15 de novembro de 2015

Vasco da Gama é o primeiro clube a enfrentar o Racismo no esporte


Do portal CR Vasco da Gama

No Brasil, o dia 20 de novembro é considerado o Dia Nacional da Consciência Negra, dedicado à reflexão sobre a inserção do negro na sociedade brasileira. A data foi escolhida por coincidir com o dia da morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. Nesta data, procura-se lembrar a resistência do negro à escravidão de forma geral, desde o primeiro transporte de africanos para o solo brasileiro, ocorrido em 1594. Esta celebração é feita desde a década de 1960, embora só tenha ampliado seus eventos nos últimos anos.

No futebol não foi diferente, como escreveu Mário Filho em seu livro O negro no futebol brasileiro: “O mulato e o preto eram, assim, aos olhos dos clubes finos, uma espécie de arma proibida”.

O Vasco sempre foi democrático, desde suas cores (preto, branco e vermelho), que se encaixam na ideia de uma comunhão de etnias. Foi o primeiro clube a eleger um presidente “não branco”, Cândido José de Araújo, em 1904, reeleito no ano seguinte. Lutou contra preconceitos raciais e sociais nos anos 20, contribuindo decisivamente para que o futebol deixasse um esporte exclusivo de descendentes de ingleses e jovens da aristocracia, e foi o único que teve coragem de desafiar o sistema vigente.

Adhemar Ferreira da Silva, atleta olímpico
vascaino que fez história/Divulgação.
O clube, fundado por portugueses, se distinguia de outros criados pela colônia lusitana por abrir suas portas também para brasileiros. De qualquer origem. O critério para ser convidado a defender o clube da Cruz de Malta não era a cor da pele ou a situação social. Era saber tratar bem a bola, tanto que, em 1923, o clube conquistou o Campeonato Carioca, logo em seu ano de estreia na elite carioca.

A reação dos clubes tradicionais não demorou. No ano seguinte, o grupo formado por América, Botafogo, Flamengo e Fluminense decidiu deixar a Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT) e fundar a AMEA (Associação Metropolitana de Esportes Atléticos).

Elenco campeão carioca em 1923/Divulgação.
Pelas regras da nova entidade, os jogadores precisariam provar que estudavam ou trabalhavam. Não em um trabalho qualquer. “Um emprego decente (…). Empregados subalternos eram riscados”, segundo Mário Filho. E precisavam saber ler e escrever corretamente. Além disso, todos os clubes deveriam ter campos e sedes próprios. O Bangu, com um time formado em boa parte por operários da fábrica de tecidos instalada no bairro da Zona Oeste, foi convidado pelo quarteto a ingressar na entidade. Os cinco fundadores tinham peso maior nas votações, garantindo que as suas propostas fossem vitoriosas.

Ao Vasco, foi exigido que 12 jogadores fossem afastados, por não atenderam aos requisitos impostos pela AMEA. Diante do ultimato, o presidente do clube, José Augusto Prestes, assinou um ofício no dia 7 de abril, que ficou famoso na história do futebol carioca e brasileiro, desistindo de participar da nova liga criada. Com isso, o Vasco permaneceu na LMDT, ao lado de outros clubes que não aceitaram as condições ou que não conseguiram cumpriram as exigências impostas, sendo campeão em 1924.

Com mais experiência, o Vasco foi crescendo no mundo do futebol, conquistando títulos e muitos admiradores. A desculpa de que o Cruzmaltino não possuía uma casa para receber os adversários caiu por terra quando, após uma memorável mobilização de torcedores, foi erguido, em menos de 12 meses, um gigante, chamado São Januário, no dia 21 de abril de 1927, em resposta aos que tentaram barrar a ascensão do time de negros e brancos pobres que estava conquistando a elite do futebol carioca.

No ano seguinte, houve  um acordo entre o clube e a AMEA. Nele, o Cruzmaltino manteve seus atletas negros, mulatos e pobres, entrando para a história esportiva do país ao contribuir decisivamente para tornar o futebol um esporte realmente de todos os brasileiros.

Barbosa, goleiro vascaíno no "Expresso da Vitória" e da Seleção Brasileira/Divulgação.
Na temporada de 2011, o Vasco lançou seu terceiro uniforme, com um modelo inspirado no utilizado na década de 20, fazendo referência a atuação do clube naquele período, em prol da inclusão de jogadores negros e de classes mais humildes. No lado esquerdo do peito da camisa, há a imagem de uma mão espalmada em preto e branco. E, na gola, as palavras “Inclusão” e “Respeito”.

Um grande exemplo de processos de inclusão ocorreu no início do século passado, quando o Vasco da Gama foi expulso da Liga de Futebol, porque havia incluído no seu quadro social e desportivo os negros. Hoje, todos os clubes têm negros. O Vasco estava certo. O ingresso de estudantes negros e negras no ensino público superior e a inclusão da população negra na fruição dos bens não pode ser uma exceção. Precisa ser algo de fato integrador.” - Declarou Eloi Ferreira de Araújo, Ministro da Igualdade Racial.

Parque Memorial Quilombo dos Palmares – Uma Maquete Viva


Primeiro equipamento do gênero no País, o Parque Memorial Quilombo dos Palmares reconstitui o cenário de uma das mais importantes histórias de resistência à escravidão ocorridas no mundo: a história do Quilombo dos Palmares – o maior, mais duradouro e mais organizado refúgio de negros escravizados das Américas. Nele, reinou Zumbi dos Palmares, o herói negro assassinado em 20 de novembro de 1695, data em que se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra.

Imagem/ Reprodução Quilombo dos Palmares.
Fruto de uma luta de mais de 25 anos do Movimento Negro brasileiro, o Memorial foi implantado em 2007 pelo Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares, no território original da longa e sangrenta batalha – a Serra da Barriga, para cujas matas milhares de negros escravizados rebelados fugiram durante o período de dominação holandesa. Para difundir este capítulo da história do Brasil, a Fundação Palmares preparou um passeio virtual pelo único parque temático cultural afro-brasileiro.

O Parque Memorial Quilombo dos Palmares é uma espécie de maquete viva, em tamanho natural, foram reconstituídas algumas das mais significativas edificações do Quilombo dos Palmares. Com paredes de pau-a-pique, cobertura vegetal e inscrições em banto e yorubá, avista-se o Onjó de farinha (Casa de farinha), Onjó Cruzambê (Casa do Campo Santo), Oxile das ervas (Terreiro das ervas), Ocas indígenas e Muxima de Palmares (Coração de Palmares).

Conheça mais sobre clicando aqui e faça o passeio virtual

Impacto humanitário e ambiental em Mariana e o lado EUROPEU de alguns BRASILEIROS


Sugestão da Professora Valéria Rodrigues*

Um dos maiores desastres ambientais ocorridos recentemente no Brasil foi, sem dúvida, o rompimento de duas barragens da mineradora Samarco, em Mariana, Estado de Minas Gerais que ocasionou por alto ao menos a morte de 04 (quatro) pessoas, mais de 500 (quinhentos) desalojados, 22 (vinte e duas) desaparecidas, além da destruição de moradias.

Ao passo que o Brasil passa por isso e por outros entraves sociais que vai além de embates político-partidários – muitos se aproveitam disso para ganhar terreno e voltar ao poder sem apresentar, no entanto, nenhuma solução – outro fato chamou a atenção. Trata-se de um atentado terrorista em Paris, França, onde mais de 120 (cento e vinte) pessoas perderam a vida. As últimas informações dão conta que o governo da França e a imprensa do país têm usado a palavra "camicase" para descrever os terroristas e que um deles já foi identificado.

Mas o que tem de diferente entre esses dois fatos? A cobertura ou melhor a maneira como a mídia enfoca nos seus noticiários? Sim. A imprensa brasileira é golpista, é seletiva. O que importa é a audiência e para isso os meios não são levados em consideração, mas os fins sim. A forma como os brasileiros absorvem as informações? Também. Muitos são uma cópia fiel da mídia e acabam apenas reproduzindo as notícias sem o mínimo de contextualização, de criticidade. 

Tanto é assim que uma infinidade de catástrofe está acontecendo na África e mesmo no Brasil e nenhum se utilizou de redes sociais para trocar fotos de perfil em apoio e, ou, em solidariedade. Mas o fizeram com os franceses. Seriam eles (europeus) mais importantes que os africanos e que seus conterrâneos? Não. Na dinâmica da vida o ser humano tem o mesmo grau de importância. O valor atribuído a cada um é que é diferenciado.

O brasileiro expressa nos casos mais simples o seu VIGOR EUROPEU. Quantos africanos morrem todos os dias? Quantos brasileiros são assassinados todos os dias e ninguém se solidariza? Quantas pessoas são atacados em sua dignidade e não há, por parte da MAIORIA, solidariedade. Quando não há omissão emerge discursos retrógrados – daqueles que enoja qualquer um com o mínimo de bom senso- “vocês estão se vitimizando”... “Não há racismo. Não podemos se bitolar desse jeito. Parem de falar que ele acaba...”.  Quantos trocaram as fotos do perfil em solidariedade ao Amarildo? Quantos? Quanto aplicaram a alteridade nos casos que não chegam a mídia, mas são reais e muitos, nos arriscamos a afirmar, são conhecidos da maioria? Quantos aplicaram o lado humano na chacina de 19 jovens pobres na capital cearense? QUANTOS?

Mas repitamos a pergunta inicial – O que há de diferente entre o caso Mariana e o de Paris? A repercussão MIDIÁTICA  e a REPRODUÇÃO de alguns BRASILEIROS a ela. Um modismo faceano (rede social facebook). Somente isso. Porque as dores são  as mesmas.

Não queremos afirmar com isso que não se pode trocar fotos de perfil em respeito ou afinidade ideológica ou de apreço a nacionalidade. Isso em si não ajuda ninguém, é bom dizer. Mas revela o despreparo, a falta de humanidade para com aqueles que foram privados no passado de tudo, além de revelar ainda o ser condicionado pela mídia.

* Valéria Rodrigues é professora, Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Regional do Cariri (URCA), colaboradora e leitora assídua desse portal

14 de novembro de 2015

Falta de receptores e de estruturas adaptadas está levando a perda da memória e da história indígena


Com a palavra, Juca Ferreira, Ministro da Cultura, quando participou, em 2007, como secretário executivo do MinC, de um evento em celebração da cultura dos povos indígenas:


É uma grande alegria para mim e para todos nós, do Ministério da Cultura, estarmos hoje aqui celebrando a diversidade da cultura dos povos indígenas do Brasil. Esta é uma oportunidade para que todos os brasileiros comecem a perceber que aqueles que nos acostumamos a chamar, de uma maneira genérica e redutora, de ‘índios’, constituem, na verdade, um conjunto de povos muito diferentes entre si, povos com uma extraordinária diversidade cultural. Construímos um país sincrético, múltiplo e diverso. (…) Temos hoje consciência de que nós, brasileiros em geral, somos o que somos em grande parte graças a vocês, indígenas.

Podemos considerar como evidente que toda relação intercultural saudável implica o respeito ao outro e o desejo de compreendê-lo por aquilo que ele é, e não através do filtro do nosso próprio condicionamento. As culturas são como rios, como disse o antropólogo Marshall Sahlins, pois não se pode mergulhar duas vezes nas mesmas águas, porque elas estão sempre mudando. E quanto maior for o grau de partilha, mais democrática, criativa e tolerante será nossa sociedade.

Nesse sentido, é normal que, num dado momento do seu desenvolvimento, uma sociedade seja levada a abandonar ou a modificar esta ou aquela forma tradicional de sua cultura, na medida em que esta não responde mais às aspirações antes cultivadas. Não fazer esta modificação seria levar à cultura à esclerose e ao imobilismo.

Mas o que hoje consideramos como grande risco é a perda da memória, da história desses povos. Conjuntos inteiros de conhecimentos, fielmente transmitidos de uma geração para outra durante séculos de tradição oral, estão desaparecendo por falta de receptores e de estruturas adaptadas à sua transmissão. Estou pensando em particular no imenso domínio dos mitos e de outras histórias tradicionais, portadores de sabedorias ancestrais e fontes de saberes e de formas de vida incomparáveis. Estou pensando na grande quantidade de línguas ameaçadas.

Durante dez mil anos os povos indígenas acumularam valiosos saberes, culturas, artes e tecnologias extremamente sofisticadas. Aprenderam a viver em seus diferentes ecossistemas, seja a floresta tropical, o cerrado ou os pampas, onde identificaram inúmeros tipos de árvores frutíferas e desenvolveram uma medicina própria a partir dos conhecimentos tradicionais.

Também desenvolveram um rico patrimônio artístico que vai desde a cerâmica, a tecelagem e a arte plumária até a arquitetura, os grafismos corporais. Tiveram primazia no campo da astronomia e desenvolveram técnicas de caça, pesca e coleta. Sem nos esquecer de que toda atividade indígena está impregnada de senso estético, o que demonstra o nível de sofisticação e sensibilidade desses povos.

#ArteKusiwa #PatrimônioMundial – A arte Kusiwa celebra 12 anos de reconhecimento como Patrimônio da Humanidade. O título concedido pela Unesco, em 2003, ressalta a importância desta representação para os povos indígenas Wajãpi, no Amapá. Além de simbolizar um adorno, a pintura está diretamente ligada ao cotidiano, à organização social da comunidade e aos conhecimentos tradicionais passados de pais para filhos. 
Essas manifestações têm despertado interesse crescente da sociedade, envolvendo fins científicos, informativos, educacionais e comerciais. Da mesma forma, as nossas manifestações culturais têm interessado os indígenas, como computadores, internet banda larga, câmera digital, ilhas de edição etc. Gravam seus próprios filmes e CDs. Esta interação é positiva. Afinal, essas trocas constantes e essa antropofagia cultural fazem parte das vitalidades das culturas.

Devemos, sim, valorizar suas culturas, mas sem pretender congelá-las, nem preservá-las de uma forma artificial, até porque hoje muitos indígenas precisam recriar linguagens e costumes, ou seja, reinventar-se para criar um presente a partir de um passado.

O desafio de implementação no Brasil dos princípios da Convenção da Unesco sobre a Proteção e a Promoção das Expressões Culturais passa pela criação de políticas públicas capazes de abranger a perspectiva dos diferentes povos que contribuem para a construção do cenário cultural brasileiro.

(…) Ao Ministério da Cultura cabe a tarefa da desconstrução das representações de desigualdade na cultura brasileira. Para todos nós, a diversidade cultural brasileira e mundial deve ser libertada de todas as formas de racismo, discriminação e preconceitos de modo que seja possível a democracia cultural e o convívio fraterno entre os povos.”

Na origem de um feminismo NEGRO: Dandara, mulheres e lendas do Brasil


Do Oca Tupiniquim do Outras Palavras

Guerreiras negras, líderes rebeldes em luta pela liberdade. Quantas terá havido na história do Brasil de cuja existência não tivemos notícia? Quantas não chegaram a existir porque este modo de ser não fazia parte das possibilidades de uma garota? E por que não contamos histórias de heroínas assim – das que existiram e das que poderiam ter existido – para inspirar nossos meninos e meninas?

Foto/Reprodução.
Certamente perguntas como estas participaram do processo de criação das narrativas de Lendas de Dandara, da poeta Jarid Arraes (Liro Editora Livre, Ilustrações de Aline Valek). Dandara, a companheira de Zumbi, faz parte da mitologia do quilombo de Palmares. Não há evidência histórica de que ela tenha realmente existido, e no entanto sua personagem medrou no saber popular como uma guerreira valente e hábil, capoeirista, capaz de liderar exércitos negros na invasão de engenhos para o resgate de escravos. Estamos no terreno da lenda, como a autora faz questão de delimitar no título de sua obra.

Nascida em Juazeiro do Norte, no Ceará, Jarid aprendeu com seu pai a fazer poesia de cordel. É da tradição desta arte apropriar-se da História para forjar estórias, fundidas no fogo do imaginário, com uma temporalidade multidirecional que muito pouco deve à linearidade da cronologia. De modo que há muito do Palmares histórico nas narrativas de Jarid – que juntas formam essa pequena novela, em episódios dotados de certa autonomia –, mas o seu quilombo poderia situar-se quase que em qualquer ponto na vastidão do tempo-espaço do Brasil agrário e escravocrata. Também fala algo do Brasil pós-abolição, pois hoje, mais que nunca, surgem líderes libertárias negras que poderiam ter em Dandara a sua ancestral mítica.

Por um lado, Lendas de Dandara se apropria da história e mostra a situação dos homens e mulheres escravizados no Brasil, a presença do tráfico humano atlântico, e um pouco da estrutura de funcionamento dos engenhos, com suas casas grandes e senzalas. Também a relação de conflito e negociação do quilombo de Palmares com a sociedade de seu entorno é descrita com base no que os historiadores propõem. Nem apenas uma sociedade guerreira em total isolamento e autonomia, nem apenas um agrupamento submisso à ordem vigente, Jarid soube integrar à sua descrição de Palmares essa complexidade, como por exemplo nas relações comerciais (inclusive para aquisição de armamentos) que os quilombolas estabeleciam com outras comunidades.

Se a autora reconstitui ficcionalmente fatos históricos como as investidas que os palmarenses faziam contra engenhos para romper senzalas e libertar negros, ela nos propõe sonhar com um tipo de evento menos provável: a libertação de um navio negreiro, concedendo-lhes a possibilidade de retornar ao seu continente no comando da embarcação. Também cria a cena de um senhor de engenho que, assaltado numa estrada e submetido por uma guerreira negra livre, se mostra apavorado por não poder contar, ainda que momentaneamente, com o aparato social e bélico que dá sustentação ao seu poder.

A vida em Palmares também é recriada como uma aldeia rebelde e muito bem organizada – algo provável, pela capacidade de defesa e ataque que o quilombo teve. No entanto, o idealismo libertário e o sonho de se tornar um modelo para outros quilombos por todo o território nacional são traços que visitam o terreno da lenda. Meados do século XVII ainda é cedo para uma conjuração independentista e universalista. Hoje, fala-se da possibilidade de que Palmares não poderia ter tido uma estruturação igualitária, uma vez que este não era o modelo conhecido pelos africanos em seu continente – mas o quilombo, como muitos outros Brasil adentro, era francamente multiétnico e talvez pudesse ter uma forte influência indígena em sua estruturação.

Neste cenário já transitivo entre a história e as estórias, Jarid introduz a figura fantástica de uma filha de Iansã, que vem ao mundo para lutar pela liberdade de seus irmãos, cuja vocação é a liderança e o combate. Não é apenas que ela se torna a companheira de Zumbi, sua Dandara enfrenta os limites de sua sociedade e conquista o reconhecimento de seu meritório lugar de líder. É assim que obtém a solidariedade e a admiração sincera de Zumbi. A rigor, ele não lhe concede nada, apenas lhe reconhece o que ela conquistou realizando diversos feitos de ousadia e coragem.

O cuidado com a linguagem é notável e permite uma real construção da empatia com pessoas em situação de extrema violência, como é a escravidão. Ao falar de mulheres e homens aprisionados num porão, por que seria necessário mencionar-lhes, sempre, a cor da pele? Há um grupo de agressores e um grupo de agredidos insurretos, reafirmar sua divisão pela cor da pele ou pela origem é apenas assumir o jogo do dominador. Trata-se de pessoas iguais em natureza, mas vivendo em condições extremamente desiguais. E é isso o que Jarid nos faz ler e imaginar, sem recalques nem travas.

Capoeira e mulheres líderes

Historicamente, não é possível afirmar que a capoeira fosse praticada em Palmares, ou mesmo no século XVII. Há apenas o registro de que os soldados coloniais se espantavam com a habilidade guerreira dos palmarenses, cuja reputação era a de serem muito mais difíceis de vencer do que os ocupantes holandeses – lembrando que Palmares situava-se em uma região hoje situada em Alagoas, que na época ficava na capitania de Pernambuco, portanto próximo à ocupação holandesa. Os quilombolas dominavam técnicas de luta que os tornavam quase imbatíveis, e tiveram que ser esmagados por exércitos em número e armamentos incrivelmente superiores.

As evidências da capoeira são muito mais abundantes no século XIX, como as imagens de Rugendas, notícias de jornal e os registros de polícia – a ponto de a capoeira ter sido oficialmente proibida com o advento da República, quando a escravidão estava findada e um novo aparato de controle social precisou ser montado com foco na população ex-escrava.

Mas a capoeira permanece símbolo da liberdade e da potência negra, com uma presença feminina que se impõe. Um canto muito entoado nas rodas de capoeira fala disso:

Eu conheci mestre Bimba, conheci Canjiquinha e também seu Maré
É é
Eles me disse um dia
É é
Capoeira é pra homem, menino e mulher
É é
Pra menino e mulher
É é
É pra homem e mulher
É é

A evocação dos mestres antigos para reforçar a inclusão de todos na capoeira evidencia essa abertura, mas ao mesmo tempo demonstra uma tensão: é uma característica que precisa ser afirmada e legitimada.

Mas o imaginário da capoeira também se alimentou de outras figuras femininas fortes, como a Ngola (rainha) Nzinga. Esta rainha dos povos ndongo e matamba, na região onde hoje está situada Angola (palavra derivada de seu título de liderança e nobreza), conduziu exércitos contra o invasor português e obteve impressionantes vitórias. Ficou conhecida como a Rainha Ginga, e seu nome estaria na origem da palavra mais essencial para a capoeira.

São notáveis as semelhanças da Nzinga histórica com a Dandara das lendas, e não é impossível que o imaginário popular as tenha incorporado – até porque ambas são “contemporâneas”. Nos dois lados do Atlântico, duas figuras femininas (históricas e míticas) associadas à resistência negra contra o colonizador português e a opressão aos negros. Jarid menciona também Teresa de Benguela, líder que se ganhou notoriedade por sua capacidade administrativa na condução de um quilombo no interior do Brasil.

Apenas como referência, vale mencionar que Nzinga inspira coletivos de mulheres que fazem da capoeira um campo de afirmação da visibilidade e luta das mulheres, com líderes como a Mestre Janja.

Real ou invenção?

Jarid Arraes iniciou a escrita de seu livro partindo da hipótese de que Dandara e sua história não são conhecidas por ser a personagem duplamente excluída do campo vencedor: é negra e mulher, num mundo branco e machista. A síntese do projeto do livro estaria nestas palavras da quarta capa: “Devido à escassez de dados oficiais [a respeito de Dandara], a autora sentiu a necessidade de criar narrativas que pudessem inspirar os leitores e espalhar a imagem de uma guerreira negra forte, heroica e protagonista da própria história”.

Pergunto-me se mais certo não seria exatamente o contrário. Se a personagem de Dandara não teria sido criada por uma necessidade inversa, a de suprir a lacuna de que o herói Zumbi – ele também fusão de mito e história – tivesse uma companheira tão forte e valente quanto ele, capaz de encarnar rebeldia e libertação. Em contraposição a uma mitologizante tendência da história oficial de apagar o que não interessa aos “vencedores”, não haveria uma tendência popular – igualmente mitologizante – de forjar figuras que apontem para um mundo mais completo?

A autora também diz que seu livro foca o público adulto, mas que ele pode ser lido para crianças por um “adulto responsável”, considerando que trata de temas que envolvem violência, como a escravidão e o tráfico de seres humanos. Se está certa quanto ao acompanhamento do adulto, novamente tendo a discordar dela quanto ao público preferencial do livro. Penso que é para se ler para crianças, pois contém todos os elementos para empolgar meninos e meninas e alimentar suas imaginações com referências de justiça, bravura e heroísmo que em geral não se associam a uma menina ou mulher negra.

A constatação é de que o imaginário e o real se constituem mutuamente muito mais do que uma cabeça determinista ousaria reconhecer. Somos parte disso – o que significa que, no exato instante em que deixamos de nos inventar, é porque estamos sendo inventados por alguém. Mesmo que não admitamos, o fato é que não nos é possível deixar de inventar os outros e outras e de ser por eles e elas inventados/as.

Não por outra razão, afirmar que “não sou machista e não sou racista” não me protege totalmente de ser machista e racista. Mesmo assumindo práticas cotidianas não machistas e não racistas. Pois no momento em que eu, seguro de meus princípios, relaxo, é quando abro uma fresta para que o machismo e o racismo ajam por mim. É quando tomo uma atitude ou falo algo que só me restará lamentar depois. Resta a alternativa de ser feminista e antirracista, o que significa lutar perenemente para que o mundo seja menos machista e menos racista, inclusive em minhas palavras e meus atos. É aí que me orgulho de Dandara – como um garoto que na época da guerra fria teria orgulho do Super-homem: é Dandara que dá corpo ao mundo que desejo.

12 de novembro de 2015

A atualidade no poema de Bertolt Brecht


Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

                                                                                                                                                                                                                                                                  (Bertolt Brecht)

“Fazemos o que temos a fazer, a fim de fazer o que queremos fazer”, do filme o “Grande Desafio"


Existem certos tipos de filme que agradam muita gente. Entre eles, os que são baseados ou inspirados em fatos reais costumam fazer sucesso, principalmente, quando bem conduzidos e com um bom roteiro costurando a história que, claro, tem que ser boa para ser contada. Com um tema que remete para alguns bons títulos, como Encontrando Forrester, Escritores da Liberdade e até o clássico Ao Mestre, Com Carinho, O Grande Desafio entra para a galeria dos "filmes de vitória" com uma mensagem importante para o espectador além de um pouco de ensinamento sobre as relações humanas numa época influenciada pelo racismo.

A história se passa nos anos 30, no Texas, e acompanha a trajetória do professor Melvin Tolson (mais tarde, poeta na vida real) formando sua equipe de debatedores negros da pequena Universidade de Wiley, dispostos a enfrentar a tradicional e imbatível campeã da modalidade, frequentada por brancos. Embora a questão da cor da pele seja pungente, as palavras ganham mais força, mas uma cena simples vivida pelo professor e os alunos, como a do porco e seu proprietário, reflete claramente o horror da intolerância racial.

A equipe de Debates da Faculdade de Wiley se torna imbatível, Sendo convidada a debater com a Universidade de HAVARD (mencionada no filme), o debate que causou maior impacto foi o que teve como assunto: OS NEGROS FREQUENTAREM AS MESMAS UNIVERSIDADES QUE OS BRANCOS. Na época em que se passa o filme por volta de 1930 ocorria muito o linchamento de negros, o preconceito racial era muito grande.

O discurso de um garoto de 14 anos, James Farmer Jr, é um dos momentos mais emocionantes. Segue o discurso abaixo:


" Fazemos o que temos a fazer, a fim de fazer o que queremos fazer".

"No Texas, eles lincham os negros. Meus companheiros e eu vimos um homem amarrado pelo pescoço e incendiado, pendurado em uma árvore. Nós dirigimos através de um linchamento e ficamos abaixados no carro. Olhei para meus companheiros. Eu vi o medo em seus olhos e, pior, a vergonha. Qual foi o crime que este negro cometeu para ser enforcado sem julgamento em uma floresta escura, cheia de nevoeiro. Foi ele um ladrão? Seria ele um assassino? Ou apenas um negro? Foi ele um parceiro? Um pregador? Seus filhos esperavam por ele me casa? E quem somos nós para apenas estar lá e não fazer nada? Não importa o que ele fez, a multidão era o criminoso. Mas a lei não fez nada. Apenas deixou-nos com a pergunta: "Por quê?" Meu adversário não diz que nada que corrói o Estado de Direito pode ser moral. Mas não há Estado de Direito no sul dos EUA. Não quando aos negros são negados habitação, escolas e hospitais.Não quando estamos sendo linchados. Santo Agostinho disse: "Uma lei injusta não é uma lei para todos" O que significa que eu tenho direito, até mesmo o dever de resistir. Com a violência ou a desobediência civil. Você deve orar para que eu escolha a segunda."

Inspirado em fatos reais, O Grande Desafio tem bom roteiro, fotografia, trilha sonora e boa direção de Denzel Washington, que vive o personagem Tolson. Com elenco escorado em veteranos (Washington e Forest Whitaker), mas com boas atuações de novatos, o longa emociona e provoca a reflexão sob vários aspectos, fruto óbvio dos debates, principal matéria prima da trama. Uma curiosidade do filme, e não de sua história, é a coincidência do nome do ator Denzel Whitaker, misturando o nome dos dois conhecidos atores. O jovem, no caso, dá vida a James Farmer Jr., aluno do professor Tolson. Alguém já disse que certas coisas não devem ser escritas. Neste filme aprende-se que muitas precisam ser ditas.

Assista ao filme

           

Mais sobre o filme clique aqui. Se preferir acesse esse portal.

11 de novembro de 2015

Do Afreaka: O Egito Antigo e a África NEGRA


Representação de Piye, o Faraó Negro. Fonte: National Geographic.
Na Bíblia, no Antigo Testamento, mais especificamente no livro de Isaías, há muitas referências ao Antigo Egito, em uma delas encontramos: “Vai, mensageiro veloz, até o povo alto e bronzeado, ao povo sempre temido, à nação poderosa e conquistadora cujas terras os rios dividem”.

Apesar da ênfase nas características físicas, chamando os egípcios de “povo alto e bronzeado”, ainda hoje é necessário reafirmar o seguinte truísmo: o Antigo Egito, uma das mais conhecidas civilizações do mundo antigo, tão presente no imaginário das pessoas e tão desconhecido ao mesmo tempo, não era exclusivamente branco, ele era, também, negro e não existia somente com sua face virada para o Norte (Mediterrâneo) e Leste (Oriente Médio), mas também estava intimamente ligado ao seu entorno africano, especialmente o Sul.

Os motivos para um desconhecimento tão flagrante são muitos e vão desde as produções cinematográficas hollywoodianas, passando por novelas brasileiras, com súditos, reis e rainhas de olhos claros e cabelos lisos até trabalhos acadêmicos de muitos pesquisadores que escreveram toneladas de monografias e livros sobre o Antigo Egito esquecendo que este também estava inserido em um contexto africano. Trocando em miúdos, “contexto africano” quer dizer: em profunda relação com outros povos do continente.

Cena da novela "Os dez mandamentos", da Tv Record. Foto: Reprodução.
Mas porque é preciso repensar o Antigo Egito para além das delimitações e categorias tradicionais dos livros de história ou do cinema? Ora, porque tais delimitações foram estabelecidas séculos depois por olhares, quase sempre, estrangeiros: primeiramente grego – Heródoto, o “pai” da história, fez uma viagem ao Egito para relatar aquele “estranho” povo em que “homens urinam sentados e mulheres em pé” – e muito posteriormente pelos Estados nacionais europeus a partir do século XVI. Estes últimos interpretaram o Antigo Egito a partir de seus próprios anseios e filtros culturais, representando-o mais como um antepassado europeu, em seu estado infantil, do que como uma civilização diferente e intrinsecamente envolvida com a África.

Porém, a relação entre o Antigo Egito e a África Negra pode ser averiguada, antes de qualquer coisa, pela dependência egípcia do comércio africano de diversos produtos, como pedras preciosas e marfim, que chegavam via rotas comerciais milenares do Sul e através do Saara ao Oeste. E é sabido que onde há troca comercial há, também, troca cultural.

Pôster do filme "O Faraó", 1954.
Foto: Reprodução.
Na antiguidade, a região que hoje denominamos Sudão, por exemplo, sempre representou para os egípcios uma enorme fonte de mão de obra, de animais e de minerais. Os sudaneses, ou núbios, denominação dos povos que viviam nessa região, eram extremamente valiosos para a composição do exército, desempenhando um importante papel nas conquistas do Império durante boa parte da história do Antigo Egito. Os núbios eram famosos por suas habilidades com o arco e flecha. Seus feitos deixaram vestígios e podem ser vislumbrados em belas estatuetas encontradas no século XIX, na tumba de Mesehti em Asyut. Na ocasião daquela escavação, foram encontradas pequenas peças de madeira pintada representando arqueiros núbios e soldados com escudos e lanças, todos eles devidamente representados com feições negras.

A importância dos Núbios, porém, não se limitava aos arqueiros, mas também na ação de hábeis “burocratas” que auxiliavam os faraós em diversas funções administrativas do Império. Tal papel culminou com a ascensão de um faraó núbio, em torno de 740 a.C., que deu origem à uma dinastia “etíope” chamada Koushita, representada pelo faraó negro Piye, rei da XXV dinastia egípcia.

Estatuetas de madeira representando arqueiros núbios. Foto: Reprodução.
Entretanto, a ascensão de uma dinastia “etíope” é muitas vezes representada, em livros didáticos ou sites de História Antiga, como uma invasão estrangeira ou, pior, como a decadência de uma suposta pureza egípcia, porém, como sugere historiadores africanos como Hamid Zayed, tal “invasão” ocorreu, sobretudo, por causa das transformações internas das forças políticas e sociais decorrente das relações culturais hibridas entre o Antigo Egito e o seu entorno africano.

De qualquer forma, a dinastia “etíope” alargou a dimensão africana e ficou registrada não apenas nos sítios arqueológicos egípcios, mas também nos relatos de povos vizinhos, o que demonstra que os núbios se constituíram como parte da história do Egito e que assim devem ser reconhecidos.

Outra representação do Faraó Negro Piye. Fonte: National Geographic.

Além desse olhar mais abrangente, pode-se afirmar que a existência de rotas comerciais refletiu em um intenso fluxo cultural entre as diversas regiões africanas transbordando, até mesmo, para as margens do deserto do Saara ao Oeste e Sul. É o que parece demonstrar a existência de cultos análogos em diversas regiões da África, como a adoração ao carneiro, animal sagrado de Âmon, adorado no sul distante de Kush e também entre os Ioruba e os Fon, bem como o intrigante parentesco entre o hausa, o wolof ou o songhai, línguas faladas na África Ocidental, como  o egípcio, que era falado há cinco mil anos.

Em suma, pode-se chegar à conclusão que os estudos da História Antiga devem um maior olhar para a África na antiguidade, para além mesmo das representações consagradas do Antigo Egito.