.
Projetos
para aumentar a arrecadação do país de forma mais progressiva, ou seja,
cobrando mais de ricos e menos de pobres, não faltam. O PLS 139/17 e o PLS
534/11 tratam justamente da criação do IGF. Já a PEC 96/15 permite à União
cobrar um imposto adicional sobre grandes heranças e doações. Em oposição à
reforma tributária, porém, para além de discursos meritocráticos vazios, muitos
pontuam que a criação de impostos como o IGF poderiam fazer os donos de
patrimônio e capital migrarem com seu dinheiro e seus investimentos para outros
países com uma carga tributária menor.
Tal
preocupação tem, sim, certa legitimidade. Aliás, é justamente por conta dela
que Piketty, em “O Capital no Século XXI”, defende que a discussão aconteça de
forma global, propondo a criação de um imposto mundial. Mas Piketty não se
limita a constatar tal risco e observa, também, que a construção de um Estado
fiscal e social em países subdesenvolvidos foi, principalmente entre os anos 80
e 90, sabotada pelos interesses de países ricos, que já haviam construído seu
desenvolvimento social em cima de uma política tributária mais justa que a
nossa. Isso é facilmente comprovado pela diferença gritante, já exposta acima,
entre as alíquotas máximas de impostos sobre renda e patrimônio no Brasil e em
países europeus.
Fato
é que o Brasil ficou muito atrasado quando o assunto é a construção de um
sistema de cobrança de impostos mais progressivo. Falamos de um sistema que
cobra mais dos pobres, praticamente isentando grandes patrimônios de uma classe
alta que tem poder suficiente para controlar canetadas dentro do Judiciário e
do Legislativo e editoriais com frases de efeito na grande mídia.
É
inacreditável que se pense que uma pequena melhoria em um sistema tão defasado
como o brasileiro possa ser uma medida antieconômica que afaste investimentos.
A sociedade brasileira não pode ser refém de uma pequena elite econômica, muito
menos ficar à mercê das decisões de um Judiciário antidemocrático.
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O ministro do STF, Alexandre de Moares, decidiu extinguir, sem analisar o mérito a ADO. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF. |